Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, set./dez. 2023

O arquivo como objeto: cultura escrita, poder e memória | Apresentação

O arquivo como objeto: cultura escrita, poder e memória

Apresentação do dossiê


Os acervos arquivísticos são tradicionalmente compreendidos como fontes para a pesquisa acadêmica. Por outro lado, os estudos de história da leitura dedicaram-se aos livros, bibliotecas e impressos que circularam de alguma forma entre o público. A proposta de um dossiê que considerasse o arquivo como objeto implicou pensá-lo em seus aspectos formais, relacionados à produção da escrita, paleografia, diplomática, à historicidade da elaboração desses artefatos e sua preservação. Impôs-se igualmente o arquivo do ponto de vista de sua própria estrutura e organização, como manifesto de uma lógica de dominação; o arquivo analisado a partir dos discursos, práticas e representações, ou seja, como produtor de conhecimento, mais do que fonte, agente também do poder, pela constituição e circulação de saberes que são instrumentos de governos.

A formação dos arquivos coloca-se, assim, como um espelho da chamada arte do governo a distância, momento em que pena, tinta e papel se tornaram instrumentos fundamentais no controle e gestão de territórios espalhados pelas “quatro partes do mundo”, como se refere Serge Gruzinski (2014). Testemunhas do estreitamento dos laços entre espaços desconectados, os arquivos guardam múltiplos indícios dessa experiência primeira de globalização, marcada pela ampliação, em escala vertiginosa, de papéis escritos (Elliot, 1998). Essa perspectiva permite problematizar o arquivo como lugar de conflito e disputa pela memória e verdade, pelas identidades, e como resistência, em diferentes regimes e situações de excepcionalidade ao longo da história. Abrange ainda os arquivos coloniais e pós-coloniais, vistos como agentes, em si mesmos, da imposição do poder colonizador.

Cabe também considerar uma dimensão ainda pouco visitada pelos historiadores: a necessidade de questionar aquilo que se manteve preservado nos arquivos. As intenções de preservação de determinados fundos arquivísticos, a dimensão pessoal e a sensibilidade presente no ato de guardar correspondência privada, ou ainda a existência de livros de copiador, originais e cópias avulsas, aspectos que apresentam indícios do significado dos documentos em um determinado tempo. Da mesma forma, quando rearranjados por agentes de uma determinada instituição, novos sentidos são criados, inibindo a possibilidade de compreender os sentidos originais de ordenamento.

Definidos recorrentemente como “instituições de memória” ou “lugares de memória”, sobretudo a partir de determinadas leituras da obra de Pierre Nora, os arquivos se situam entre as instâncias da história e da memória, em sobreposições, equivalências ou antagonismos, objetos da crítica historiográfica e de outros campos do conhecimento. A preservação da memória e da história “nacionais” ou do Estado foi, muitas vezes, associada à missão institucional dos arquivos, entre outros atributos. A própria trajetória dos arquivos em sua íntima conexão com a disciplina da história sedimentou uma complexa superposição entre o discurso histórico e as manifestações da memória.

A invenção desse vínculo inescapável entre os arquivos e o dever de memória no século XIX resultou em enorme eficácia política e discursiva, eclipsando outras experiências de guarda documental em espaços e tempos distintos. Ao abordar as sociedades do Antigo Regime, António Manuel Hespanha (1998) nos lembra da dispersão do poder por uma constelação de instituições, muitas delas separadas pela vastidão dos oceanos. Deriva dessa realidade a ocorrência de “una pluralidad de archivos resultante que no conviene separar entre públicos y privados, puesto que la frontera entre política y sociedad no responde a los parámetros del Estado-nación decimonónico”, como afirma Fernando Bouza na entrevista que concedeu para o dossiê deste número. A dispersão marca a constituição dos fundos e coleções resultantes do passado colonial, custodiados pelos mais diversos arquivos na Europa e na América. Bouza nos adverte, porém, que o arquivo não é um lugar “especialmente inocente”: suas camadas, longe de serem geologicamente naturais, escondem um caráter artificial resultante de sucessivas operações em que se jogaram com a memória e o esquecimento.

