Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, mai./ago. 2024

História econômica do Rio de Janeiro | Documento

Os vestígios documentais dos conflitos e convergências entre as administrações da Leopoldina Railway e da Estrada de Ferro Rio d’Ouro

Notas de pesquisas em fundos do Arquivo Nacional

Documentary traces of conflicts and convergences between the administrations of Leopoldina Railway and Estrada de Ferro Rio d’Ouro: research notes in funds from Arquivo Nacional [National Archives of Brazil] / Huellas documentales de conflictos y convergencias entre las administraciones de Leopoldina Railway y Estrada de Ferro Rio d’Ouro: notas de investigación en fondos del Arquivo Nacional [Archivo Nacional de Brasil]

Raphael Castelo Branco da Silva

Doutorando e mestre em História Contemporânea pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.

raphael.castelo.branco.da.silva@gmail.com

Resumo

Documentação sob a guarda do Arquivo Nacional demonstra que a utilização por parte da Leopoldina Railway de uma linha férrea da Estrada de Ferro Rio d’Ouro levou a uma série de discussões. São demonstradas as estratégias implícitas da Leopoldina Railway de postergar suas obrigações contratuais, prorrogando-as sempre que possível com base em seu poder econômico. Para tanto, parte do acervo do Ministério daViação e Obras Públicas é analisada, com a transcrição de dois destes documentos.

Palavras-chave: administração pública; Estrada de Ferro Rio d’Ouro; Leopoldina Railway.

Abstract

The documentation under the custody of the Arquivo Nacional demonstrates that the use by Leopoldina Railway of a railroad line from Estrada de Ferro Rio d’Ouro led to a series of discussions. We will demonstrate the implicit strategies of Leopoldina Railway to postpone its contractual obligations, extending them whenever possible based on its economic power. To do so, part of the collection of the Ministério da Viação e Obras Públicas is analyzed, with the transcription of two of these documents.

Keywords: public administration; Estrada de Ferro Rio d’Ouro; Leopoldina Railway.

Resumen

La documentación bajo la custodia del Arquivo Nacional demuestra que el uso por parte de Leopoldina Railway de una línea ferroviaria de Estrada de Ferro Rio d’Ouro llevó a una serie de discusiones. Demostraremos las estrategias implícitas de Leopoldina Railway para postergar sus obligaciones contractuales, extendiéndolas siempre que fuera posible basándose en su poder económico. Para ello se analiza parte de la colección del Ministério da Viação e Obras Públicas, con la transcripción de dos de estos documentos.

Palabras clave: administración pública; Estrada de Ferro Rio d’Ouro; Leopoldina Railway.

Apesar dos recentes avanços na produção historiográfica, como os presentes nos trabalhos de Paula (2000); Fraccaro (2008); Sedlacek (2012) e Marinho (2015) acerca das ferrovias do estado do Rio de Janeiro, a bibliografia como um todo ainda carece de informações sistematizadas sobre como se davam o funcionamento e as interações entre as diversas empresas ferroviárias que existiram na transição do século XIX para o século XX. Isso ocorre devido a uma série de fatores. Há um interesse menor em estudar estradas de ferro no Rio de Janeiro, caso comparemos com os estudos realizados em São Paulo. Mas outro fator dificulta a investigação: a documentação fragmentada e/ou dispersa.

Neste artigo, propomos uma reflexão sobre os desafios e as dificuldades de investigar fundos que tiveram apenas um tratamento arquivístico inicial. A sigla GIFI significa Grupo de Identificação de Fundos Internos e nomeia um tipo de fundo que é uma coleção de documentos, papéis avulsos e processos que receberam apenas a identificação básica, muito pelo fato de que o Arquivo Nacional, infelizmente, carece de funcionários suficientes. Portanto, é uma urgência a realização de concursos públicos e o aumento no quadro de servidores da instituição, para assim possibilitar a catalogação de tamanha documentação.

Pesquisar em um GIFI é uma tarefa que demanda muita paciência e energia. São pacotes pesados, que contêm centenas ou milhares de páginas. É possível que o pedido feito aos funcionários não corresponda à expectativa inicial. Contudo, o contrário também pode acontecer, não é raro que um pesquisador faça um pedido de um documento com o intuito de apenas coletar informações básicas para o seu estudo e acabar por descobrir documentos que são verdadeiras pérolas que podem se tornar peças centrais em suas pesquisas. Documentos estes que podem comprovar ou desmontar hipóteses de investigação e que muitas vezes chegam nas mãos do pesquisador de forma tímida, envoltos em uma massa documental que um olhar pouco apurado poderia deixar passar.

