Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, maio/ago. 2024

História econômica do Rio de Janeiro | Dossiê temático

O Rio de Janeiro e as zonas atlânticas de produção de alimentos (século XVII)

Rio de Janeiro and the Atlantic food production zones (17th century) / Rio de Janeiro y las zonas de producción de alimentos del Atlántico (siglo XVII)

Lara de Melo dos Santos

Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora na Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (Seeduc-RJ), Brasil.

larademelosantos@gmail.com

Resumo

Abordando especificamente o tema da produção de alimentos, o artigo trata da capitania do Rio de Janeiro no século XVII, não de forma isolada, mas em perspectiva comparada, buscando identificar os aspectos comuns que a economia atlântica moderna definiu entre as zonas abastecedoras desta e de outras três importantes cidades portuárias da época.

Palavras-chave: Rio de Janeiro; história atlântica; produção de alimentos; farinha de mandioca.

Abstract

Specifically addressing the topic of food production, the paper deals with the captaincy of Rio de Janeiro in the 17th century, not in isolation, but in a comparative perspective, seeking to identify the common aspects that the modern Atlantic economy defined between the supplying zones of this and three other important port cities of the time.

Keywords: Rio de Janeiro; Atlantic history; food production; cassava flour.

Resumen

Abordando específicamente el tema de la producción de alimentos, el artículo aborda la capitanía de Río de Janeiro en el siglo XVII, no de forma aislada, sino en una perspectiva comparada, buscando identificar los aspectos comunes que la economía atlántica moderna definió entre las zonas proveedoras de ésta y otras tres importantes ciudades portuarias de la época.

Palabras clave: Rio de Janeiro; historia atlântica; producción de alimentos; harina de yuca.

Em grande parte, os problemas impostos ao campo das pesquisas em história econômica do Rio de Janeiro colonial são relacionados às fontes. Mesmo com o avanço dos diversos projetos de levantamento, identificação e digitalização do acervo documental referente ao Brasil em arquivos nacionais e portugueses, a produção das últimas duas décadas mostra ainda, por esse motivo, uma clara concentração das investigações no século XVIII, permanecendo praticamente desconhecidos os dois séculos iniciais da ocupação colonial da capitania. Em um artigo hoje considerado clássico (e que constitui, aliás, um dos mais notáveis esforços de pesquisa na área), por exemplo, o geógrafo Maurício de Almeida Abreu sublinha bem as dificuldades na coleta de dados relativos à lavoura canavieira, que assumia crescente importância na vida econômica e social da capitania no século XVII: “Embora os engenhos fluminenses contassem com livro de registros que detalham a produção, receita, despesa e o pagamento dos dízimos, como atestam alguns testamentos e inventários”, ele explica, “a verdade é que essa documentação praticamente desapareceu” (Abreu, 2006). Tamanha indisponibilidade de dados pode se tornar um problema ainda maior no caso do estudo de atividades econômicas ditas “secundárias”, o que torna o antigo mundo rural fluminense, nas palavras do autor, um enigma, um “quebra-cabeça” a ser resolvido.

Ainda que, na lida permanente com o problema das fontes, este pequeno estudo não se construa, no entanto, a partir de uma busca exaustiva de fontes arquivísticas sobre o objeto escolhido ‒ a capitania do Rio de Janeiro no século XVII. Ao contrário, trata-se, sobretudo, de uma análise dos dados, em grande parte já publicados, sobre as características de sua economia ‒ e de um de seus setores em particular ‒ no contexto mais amplo que então integrava. Concebido como parte de uma pesquisa maior, que tratava da centralidade das técnicas e da produção da farinha de mandioca na formação do mundo atlântico, o artigo se volta especificamente para o tema das áreas de produção de alimentos. A intenção é demonstrar como, no período estudado, a capitania do Rio de Janeiro organizou a sua economia de abastecimento em moldes semelhantes aos de outras regiões do mundo atlântico que cumpriam, naquele contexto, a mesma função.