A dominação dos territórios conquistados pelos europeus, a partir do século XVI, representa um capítulo particular desse processo. Papéis, os mais variados, singraram os mares com registros – escritos, visuais, normativos, cartográficos, entre outros – relativos a trocas mercantis, viagens científicas, disputas em áreas de fronteiras, guerras entre nativos e colonos, e tantos outros assuntos capitais ao funcionamento de um governo a distância. O “tempo administrativo” era um enorme desafio. Garantir a submissão de vassalos rebeldes e a soberania das monarquias europeias sobre tão vastos territórios dependeu da gestão, nem sempre fácil, de um volume inumerável de documentos. Esse “governo de letras” deu origem a grandes “arquivos reais”, como o de Simancas, pertencente às coroas de Castela e Aragão, e a Torre do Tombo, em Lisboa. Espaços de guarda de documentos advindos das mais variadas partes do mundo, capazes de representar o adensamento das funções burocráticas na Época Moderna, mas que escondem, também, um sentido representativo, um capital simbólico da própria majestade dos monarcas.

De modo distinto, quatro artigos que compõem o dossiê rastrearam os arquivos da Época Moderna e contribuíram com reflexões originais para o tema proposto. Em todos eles, Fernando Bouza aparece como uma das referências centrais. Ana Paula Torres Megiani, ao mergulhar na coleção do bispo português Jerônimo Mascarenhas (1611-1671) sob guarda da Biblioteca Nacional de Espanha, demonstra de certa forma a afirmação feita por Bouza na entrevista acerca do caráter artificial dos arquivos. A copiosa coleção de notícias de Mascarenhas, cronista, historiador e colecionador de manuscritos e impressos, revela práticas de escolha e organização de documentos que descortinam as intenções de memória de seu autor. As notícias reunidas por Mascarenhas, resultantes de uma dinâmica e intensa rede de correspondentes, capturam o sentido mais direto do ato de informar, característico da primeira modernidade, no qual importava a escrita do “tempo presente” sobre as diversas novidades do mundo. Como afirma Megiani, a primeira metade do século XVII marca “o aparecimento na Europa dos primeiros periódicos noticiosos que se tornariam um novo gênero de escrita, inexistente em qualquer outra época ou lugar, evidencia que a curiosidade das pessoas em saber o que se passava nas outras partes do mundo se torna uma necessidade cotidiana”.

A escolha sobre o que guardar e, assim, forjar uma memória dos temas que mereciam atenção privilegiada das monarquias inscreve-se também na coleção Gabinete de d. João VI, custodiada pelo Arquivo Nacional. Na seção Documento, que compõe o dossiê deste número, Marieta Pinheiro de Carvalho escrutina a origem desse conjunto de escritos reservados, parte dos “segredos” do gabinete do príncipe regente feito rei no Rio de Janeiro, durante a permanência da corte bragantina na América portuguesa. Carvalho enfrenta o desafio de questionar certa intencionalidade do que se manteve preservado nos arquivos. Diferentemente de outros fundos documentais, a especificidade da coleção não se encontra em uma proveniência única, mas na reunião de documentos particulares, do interesse da monarquia e, neste caso, de assuntos que dependiam estritamente das decisões régias, conflagradas e urgentes em tempos de guerra. Como afirma a autora, ancorada em Bouza, os documentos do Gabinete de d. João VI guardam uma ordem particular e específica, e esses papéis são “reveladores de determinadas estratégias de ação ou demonstradores de prioridades de governo”.