Quando uma pessoa se propõe a pesquisar em um fundo documental com essas características, de certo modo, está procurando uma agulha no palheiro. Como as numerações muitas vezes sequer identificam o assunto, mas apenas a repartição pública da qual o documento procede, é comum que o pesquisador fique um pouco desorientado no inicío.

Neste artigo, faremos uma análise de processos depositados e, ao fim, apresentaremos a transcrição de dois documentos de forma integral, para que o leitor possa ter acesso a um dos muitos vestígios que serviram de base para a construção da narrativa apresentada.

Ao iniciarmos a análise dos documentos depositados no fundo,1 percebemos em uma leitura inicial que a interação entre duas ferrovias com propósitos distintos deu-se de forma aparentemente harmoniosa. Entretanto, ao examinarmos os meandros da documentação, observamos conflitos, discursos divergentes e muitas lacunas. Nossa hipótese inicial era de que o conflito que pudesse acontecer entre as administrações da Estrada de Ferro Rio d’Ouro e da Leopoldina Railway baseava-se em uma disputa de espaço restrito em uma localidade que cada vez mais era valorizada e particionada pela reprodução do capital. Enquanto a Leopoldina Railway tinha uma função comercial e ligação direta com o transporte de mercadorias, além de um robusto sistema de tráfego de passageiros, a Estrada de Ferro Rio d’Ouro tinha uma outra origem, que explicaremos brevemente.

Sua formação deu-se no bojo da construção do novo abastecimento de água da corte, sob a coordenação do empreiteiro Antônio Gabrielli, durante a crise hídrica da década de 1870 e 1880. Naquele período, pudemos observar um duplo movimento. Por um lado, construiu-se esta ferrovia para auxiliar nas obras de captação de água de mananciais na Baixada Fluminense. Por outro, inicia-se uma campanha pela instalação de hidrômetros pela cidade do Rio de Janeiro, rompendo com a lógica das bicas e chafarizes e enfim transformando a água em um bem passível de ser contabilizado e, como consequência, mercantilizado. Antes da construção do novo abastecimento de água, a distribuição de água potável na cidade dava-se por meio espaços de sociabilidade onde pessoas escravizadas, libertas e livres interagiam entre si. A água, vista como um bem público e necessário à vida, foi transformada em mercadoria.

A Estrada de Ferro Rio d’Ouro, que na época imperial esteve sob a administração da Inspetoria Geral de Obras Públicas da corte, apresentou uma dinâmica curiosa. A construção de grandes intervenções na natureza com o objetivo de melhorar o acesso à água para as pessoas tem como consequência a transferência de um estoque natural de água de uma região pouco habitada, a Serra do Tinguá, para outra mais densamente povoada, na qual os mananciais da Floresta da Tijuca já não conseguiam suprir as necessidades locais (Heynemann, 1995; Benchimol, 1990; Abreu et al., 1992). O acesso à água é necessário para a reprodução da vida. Isso não significa, entretanto, que sua distribuição seja igualitária. A transição do século XIX para o XX mostrou a vitória do modelo da água como mercadoria (Capilé, 2018). E qual a relação do “trem das águas” com essa lógica? E qual o papel da Leopoldina Railway em seus embates com os agentes estatais? São questões como essas que a análise dos documentos apresentados buscará responder.

A Estrada de Ferro Rio d’Ouro vivia um dilema, pois estava em um não lugar entre o abastecimento de água e o recém-inaugurado transporte de passageiros e mercadorias. O início das obras da ferrovia data de 1875, com a assinatura do contrato Gabrielli. Somente em 1883 permitiu-se a circulação de passageiros (Silva, 2021). Sua função era servir totalmente ao abastecimento de água. Seu período de expansão de infraestrutura e consolidação deu-se entre 1883 e 1906, quando foram encerradas as obras de modernização capitalista do prefeito Francisco Pereira Passos, durante a presidência de Rodrigues Alves. Nos 24 anos que denominamos de “tempo de consolidação”, a ferrovia apresentou déficit financeiro em 22 anos. Como ela não foi desmontada? O que levou uma estrada de ferro a manter-se de pé e, na década de 1920, ter em um pequeno ramal uma linha auxiliar para a Leopoldina Railway enquanto esta não cumpria suas obrigações?