Hinterlândias da mandioca

Em uma definição simplificada, a expressão hinterland (ou hinterlândia) significa “a área de influência econômica direta de uma grande cidade”, um território, não obrigatoriamente, mas frequentemente contíguo a um centro urbano de grande porte, no interior do qual as principais atividades econômicas são diretamente relacionadas a este centro. Embora o termo tenha ingressado com força no vocabulário das ciências sociais apenas na década de 1980, quando se torna uma referência quase obrigatória no debate centro-periferia, a ideia que ele propõe informa, antes, o próprio pensamento sobre o nascimento das cidades, sempre relacionadas a um centro produtor e distribuidor de alimentos e outros serviços (Borges, 2022). A distância, no tempo e no espaço, de exemplos como os centros italianos de produção de alimentos para a Roma Antiga, o Império Inca no século XIII, as cidades italianas do século XIV e as zonas do oeste que forneciam alimento para o sul algodoeiro dos Estados Unidos no século XIX, ilustra bem a universalidade desse tipo de estrutura (Braudel, 2005; Mazoyer, 2010; Wolf, 1982).

Aqui, essa ideia será usada para introduzir o estudo das zonas abastecedoras de alimentos ligadas a quatro importantes cidades do circuito atlântico. No Brasil, e depois na África Centro-Ocidental, hinterlândias caracterizadas pelo predomínio quase absoluto de um único cultivo, o da mandioca, constituíram-se, ao longo do século XVII, em torno das cidades portuárias de Salvador, Rio de Janeiro, Recife e Luanda.

As mais antigas e relativamente estudadas são as que se desenvolvem, nas primeiras décadas do século, no entorno das cidades portuárias de Salvador e de Luanda. Para o caso da Bahia (e também do Rio de Janeiro, como se verá a seguir), o mais importante e consistente estudo é a tese do historiador brasileiro Francisco Carlos Teixeira da Silva, que projetou para o século XVIII uma formulação já esboçada por Stuart Schwartz em relação ao século anterior, identificando dois núcleos produtores de farinha de mandioca para a abastecimento da capital: o primeiro constituído pelas freguesias de Maragogipe, Nazareth das Farinhas, Jaguaripe e Itaparica, no Recôncavo baiano; o segundo pelos distritos de Cairu, Boipeba e Camamu, localizados no litoral ao sul da cidade (Schwartz, 1988, p. 83-86; Silva, 1990, p. 123-166).

Na mesma época, uma estrutura semelhante parece ter se desenvolvido em Angola, onde a agricultura intensiva da mandioca dominava os arimos localizados nas encostas dos rios Dande, Bengo e Cuanza, que faziam a ligação entre o litoral e o interior. Especialmente as propriedades ocupadas pelos jesuítas no vale do rio Dande no século XVII são reiteradamente mencionadas como campos de cultivo regular da mandioca, enquanto na região do Bengo, em 1660, ela era descrita como “a principal espécie”.1 Em sua “Descrição da África”, publicada em Amsterdã em 1686, o cronista holandês Olfert Dapper apontava o entorno de Luanda como uma “área primária” de produção do gênero, indicando como razões para esse cultivo a infertilidade do solo (quer dizer, a impropriedade para outras culturas), a proximidade da cidade como mercado e a pressão dos portugueses sobre os nativos para produzirem provisões para São Paulo de Luanda (Dapper apud Carter, 1992, p. 9).

Outros núcleos, sobre os quais existe relativamente menor investimento de pesquisa, são os que se formam no recôncavo adjacente à cidade do Rio de Janeiro, no interior da capitania de Pernambuco. Sobre o Rio de Janeiro, o mais importante trabalho é, novamente, a tese de Francisco Silva, que documentou a constituição, ao longo do século XVIII, de uma “vigorosa policultura de alimentos”, com forte concentração do cultivo da mandioca (“um grande cinturão mandioqueiro”) nas freguesias de Jacutinga, Santíssimo Sacramento, Itaboraí e Pilar do Iguaçu (Silva, 1990, p. 166-177). Sempre em diálogo com este trabalho referencial, Denise Demétrio e Nielson Bezerra desenvolveram pesquisas empíricas que projetam as mais importantes conclusões do trabalho de Silva para trás e para frente, demonstrando como, no cenário de uma cultura de alimentos pujante e múltipla, a farinha de mandioca desempenhou papel central no estabelecimento de conexões entre o Atlântico e o Recôncavo da Guanabara, desde o século XVII até o XIX (Demétrio, 2008; Bezerra, 2010).