O valor atribuído aos escritos pela Época Moderna suscitou, desde cedo, preocupações com a conservação do suporte da informação. O uso do texto como meio principal da comunicação entre territórios distantes provocou uma atenção maior ao mobiliário, às tintas usadas e à qualidade do papel. Em um trabalho minucioso envolvendo análise de digitalizações e fotografias, Marina Furtado Gonçalves examinou documentos da coleção Casa dos Contos entre os anos de 1750 e 1800, demonstrando que parte significativa da proveniência dos papéis era italiana, da região da Ligúria, indicativo da preocupação com a qualidade dos fólios. Frente aos poucos estudos existentes sobre a produção e o comércio de papéis, a autora ampara-se em uma perspectiva interdisciplinar, refletindo sobre a demanda do produto, o segredo do ofício entre as famílias produtoras, as características de produção, assim como as marcas e contramarcas dos fabricantes.

A preocupação com o suporte da informação atravessa o artigo de Rodrigo Bentes Monteiro, que parte do progressivo avanço dos programas de digitalizações de fontes documentais – manuscritos, impressos, gravuras, mapas, entre outros registros – que colocam o historiador hoje frente a um enorme volume de informações na tela do computador e longe dos arquivos. Amparado nos estudos de Roger Chartier e Robert Darnton, Bentes desafia-se a refletir sobre os ganhos e as limitações dessa nova relação com as fontes documentais disponíveis no ciberespaço. Se, por um lado, o incremento das ferramentas de busca facilita o acesso à informação e permite comparações entre edições impressas ou manuscritos digitalizados, de outro, a distância dos arquivos afasta os historiadores da materialidade de vestígios, muitas vezes perceptíveis apenas pelos sentidos. O prazer de ir ao arquivo, desvendar a pressuposta ordem que ele impõe aos discursos e ao mundo real, arranca “um sentido adicional dos fragmentos... a emoção é um instrumento a mais para polir a pedra, a do passado, a do silêncio” (Farge, 2009, p. 37). Bentes ainda observa, a partir de um levantamento de artigos publicados em periódicos bem avaliados pela Capes, o descuido com as referências aos documentos físicos ou virtuais. Tal aspecto promove, segundo ele, “uma confusão muito grande entre o documento e sua cópia representada na internet”. Em sua conclusão, aponta um possível caminho que permita o equilíbrio entre o gosto do arquivo e o uso de novas tecnologias.

Uma das provocações do dossiê, a de analisar os arquivos do ponto de vista dos discursos, práticas e representações, foi enfrentada, em especial, em dois artigos que, em comum, entre outros aspectos, norteiam-se, respectivamente, pelo pensamento dos filósofos Jacques Rancière e Michel Foucault. Em “‘O excesso de palavras’: arquivos, representação e historiografia no pensamento estético de Jacques Rancière”, os autores partem do conceito de representação em sua relação intrínseca com os arquivos permanentes, nos quais está contido seu valor secundário, de prova, e cujo valor cultural atribuído é o que importa. Nesse sentido, dizem Rodrigo Fortes Avila e Pedro Augusto Franceschini, “a natureza desses acervos ostenta uma duplicidade inescapável: por um lado, eles ativam a capacidade de expressão das demandas que elucidam sua origem produtiva; por outro, operam uma historicidade contingente”. O conceito de representação constitutivo do campo arquivístico articula-se ao processo mais amplo da história ocidental, que estabeleceu uma relação entre os fatos situados na esfera do sensível e a sua interpretação ou designação. As transformações epistemológicas que marcam os séculos XVIII e XIX confundem as fronteiras entre a historiografia, a política e a estética, e é na análise dessa indistinção que, para Avila e Franceschini, se dá uma importante contribuição de Jacques Rancière, permitindo “repensarmos as mudanças no paradigma da representação e a correspondente natureza do trabalho com as fontes”.