Para entendermos a importância desta ferrovia, podemos estabelecer que ela possuía, em seu dilema, dois papéis: 1) auxiliar a abastecer; 2) auxiliar a expandir o espaço periurbano do Rio de Janeiro. A partir do primeiro papel, foi possível a existência do segundo. E foi só através dos recursos do Estado que uma ferrovia deficitária pôde operar. Não podemos pensar apenas de forma contabilista. O déficit era problemático para os cofres públicos, mas pior seria se o abastecimento de água fosse interrompido. A Estrada de Ferro Rio d’Ouro era uma ferrovia necessária, pois prevaleceu o pragmatismo de manter o seu funcionamento. Essa era a maior moeda de troca que a Estrada de Ferro Rio d’Ouro tinha. Com a queda da monarquia e o advento da República, a ferrovia assumiu de forma tímida a função de transportar pessoas enquanto realizava um duplo abastecimento. O de água, não diretamente, mas a partir dos trens de manutenção do sistema, e o de mercadorias, que tinham como destino a Ponta do Caju, onde, no século XIX, foram armazenadas as tubulações do novo abastecimento de água. É este espaço que, já na Primeira República, gerou toda a controvérsia que será analisada adiante. Iremos expor uma documentação burocrática, tentando reconstruir o desenrolar dos acontecimentos a partir dos papéis relativos a acordos realizados entre a diretoria da Leopoldina Railway e a Repartição de Águas, que administrava a Estrada de Ferro Rio d’Ouro. Toda a documentação está depositada no fundo OI-GIFI 4B-74, acessível ao público.

Neste fundo há o processo 412-C-94 de 1921, denominado “Requerimento da Leopoldina Railway Company Limited, pedindo prorrogação por mais dois anos, no termo de ajuste lavrado na Repartição de Águas e Obras Públicas, para o serviço de tráfego de dois trens de cargas nas linhas da E. F. Rio do Ouro”.2 Neste processo, há o ofício n. 29, de 19 de setembro de 1921, que é direcionado a Ignácio Francisco, em que a administração da ferrovia afirma que a Leopoldina Railway não conseguiu concluir suas obras de ligação entre Rosário e Porto das Caixas, assim como não possui condições de ter uma ligação com a Estrada de Ferro do Norte, apresentando problemas inclusive em suas próprias linhas. A obrigação da Leopoldina Railway era construir o trecho prometido e conservar o segmento entre a Ponta do Caju e o entroncamento com a linha auxiliar da Estrada de Ferro Central do Brasil. O governo brasileiro concedeu autorização para que a Leopoldina Railway modificasse o traçado da Linha do Norte, desde que a empresa arcasse com as obras de arte.3 O que a Leopoldina Railway fez? Nada. Sendo assim, as negociações foram interrompidas, assim como os serviços concedidos.

Para que a Leopoldina Railway não ficasse no prejuízo e tivesse o lucrativo acesso à região portuária interrompido, sua administração enviou um pedido, registrado no ofício de 21 de setembro de 1921, no qual pleiteava o acesso privilegiado à Ponta do Caju, sob jurisdição da Estrada de Ferro Rio d’Ouro. Desde 1917, já existiu a autorização para a construção de uma linha que conectasse Porto das Caixas a Rosário. O governo federal estava ciente de que a Leopoldina Railway não cumpria com as obrigações, mas, diante do seu poderio financeiro, possibilitou que a empresa utilizasse a linha da Estrada de Ferro Rio d’Ouro. Neste ofício, há uma certa confusão de informações. A Inspetoria Geral de Estradas afirma que não pode informar detalhes das operações pois a linha que agora era compartilhada estava sob administração da Repartição de Águas e Obras Públicas. A prorrogação era de responsabilidade do Ministério da Viação e Obras Públicas e, sendo a instância máxima de poder, era de lá que as decisões sairiam. A solução apresentada foi que o acordo fosse lavrado e prorrogado, para que a Leopoldina Railway tivesse acesso a um espaço privilegiado e assim conseguisse acumular recursos para acelerar a construção da ligação de apenas quarenta quilômetros. O parecer foi escrito pelo engenheiro chefe do 3° distrito, Ignácio F. de Oliveira. Ao que parece, esse termo seria provisório, pois a empresa teria condições dentro de dois anos de inaugurar o que prometera. O que veremos a seguir foi um conflito explícito entre a Leopoldina Railway e as repartições do Estado brasileiro. A Leopoldina Railway, que já estava utilizando as linhas da Estrada de Ferro Rio d’Ouro, passou a ter mais segurança na sua operação. As duas ferrovias tiveram uma operação conjunta. Nos projetos, isso era algo apenas provisório. Na realidade, a Leopoldina Railway utilizou-se de seu poder para conseguir obter vantagens do governo federal e, simultaneamente, não cumprir suas obrigações. Contudo, convém recordar que, sendo a Leopoldina Railway uma ferrovia de propriedade inglesa, o conflito não era sofisticado e ia além da dualidade entre interesse público e privado, ou estatal e empresarial.