Embora a localidade não tenha sido objeto de estudo tão minucioso quanto o de Silva, de acordo com as pesquisas de Antonio Carlos Sampaio, em Pernambuco o sistema baiano aparentemente se repete, conformando pelo menos duas importantes áreas produtoras de mandioca “entre o final do 600 e o início do seguinte”. A primeira, “mais longínqua”, constituída pelas freguesias de Santo Antão, São Lourenço e Tracunhaém; a segunda, inserida na principal região açucareira da capitania, engloba as freguesias de Ipojuca, Serinhaém, Muribeca e Cabo. Embora se tenha falado dessa especialização só no final do XVII, quase todas essas localidades já constavam nos relatórios produzidos pela administração holandesa na década de 1630, com a finalidade de identificar as principais “roças” produtoras de mandioca para abastecimento de seus contingentes militares (Sampaio, 2014, p. 390-391; Nascimento, 2020). A especialização dessas regiões na produção da farinha de mandioca aparece também na documentação camarária, toda marcada, na segunda metade do século, pelas constantes requisições de farinha de mandioca para aprovisionamento das tropas por parte do governo-geral (Curvelo, 2014, p. 81). Apesar de diversas diferenças atribuídas aos contextos e especificidades locais, todas as áreas compartilhavam de algumas características que marcaram decisivamente a constituição e o funcionamento dos principais núcleos produtores.

A primeira é a disposição espacial das terras de cultivo em função da existência de uma rede fluvial de comunicação com o centro, isto é, com a cidade portuária em torno da qual a produção se organiza ‒ um traço comum às áreas produtoras de alimentos também em outros contextos. Falando especificamente sobre a África, David Eltis destacou a importância do acesso aos rios (o Senegal, o Gâmbia, o Níger, o Cross e os já mencionados Bengo e Cuanza, circundados, desde as primeiras décadas do XVII, por plantações de mandioca) como um fator decisivo para a circunscrição das áreas de produção comercial de alimentos na época moderna (Eltis, 2013, p. 45). Em Angola, a farinha e o feijão que abasteciam Luanda eram provenientes dos arimos que havia no seu hinterland, “geralmente instalados junto aos grandes rios, Dande, Bengo e Cuanza, os quais, por sua vez eram utilizados para a canalização aos produtos até a cidade” (Venâncio, 1996, p. 57).

No Brasil, essas características se repetem em pelo menos duas regiões. Assim, na Bahia, “toda a freguesia [onde se localiza Nazareth das Farinhas] era cortada por rios navegáveis, particularmente pelo Jaguaripe, que permitiam que se alcançasse Salvador em sumacas ou lanchas com um dia de viagem enquanto

as unidades produtivas de mandioca na capitania de Ilhéus ocupavam as margens dos rios navegáveis nos territórios das freguesias de Cairu, Boipeba, Camamu, São Jorge dos Ilhéus […]. Por não haver caminhos facilmente transitáveis por terra, [...] todo o transporte de farinha era feito por embarcações de pequeno e médio porte, como canoas, lanchas, sumacas e patachos, através da ação dos denominados regatões, comerciantes embarcados que compravam a produção diretamente da mão dos produtores, nos portos espalhados às margens dos rios, ocupados por roças de mandioca. (Dias, 2009, p. 66)

No Rio de Janeiro,

as 25 freguesias produtoras de alimentos localizadas no Recôncavo e Sertão da Capitania eram todas voltadas para a Baía de Guanabara e tributárias dos inúmeros rios que se constituíam no caminho natural para o mar. [...]. A distribuição destas áreas de cultivo mostra claramente como os rios que desembocam do fundo da baía da Guanabara desempenhavam um papel chave na circulação da farinha. Os rios São João de Meriti, Sarapuí e Iguaçu, de um lado da baía, e Macacu, Guapi e Guaraí, do outro lado, apresentavam um intenso movimento comercial. Só Cachoeiras de Macacu tinha 24 postos visitados por saveiros e barcos, enquanto em Pilar do Iguaçu mais de 100 barcos transportavam exclusivamente mantimentos. (Silva, 1990, p. 167-172)

A segunda característica importante dessas áreas é a sua frequente regulação por legislação específica, isto é, determinações legais emitidas pelos órgãos governamentais com vistas ao fomento da produção ou da especialização. Alcançando os vários espaços em diferentes modalidades, esses propósitos regulatórios se concretizam, entre meados do século XVII e as primeiras décadas do seguinte, por meio de uma série de expedientes que combinavam medidas proibitivas de outras culturas, leis de obrigação ou incentivo da produção através da aplicação de penas, da concessão de “prêmios” ou, ainda, por meio do estabelecimento de contrato comerciais.