Reconhecer as transformações fundadoras ocorridas no ato de ver e dizer, ou entre os fatos e sua designação, nos conduz inevitavelmente à expressão “as palavras e as coisas”, título clássico de Michel Foucault. Ao longo de sua obra, o arquivo é um enunciado e, tal como se apresenta no artigo de Thays Lacerda, é dispositivo. O objetivo da autora ao incorporar o conceito de dispositivo é o de transcender as abordagens de cunho “positivista” que ainda dominariam a produção da área, optando por ir além da ideia de custódia e enxergar no arquivo as relações de poder e saber, binômio que estrutura o pensamento foucaultiano. Um dos efeitos desses jogos de poder e saber que é inerente ao dispositivo é invisibilizar ou apagar o seu próprio funcionamento, podendo-se elencar como ações do dispositivo de arquivo: delimitar, produzir, estabelecer, transformar, apagar, silenciar ou esquecer. Assim, prossegue Lacerda, “cabe, então, apontarmos o lugar dos arquivos nessa rede de relações heterogêneas, que estamos chamando de dispositivo de arquivo, para pensarmos em seus papéis sociais e políticos, incluindo aqui o seu caráter de institucionalidade, legitimidade e autoridade e sua relação com o tempo histórico”.

Dois artigos compartilham a análise de documentos seriados, produzidos nos períodos colonial e imperial e que incidem sobre cidades essenciais na formação da sociedade brasileira, Recife e Rio de Janeiro. Em comum, também, a singularização de casos, de abordagens, de rupturas históricas, em meio ao contínuo da série. Assim, Maria Angela de Almeida Souza centrou-se nas posturas municipais, visando, em suas palavras, construir a história do Recife imperial. Para tanto, a autora percorre dois eixos, afirmando a prevalência do âmbito local, da municipalidade, para “o ordenamento e o disciplinamento do território das vilas e cidades” e reconhecendo o lugar da tradição portuguesa nessa legislação do Império. Em artigo sobre o arquivo da Cúria Metropolitana, Vivian Zampa e Vitória Schettini dedicam-se aos registros paroquiais advertindo, no entanto, não se tratar de uma abordagem serial, ou que recorra ao método quantitativo, mas sim da especificidade desse acervo e das suas possibilidades de pesquisa. Dessa forma, destaca-se uma riqueza única em tais acervos, uma vez que os registros de nascimento, casamento e morte incluem praticamente toda a população, livre ou escravizada, de diferentes camadas sociais, submetidos à ordem eclesiástica. Um ciclo de vida, que nos arquivos se reflete nas fases corrente, intermediária e permanente, uma acumulação que se pode ver, segundo Zampa e Schettini, no fundo da prelazia ou diocese do Rio de Janeiro. A estruturação do arquivo e a própria padronização dos livros e registros, a natureza dos dados recolhidos e mesmo a incerteza de determinadas informações traduzem o modo como a população é representada na sede colonial e capital do Império.

Incluído em 2018 no Registro Regional do Programa Memória do Mundo (Unesco), o arquivo gerado pelo Acordo de Paz assinado dois anos antes entre o governo colombiano e as Farc-EP foi analisado por Jaime Alberto Bornacelly Castro e Maria Letícia Mazzucchi Ferreira em artigo que se propõe a pensar o nexo entre patrimônio, arquivos e memória a partir da constituição e patrimonialização do acordo. Esse “patrimônio incômodo”, como muitos conjuntos documentais decorrentes de situações traumáticas, comporta disputas pela memória, silenciamentos, “mostra significados divergentes e convergentes sobre o passado, o presente e o futuro da Colômbia em vários aspectos, como a economia, o uso e a posse da terra, a construção da verdade, as reparações às vítimas, a justiça transicional, o gênero, a participação política, entre outros”. O valor patrimonial desse acervo, afirmam os autores, não provém apenas do reconhecimento pelo Arquivo Geral da Nação ou por um organismo como a Unesco, mas do seu caráter relacional entre atores sociais e entidades locais e globais.