Avancemos no tempo. Com o fim da concessão de dois anos, a Leopoldina Railway teria duas opções: renovar ou abandonar. A administração da ferrovia decidiu por outra atitude: silenciar-se. Com isso, foi aberto um processo nomeado “A Repartição de Águas comunicando terminação da concessão dada à Leopoldina Railway para trafegar nas linhas da Rio do Ouro, e pedindo instrução à repartição”.4 É uma autuação datada de janeiro de 1924. Em sua capa, há uma série de números escritos e avisos de “archivado”, o que demonstra o longo e desconhecido rumo que esses papéis tiveram antes de serem depositados no Arquivo Nacional.

Comecemos a nossa viagem entre a papelada da burocracia da Primeira República. A documentação, mesmo fragmentária, apresenta a possibilidade de reconstrução de diálogos através dos vestígios da administração. O documento 2-24 da 3° seção da Diretoria Geral do Expediente, datado de 10 de janeiro de 1924, informa aos funcionários da Repartição de Águas e Obras Públicas que, por meio do ofício interno n. 552, de 28 de dezembro de 1923, ocorreu a comunicação da concessão da Leopoldina Railway para que esta pudesse trafegar suas composições ferroviárias nas linhas da Estrada de Ferro Rio d’Ouro, ferrovia que, naquele momento, estava sob jurisdição da Repartição de Águas e Obras Públicas e era uma peça fundamental na manutenção do sistema de abastecimento de água da então capital federal, além de seu espaço periurbano.

O objetivo da Leopoldina Railway não era simples. A administração da ferrovia buscou pelas vias institucionais a autorização para realização de manobras ferroviárias que possibilitassem o tráfego entre a ponte da Praia do Caju, sob administração da Estrada de Ferro Rio d’Ouro, e Benfica. O prazo pleiteado pela Leopoldina Railway era de dois anos a partir do dia 26 de novembro de 1921, conforme informa o aviso n. 228 do Ministério da Viação e Obras Públicas, publicado em 24 de novembro de 1921.

Entretanto, em 25 de novembro de 1923, passados os dois anos da autorização de circulação de composições, a administração da Leopoldina Railway não fez nenhum pedido formal de prorrogação ou de encerramento. Sendo assim, a Repartição de Águas e Obras Públicas necessitava de instruções sobre como proceder diante do caso. Funcionários da repartição procuraram o ministro e pediram informações sobre o que fazer. O relator do processo informou então que a documentação, doravante nomeada como 412-C-21, 8441-21 e 300-22, deveria ser copiada e “subida”, ou seja, levada para uma instância superior para resolução. A papelada chegaria então às mãos do próprio ministro.

Através das “conversas” entre os funcionários por meio da documentação, é possível fazer uma linha do tempo de como foram as negociações que envolveram aquele pequeno mas importante trecho ferroviário. O processo ficou parado por um período. Somente em 14 de janeiro de 1924, ele voltou a ter andamento. Afirma-se, em resposta ao ofício original do ano anterior, que a administração da Leopoldina Railway tomou conhecimento da situação e que tomaria providências sobre o que fazer. A resposta segue no próprio documento, no qual a Inspetoria de Estradas declara que a Leopoldina Railway já estava sob jurisdição de um acordo feito em 23 de novembro de 1919, com o prazo de dois anos, e que este fora renovado. A possibilidade de uma segunda renovação que beneficiasse a Leopoldina Railway dependia, portanto, de mais estudos e também de justificativas para que mantivessem a concessão do uso da linha da Estrada de Ferro Rio d’Ouro, o que não significava necessariamente uma atitude prejudicial a esta, devido ao baixo tráfego de suas linhas, configurando-se, portanto, como uma ferrovia de baixa atividade, ao menos em comparação com a Leopoldina Railway ou a Estrada de Ferro Central do Brasil.