Exemplos do primeiro caso, relativamente frequentes nas leis que tinham validade em todo o território da colônia, parecem ser mais comuns nas regiões produtoras da Bahia. Nessas áreas, decretos expedidos pelo governo-geral proibiram o cultivo do tabaco nas vilas de Boipeba e Cairu em 1656, a “construção de engenhos” nas vilas de Cairu, Boipeba e Camamu em 1673 ou, novamente, o plantio do tabaco na vila de Maragogipe em 1686 e em 1704. Mas exemplos surgem também no Recife, onde uma determinação régia proibiu, em 1704, o cultivo da cana-de-açúcar “a lavradores com menos de seis escravos”, impondo, paralelamente, a obrigatoriedade do cultivo da mandioca àqueles que possuíssem menos de três.2 Na capitania da Bahia, a muito referenciada “lei da mandioca” ‒ uma provisão passada pelo governo-geral pela primeira vez em 1688, obrigando todos os moradores do Recôncavo ao plantio de “quinhentas covas por escravo de serviço” ‒ foi reeditada ao menos 15 vezes; e pelo menos uma, em 1703, na capitania do Rio de Janeiro, onde já em 1646 um edital emitido pela Câmara da cidade obrigava “os pequenos lavradores” ao cultivo exclusivo da mandioca.3 A frequente repetição dessas medidas constitui, de acordo com a compreensão consensual dos pesquisadores da história da colônia, um forte indício das resistências ao seu cumprimento e, no conjunto, elas revelam o paradoxo que havia entre a centralidade da agricultura da mandioca para o funcionamento da própria economia açucareira e o seu evidente desprestígio em termos comerciais, determinado também pelo tabelamento de preços característico da política econômica da época.

Uma política de constrangimento à produção relacionada ao pagamento de incentivos ou prêmios pode ter sido particularmente importante nas possessões lusas em Angola, onde a consolidação de uma agricultura “de subsistência” baseada na mandioca nas primeiras décadas do século XVII parece estar diretamente relacionada a uma política de concessão de títulos de sesmarias como contrapartida da produção do gênero. Em seu História geral das guerras angolanas, sem dúvida uma das mais importante fontes para o estudo da história de Angola nessa época, o militar português Antonio de Oliveira Cadornega registrou que o programa, que previa inclusive a “cassação” de terras já ocupadas em caso de descumprimento da condição, estava previsto já no regimento dos governadores Luís Mendes de Vasconcelos, de 1616, e João Correia, de 1621, colocando-se em prática, contudo, apenas no governo de Fernão de Souza, que administrou a possessão lusa entre 1624 e 1630 e foi apontado, por isso, como o principal responsável não apenas pela efetiva introdução do cultivo da mandioca como pela própria independência, certamente temporária, em relação aos volumes importados a partir do Brasil. “Até aquela data”, ele explica, “nada era cultivado em Angola pelos brancos, para a sua alimentação, ia tudo do Brasil. Fernão de Souza conseguiu a cultura das terras e deve datar desta época a introdução da mandioca em Angola” (Cadornega, 1972, p. 510).

O terceiro instrumento de estímulo à produção foram os “contratos”, ou “editais”, uma espécie de prática fiscal que prescrevia a compra, por parte de instâncias governamentais civis ou militares, de quantias preestabelecidas de farinha de mandioca aos produtores de uma determinada região, por valores tabelados, sempre com a finalidade de atender ao municiamento dos exércitos. Enquanto política de Estado, esse tipo de requisição compulsória de cotas fixas de alimentos para fins de aprovisionamento militar era amplamente disseminada no mundo moderno, tendo sido muito utilizada, por exemplo, pelos espanhóis nos Países Baixos, durante a Guerra dos Trinta Anos, e na Nova Espanha, onde o sistema de venda forçada de mercadorias era conhecido como repartimiento de diñero (Mello, 2001, p. 229; Puntoni, 2017, p. 160). No território do império colonial português, um fator decisivo foi a guerra luso-holandesa, que transformou por completo as práticas de aprovisionamento dos exércitos em todos os espaços por ela afetados.