Em seu processo de acumulação, os fundos se constituem também pelas perdas, pelo valor atribuído ao conjunto, pelas técnicas arquivísticas e pelo campo específico de conhecimento a que se refere, sem esquecermos as injunções políticas e os atores envolvidos. Os rumos do arquivo permanente do Ministério das Relações Exteriores, em um artigo definido por seus autores como de “caráter eminentemente empírico e narrativo”, resulta em um ensaio sobre a história e os difíceis caminhos seguidos pelos arquivos públicos no Brasil, mesmo a se considerar, nesse caso, o prestígio das atividades diplomáticas. Com o título “Uma ‘documentação valiosa desordenadamente arquivada’: a mudança do Ministério das Relações Exteriores para Brasília e seu arquivo permanente”, Rogério de Souza Farias e Fernando Sousa Leite têm como objetivo “apresentar o processo de construção normativo e material do Arquivo do Itamaraty em Brasília”, além de se dedicar à experiência da unidade no Rio de Janeiro, entre os anos 1930 e 1960. Divididos por critérios hoje anacrônicos na arquivística, a organização e o acesso a esses registros foram submetidos a uma série de circunstâncias e decisões, entre as quais as diretrizes do Dasp, a atuação da Comissão de Estudos dos Textos da História do Brasil (CETHB), a transferência para a nova capital, bem como o regime militar e o processo de redemocratização.

O tema dos limites e dos conflitos internos a serem arbitrados entre os estados brasileiros nos primeiros anos da República ensejou a análise da pesquisa em arquivos e da produção historiadora junto aos institutos históricos constituídos nas regiões Norte e Nordeste, divisões territoriais em si mesmas merecedoras de um olhar que reconhece o artifício das construções cartográficas. Em seu artigo, Magno Francisco de Jesus Santos estabelece uma relação entre as contendas de limites e a criação dessas associações, sobretudo na virada do século XIX ao XX, problematizando, segundo o autor, o uso desses acervos a partir de três premissas que fundamentaram o campo majoritário da historiografia proveniente dessas instituições, essencialmente a do caráter empírico do documento; do pragmatismo aplicado à produção do conhecimento histórico e, em consequência, “dotado de um teor jurídico, capaz de galgar a construção da verdade sobre o passado e penhorar a paz ao futuro”.

Três artigos dedicaram-se a pensar a formação de arquivos pessoais, empreendendo uma relação estreita entre a biografia e a constituição de acervos. Como assinala Juliana Barreto Farias, que aborda a trajetória da historiadora negra Nize Isabel de Moraes (1938-2015) nos arquivos da cidade de Dakar, no Senegal, trata-se de uma mirada etnográfica, na qual se desloca o foco para a constituição do acervo, uma espécie de “biografia do arquivo”. Em meio aos diários, cartas, esboços de artigos, fotografias, atas de reuniões, entre outros documentos e objetos reunidos por Nize, que ainda não tiveram um tratamento ou catalogação, a autora nos coloca diante de suas próprias hesitações, envolvendo o leitor em uma escrita sensível e repleta de questionamentos: “Não sabemos se Nize Isabel de Moraes já tinha a intenção de reunir todo esse material com vistas à formação de um acervo... Por que então não pensar que tivesse isso em mente quando guardou tantos papéis, cadernos e outras publicações na casa de sua amiga?”. A marca pessoal na construção do acervo não deve ser lida como algo natural. Conforme nos adverte Farias, “é preciso evitar um olhar naturalizado em torno do qual a vida de uma pessoa – ou de uma instituição – se ‘objetiva’. [...] Nesses processos, revelam-se as intencionalidades de quem produziu o arquivo e, igualmente, de quem o conservou e organizou, mesmo quando se deixou ‘do jeito que estava’”.

As inquietações suscitadas pelo arquivo de Nize vinculam-se de certo modo ao problema colocado por Michel Foucault no final dos anos de 1960 sobre a autoria. Ao refletir sobre a situação de obras póstumas, os traços deixados por alguém após a morte, Foucault nos instiga a pensar sobre os conjuntos documentais designados como a obra de um autor. Desnaturalizar o autor provoca também a necessidade de repensar sua “memória” e seu “arquivo”. Esse desafio aparece no artigo de Evelina Hoisel e Henrique Júlio Vieira, que dedicaram atenção ao arquivo acadêmico da docente, teórica e ensaísta Judith Grossmann (1931-2015). Em sua trajetória na criação da disciplina de Teoria da Literatura na Universidade Federal da Bahia, Grossmann ajuntou, organizou e catalogou documentos que contavam a trajetória da disciplina, ao mesmo tempo em que narravam sua própria história.