O documento foi revisitado no dia 22 de janeiro de 1924 e há uma curiosa indicação manuscrita de “fila!”. Essa anotação deixa uma dúvida, pois não informa se o processo deveria tramitar com mais ou menos rapidez. É provável que existissem, naquele momento, no Ministério da Viação e Obras Públicas, processos que demandavam mais urgência. Entretanto, o processo tramitou com uma certa agilidade, pois no dia 24 de janeiro de 1924 ele é revisitado para que dois dias depois fosse enviado para a Inspetoria de Estradas um documento sobre a situação da interação entre a Leopoldina Railway e a Repartição de Águas e Obras Públicas, que administrava a Estrada de Ferro Rio d’Ouro.

Seguimos em nossa tentativa de reconstruir as negociações através dos vestígios dos ofícios. No dia 29 de janeiro de 1924, por meio dos documentos 60-C-24 e 748-24-A, a Leopoldina Railway informa não poder concluir a construção da conexão ferroviária entre Rosário e Porto das Caixas, linha que fora prometida à Inspetoria de Estradas e que era o motivo principal do pedido de utilização do trecho entre a Ponta do Caju e Benfica. A administração da Leopoldina Railway faz um pedido direto ao ministro, pedindo a prorrogação por mais dois anos, ou seja, uma segunda prorrogação, com base no termo de ajuste lavrado na Repartição de Águas e Obras Públicas. Entretanto, a diretoria da Leopoldina Railway não informa o tamanho e a tonelagem dos trens de carga que utilizariam as linhas da Estrada de Ferro Rio d’Ouro. Isso pode ter gerado preocupações, pois a linha era de bitola métrica, porém de via singela, ou seja, não era duplicada. Em que medida essa prorrogação poderia desviar a função original da linha administrada pela Repartição de Águas e Obras Públicas?

Em um ofício não numerado, a Inspetoria Geral de Estradas informa a declaração recomendada pelo aviso n. 10, de 20 de janeiro de 1924. Neste interessante documento, podemos observar um relator preocupado com o andamento das negociações. O funcionário que redigiu o ofício afirma que a Inspetoria de Estradas deveria ser consultada sobre os procedimentos, mas que a Repartição de Águas e Obras Públicas também poderia oferecer um parecer favorável à proposta da Leopoldina Railway. Em 6 de março de 1924, apresenta-se um ofício com tais reinvindicações. No mesmo dia sai a resposta por parte do Ministério da Viação e Obras Públicas. Era preciso que as duas repartições negociassem para a solução do imbróglio. O ministro apenas afirma que está de acordo com as decisões da Repartição de Águas, mas que ainda existia uma série de considerandos a serem analisados, conforme veremos a seguir.

O ofício de 12 de março de 1924 é, talvez, um dos mais importantes, pois finalmente são enviados para os funcionários da diretoria da Estrada de Ferro Rio d’Ouro, sob a administração da Repartição de Águas e Obras Públicas, documentos que formalizavam o pedido de mais uma prorrogação e é apresentado um termo de ajuste para o tráfego de carga, deixando implícito que tais operações em nada prejudicariam a Estrada de Ferro Rio d’Ouro, que era uma peça fundamental no abastecimento de água no Rio de Janeiro. Por meio dos documentos 2225-24 e 60C-24, a Repartição de Águas e Obras Públicas devolve o requerimento com os pedidos da Leopoldina Railway e concede o parecer: concordava-se com os termos.

O ofício-resposta é de 19 de julho de 1924, e é um dos momentos mais tensos da negociação. A administração da Leopoldina Railway dá um parecer favorável aos termos de tráfego impostos aos seus trens de carga para utilizar a linha da Estrada de Ferro Rio d’Ouro por dois anos. A aceitação desses termos dá-se com a “promessa” de que tal utilização em nada impactaria as funções da ferrovia detentora da linha, assim como seus serviços auxiliares. O abastecimento de água não é citado de forma direta como uma preocupação, mas a prudência nos termos e a demora nas negociações nos leva a cogitar que o papel que a Estrada de Ferro Rio d’Ouro tinha no abastecimento de água era uma poderosa moeda de troca para uma negociação. Entretanto, a Leopoldina Railway também tinha a sua própria moeda de troca, pois era uma ferrovia de alta rentabilidade e com um tráfego intenso, com um caixa financeiro que a administração da Estrada de Ferro Rio d’Ouro sequer poderia conceber, dada sua característica deficitária. Neste ofício, podemos observar o poder de negociação dos administradores da Estrada de Ferro Rio d’Ouro. A Repartição de Águas e Obras também coloca seus termos para a negociação, afirmando ser indispensável que, a partir do novo consentimento para o acordo, não sejam repetidos os termos de ajuste de 23 de dezembro de 1921, mas que um novo acordo seja lavrado, com novas obrigações para ambas as partes, sendo a Repartição de Águas e Obras Públicas responsável por inserir um terceiro ator na negociação: a Inspetoria Federal de Portos, Rios e Canais.

A Repartição de Águas e Obras Públicas possuía terrenos e imóveis na Ponta do Caju e estava disposta a entregar tais propriedades, desde que houvesse uma indenização. Isso também serve para a Repartição de Portos, pois, nas entrelinhas do acordo, a administração portuária estaria sendo prejudicada, já que o espaço utilizado continha terrenos e imóveis sob sua jurisdição e que corriam risco de, por exemplo, serem demolidos em caso de obras feitas pela Leopoldina Railway nas linhas da Estrada de Ferro Rio d’Ouro para otimização do tráfego, se fosse necessário. Essa preocupação tinha em vista a defesa das propriedades da Repartição de Portos e o fato de que a expansão do acordo de tráfego da Leopoldina Railway nas linhas da Estrada de Ferro Rio d’Ouro poderia interferir nas obras de prolongamento do cais. Não encontramos documentação neste processo que demonstre que tais obras aconteceram, oferecendo risco às propriedades das duas repartições. Mesmo com as negociações encerradas por parte da Repartição de Águas e Obras Públicas, existiu este sinal de alerta na negociação.

No mesmo dia 19 de julho 1924 foi emitido um ofício-resposta por parte do Ministério da Viação e Obras Públicas. Afirma-se que, tendo em vista as informações apresentadas por ambas as partes, o ministério concordava com os termos e autorizava a Repartição de Águas e Obras Públicas a lavrar o acordo. O documento voltou para a fila do ministério, até que no dia 24 de julho de 1924 há um sinal de consenso, pois consta uma resposta positiva no mesmo papel, com o carimbo de “expedido” da Inspetoria de Estradas e da Inspetoria de Águas e Obras Públicas. O documento passou, portanto, por ambas as instâncias.

Isso não significou que finalmente o acordo entre as duas estradas de ferro estivesse finalizado. Um ofício da Repartição de Águas e Obras Públicas contém informações de que os membros da repartição não estavam a par de todos os detalhes e pede, então, instruções para o ministro Francisco Sá. O ofício n. 10 da Secretaria de Viação e Obras Públicas, subordinada à 3° Seção da Diretoria Geral de Expediente, que estava anexado ao processo, declarava o fim dos termos de concessão de 1919 e, por consequência, a necessidade de um novo termo de ajuste, no qual poderia ser considerada ou não a extensão do prazo, pois uma das partes, a Leopoldina Railway, estava faltando com seus compromissos.

Cabe prestar atenção a um ofício interno da Inspetoria Federal de Estradas, que tem como destinatário o ministro da Viação e Obras Públicas. Neste documento, afirma-se que os problemas dos termos de ajuste entre a Leopoldina Railway e a Estrada de Ferro Rio d’Ouro vão além de discussões jurídicas e contratuais. Ocorria que, com a celebração da primeira prorrogação do prazo de ajuste, a Leopoldina Railway simplesmente não cumpria com suas obrigações de construir uma infraestrutura ferroviária que conectasse as localidades de Rosário e Porto das Caixas, ficando a empresa de certo modo “confortável” em utilizar a linha da Estrada de Ferro Rio d’Ouro e o sistema de barcaças. A inspetoria não tinha ao que se opor juridicamente, mas o fato é que a Leopoldina Railway estava utilizando ad aeternum um dispositivo contratual para não construir a ligação ferroviária que era sua contrapartida no primeiro acordo. Em nossa interpretação, a justificativa apresentada pela administração da Leopoldina Railway tinha uma lógica controversa e questionável.