A ordenação cronológica e minuciosa imposta por Grossmann ao seu arquivo deixa evidente, portanto, a ordem do discurso que ela acreditava ser coerente com a própria forma de pensar sua atuação docente. Perspectiva que abraçava, inclusive, o contraditório, como o questionário feito por seus alunos acerca da pertinência da disciplina Teoria Literária, no contexto dos debates sobre a redemocratização do país, no final da década de 1970. De acordo com Hoisel e Vieira, “a incorporação desse questionário ao conjunto documental revela um princípio ético das práticas de arquivamento de Judith Grossmann. Ciente da necessidade de registrar e produzir a trajetória da disciplina, ela guardou um documento que, para Jacques Derrida (2001), representaria o ‘mal de arquivo’, a contraditória pulsão de morte e de destruição que convive com a pulsão arquivística de conservação da memória”.

Os arquivos espelham a época em que foram organizados e, portanto, respondem às demandas sócio-históricas. No século XXI, em meio aos projetos de digitalização de acervos realizados por diversas instituições, surge a possibilidade de se criarem arquivos colaborativos que reúnem documentos dispersos produzidos por um indivíduo, uma instituição, em torno de um ou mais eventos históricos. Exemplar dessa empreitada é o artigo sobre o arquivo em rede de um dos maiores filólogos da língua portuguesa, Manuel Said Ali (1861-1953), assinado por Thaís de Araujo da Costa, Daniele Barros de Souza, Luis Fernando da Silva Fernandes e Thairly Mendes Santos. Em meio a aportes teóricos que apontam os desafios e os limites da iniciativa, em particular o cuidado com as “ilusões de completude” ou pretensões de “biblioteca universal”, a proposta é “possibilitar maneiras outras de lidar com a falta e com a dispersão constitutivas de todo e qualquer arquivo, de democratizar o acesso a obras raras e especiais – cuja manipulação física constante poderia implicar a sua deterioração – e de, com isso, como dito, recolocar em circulação saberes por vezes esquecidos”.

Os artigos selecionados para este dossiê da Acervo demonstram de várias formas a convicção de Bouza em sua entrevista: “o arquivo nunca desilude”. Pensados para além de espaços de memória, mas como objetos, os arquivos revelam que por trás de seu pretenso ordenamento natural há também, a partir de outros olhares, desorganização de gestos originais de arquivamento. Espelham, assim, distintas experiências históricas, permitem ler a vida de outros tempos, funcionam como portas para “países distantes”. Como demonstram as investigações que aqui podem ser lidas, é preciso sensibilidade e criatividade para colocar as perguntas pertinentes, perceber intencionalidades, desnaturalizar sua pretensa ordem discursiva, driblar dispersões e esquecimentos. Acreditamos que o leitor encontrará ferramentas teóricas e inspiração para trilhar caminhos originais, tensionar os significados do arquivo em distintos contextos e apreciar seus novos sabores.


Claudia Beatriz Heynemann (Arquivo Nacional)

Nívia Pombo (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

Editoras do dossiê




Referências

ELLIOT, J. H. A Espanha e a América nos séculos XVI e XVII. In: BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina. América Latina Colonial, v. I. São Paulo: Edusp; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1998.

FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Tradução de Fátima Murad. São Paulo: Edusp, 2009.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor?In: FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: estética – literatura e pintura, música e cinema, v. III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. (1. ed., 1969).

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. São Paulo: Edusp; Minas Gerais: Editora da UFMG, 2014.

HESPANHA, António Manuel (coord.). História de Portugal: o Antigo Regime, v. 4. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.


Esta obra está licenciada com uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.