Como faltavam recursos para a construção do trecho ferroviário que era uma obrigação no primeiro contrato, era necessário, de forma provisória, utilizar a linha de uma outra ferrovia para que, com o tempo, fosse possível acumular um caixa. Portanto, esses recursos só entrariam em caixa quando a ligação entre Rosário e Porto das Caixas ficasse pronta. Mas o provisório tornou-se definitivo. Como não havia recursos, e a utilização dos trilhos da Estrada de Ferro Rio d’Ouro não era suficiente para gerar tal retorno, a ligação não era finalizada nunca. Sendo assim, sem a conclusão do trecho prometido, a Leopoldina Railway só teria como alternativa utilizar a linha da Estrada de Ferro Rio d’Ouro. É um ciclo vicioso infinito que servia de pretexto para a Leopoldina Railway não construir o que tinha prometido e utilizar uma ferrovia de propriedade estatal, cuja função era auxiliar no abastecimento de água.

Em outro ofício não numerado e anexado ao processo, protocolado na Diretoria Geral de Expediente, somos informados de que a Leopoldina Railway não conseguiu sequer concluir a rede necessária para conectar a linha férrea do então estado do Rio de Janeiro com a cidade do Rio, então capital federal. A proposta feita neste ofício é de um aumento no número de trens de cargas que utilizavam as linhas da Estrada de Ferro Rio d’Ouro. Um sacrifício que seria necessário para que a Leopoldina Railway pudesse gerar caixa para construir o que tinha prometido.

O processo interno 2-24 com o aviso n. 111 da Secretaria de Viação e Obras Públicas, datado de 1º de agosto de 1924, parece ter dado um fim ao imbróglio. Afirma que atendia o requerimento da Leopoldina Railway e que a diretoria da Repartição de Águas e Obras Públicas concordava com a proposta de utilização das linhas da Estrada de Ferro Rio d’Ouro. Mas existia uma nova contrapartida que deveria ser cumprida pela Leopoldina Railway. Além da inauguração do prometido trecho ferroviário, também haveria a assinatura de um acordo à parte com a Inspetoria Federal de Portos, Rios e Canais. O motivo é simples: era necessária uma garantia jurídica de que nenhuma intervenção que pudesse prejudicar a construção e o prolongamento do cais do porto seria feita.

O problema dos agentes estatais desloca-se da questão da utilização da linha de trem para a possibilidade, mesmo que hipotética, de algo prejudicar as obras no cais do porto. A preservação da Estrada de Ferro Rio d’Ouro já não era mais uma pauta. O principal teatro de operações para o abastecimento de água localizava-se nos mananciais da Baixada Fluminense. Naquelas localidades, que também eram servidas pela Estrada de Ferro Rio d’Ouro, o abastecimento seguia a todo vapor. Na Ponta do Caju também existiam operações que envolviam a ferrovia e as manobras de abastecimento. Identificamos um receio de, em caso de possíveis obras da Leopoldina Railway, o abastecimento de água ser prejudicado. Entretanto, não há relatos de problemas com o fornecimento de água enquanto os trens de carga da Leopoldina Railway trafegavam nas linhas da Estrada de Ferro Rio d’Ouro, nem de que tais máquinas tenham causado problemas nas operações de abastecimento, pois este fato certamente apareceria nas discussões internas das repartições e do Ministério da Viação e Obras Públicas.

Por fim, apresentamos a transcrição de dois documentos da Repartição de Águas e Obras Públicas. O primeiro ofício é datado de 9 de novembro de 1921, nomeado “Prorrogação, por dois anos, do termo de ajuste entre esta repartição e a Leopoldina Railway” e assinado pelo ministro da Viação e Obras Públicas, J. Pires do Rio. O documento versa sobre a petição da Leopoldina Railway para prorrogação da utilização de linhas da Estrada de Ferro Rio d’Ouro:

Encaminhando às mãos de V. Ex.a a petição inclusa datada de 6 de setembro deste ano, dirigida pela Companhia Leopoldina Railway a V. Ex.a, e a mim remetida pela Inspetoria Federal das Estradas, na qual aquela companhia pede, por motivos que na mesma alega, que lhe seja concedida prorrogação, por mais dois anos, do termo de ajuste lavrado nesta repartição, no dia 25 de novembro de 1919, para o serviço do tráfego dos seus trens de carga nas linhas da Estrada de Ferro do Rio d’Ouro, tenho a honra de informar nada haver a opor à solicitada prorrogação, por dois anos, por parte deste Departamento de Serviço Público, do supracitado termo de ajuste.

O segundo ofício da Repartição de Águas e Obras Públicas é datado de 12 de janeiro de 1922 e nomeado “Prorrogação, por mais dois anos, dos serviços do tráfego dos trens da Leopoldina Railway nas linhas da Estrada de Ferro do Rio do Ouro”, também assinado pelo ministro da Viação e Obras Públicas, J. Pires do Rio. Este documento confirmava a prorrogação do benefício concedido sobre o uso do leito da Estrada de Ferro Rio d’Ouro por parte da Leopoldina Railway, para a utilização de cargueiros e necessidades.

Levo ao conhecimento de V. Ex.a que, em cumprimento ao determinado no aviso n. 228-/E-/3 de 24 de novembro de 1921, foi lavrado no dia 23 de dezembro último, o termo de ajuste que prorroga por mais dois anos o existente entre esta repartição e a Leopoldina Railway, assinado em 25 de novembro de 1919, para os serviços do tráfego dos trens de cargas da mesma companhia nas linhas da Estrada de Ferro do Rio do Ouro, e bem assim a utilização da ponte marítima da Ponta do Caju.

Não é de se espantar que possa ter existido a possibilidade de abandono da Ponta do Caju por parte da Repartição de Águas e Obras Públicas, tendo em vista que os reservatórios onde a água era acumulada encontravam-se distantes dali e eram servidos pelos trens de manutenção dos serviços hidráulicos. Aqueles terrenos da região portuária só pertenciam a Estrada de Ferro Rio d’Ouro porque foi a partir de lá que as tubulações para a construção do novo abastecimento de água da corte desembarcaram, ainda no período do Segundo Reinado, quando foi firmado o contrato com o engenheiro Antônio Gabrielli. A ponta de linha não era mais utilizada para o desembarque de tubulações, mas continuou sob a administração da Estrada de Ferro Rio d’Ouro. E, por muito tempo, permitiu a conexão entre localidades produtoras da Baixada Fluminense e a região portuária. Isso poderia ser sacrificado em prol do projeto de expansão do cais do porto.

Fontes

Arquivo Nacional. Ministério da Viação e Obras Públicas (MVOP). Requerimento da Leopoldina Railway Company Limited, pedindo prorrogação por mais dos anos, no termo de ajuste lavrado na repartição de Águas e Obras Públicas, para o serviço de tráfego de dois trens de cargas nas linhas da E. F. Rio d’Ouro. Documentação depositada na caixa OI-GIFI-4B-74.

Arquivo Nacional. Ministério da Viação e Obras Públicas (MVOP).A Repartição de Águas comunicando terminação da concessão dada à Leopoldina Railway para trafegar nas linhas da Rio do Ouro, e pedindo instrução à repartição. Documentação depositada na caixa OI-GIFI-4B-74.

Referências

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FRACCARO, Gláucia. Morigerados e revoltados: trabalho e organização de ferroviários na Central do Brasil e na Leopoldina, 1889-1920. Dissertação (Mestrado em História) ‒ Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2008.

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Notas

1 Arquivo Nacional, Ministério da Viação e Obras Públicas (MVOP). Documentação depositada na caixa OI-GIFI-4B-74.

2 Arquivo Nacional, MVOP. Requerimento da Leopoldina Railway Company Limited, pedindo prorrogação por mais dos anos, no termo de ajuste lavrado na repartição de Águas e Obras Públicas, para o serviço de tráfego de dois trens de cargas nas linhas da E. F. Rio d’Ouro. Documentação depositada na caixa OI-GIFI-4B-74.

3 Nome dado na época a túneis, viadutos, pontes e demais tipos de obras.

4 Arquivo Nacional, MVOP. “A Repartição de Águas comunicando terminação da concessão dada à Leopoldina Railway para trafegar nas linhas da Rio do Ouro, e pedindo instrução à repartição”. Documentação depositada na caixa OI-GIFI-4B-74.


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