Isso porque, até o início do século XVII, a colônia não dispunha de tropas regulares próprias e, à exceção dos contingentes que vinham com as armadas, a defesa da terra ficava quase completamente a cargo das tropas de ordenanças. Foi precisamente a guerra contra os holandeses que provocou a reestruturação do aparato militar da colônia. Em 1625, depois da retomada da cidade aos holandeses, formou-se em Salvador o primeiro corpo de infantaria paga, o terço do Presídio da Bahia, composto por mil soldados. Um segundo terço foi criado em 1631 e passou a ser chamado “terço novo”, em oposição ao anterior, então denominado “terço velho”. Além disso, as guerras holandesas implicaram a formação de outros dois terços especiais, com o dos negros de Henrique Dias e o dos índios de Felipe Camarão (Puntoni, 1999, p. 149).

Em termos de aprovisionamento, as consequências se fizeram sentir através do chamado “Conchavo das Farinhas”, um contrato que o governo-geral impôs às Câmaras das vilas de Cairu, Boipeba e Camamu para compra de farinha de mandioca por preço tabelado. Estabelecido pelo governador Diogo Luís de Oliveira em 1630, o contrato atendia declaradamente às necessidades de municiamento da guarnição das tropas regulares do presídio da cidade e ainda as da fortaleza do Morro de São Paulo, criada também no contexto da tomada da cidade pelos holandeses, em 1624, e, embora tivesse seu período de vigência previsto apenas enquanto durasse a ocupação das capitanias do norte, vigorou efetivamente, ainda que sob reiterados protestos por parte dos produtores baianos, até o ano de 1708 (Vilhena, 1969; Puntoni, 1999; Dias, 2009).

Paralelamente, e fora do alcance desse tipo de regulamentação, quantidades extraordinárias de farinha de mandioca produzida nas capitanias do Rio de Janeiro, de Pernambuco e da Bahia foram requisitadas para alimento das forças de defesa de outras praças portuguesas ao longo do século XVII, como mostram os exemplos emblemáticos da expulsão dos franceses do Maranhão, que exigiu seis mil alqueires de farinha comprada no Recife (Mello, 2001, p. 228); da fundação da Colônia do Sacramento, que, a partir de 1680, exigiu periódicos envios de farinha das capitanias costeiras do Rio e da Bahia; e a de Luanda, cuja retomada aos holandeses, em 1648, dependeu de uma expedição organizada no Rio de Janeiro, que terá certamente incluído a farinha de mandioca na armada que largou da cidade naquele ano com “uma ração para 1.400 homens” e “provisão para seis meses” (Boxer, 1973, p. 167).4

Para o caso de Angola, sobre o qual não existem dados que falem claramente de um sistema de contribuição forçada através da entrega de quantias fixas, valem as informações prestadas por Cadornega, que atribuiu à política levada a cabo por Fernão Dias a inteira responsabilidade pela disponibilidade de farinha de mandioca para sustento do “reino de Angola no período de sua ocupação pelos holandeses”; e pelo historiador Jan Vansina, que acredita ter sido “a cultura da mandioca em larga escala estimulada pela guerra luso-holandesa”, para que se forme uma ideia aproximada da importância da farinha de produção local no sustento das tropas de combate aos invasores (Cadornega, 1972, p. 127; Vansina, 1997, p. 262). Ainda segundo Vansina, nessa época, a produção da farinha de mandioca constituía “o terceiro ramo do comércio em Angola, após o tráfico e os tecidos de ráfia”, e era usada para abastecer o exército, os negreiros e alimentar os habitantes de Luanda, nessa ordem de importância (Vansina, 1997, p. 262).

De fato, as fontes da época mostram com alguma frequência o transporte de farinha de mandioca entre os presídios de Angola e Benguela, um tipo de operação que podia favorecer simultaneamente a defesa e o tráfico. Em relação especificamente ao pagamento e à alimentação dos soldados, a “Relação de Antonio Dinis”, que registra o envio de farinha de Benguela para pagamento dos soldados em Angola em 1622, e os diversos excertos do extenso conjunto documental que trata do pagamento dos soldos aos militares sediados no presídio de Angola na década de 1660, mencionam repetidamente o uso da farinha (referindo-se provavelmente à farinha de mandioca) nessa função. Juntas, as duas referências indicam que a prática tornara-se regular tanto antes como depois do episódio da Reconquista de Angola.5

Uma terceira característica dessas áreas é a sua vinculação às formas de produção escravistas. Para o caso do Brasil, onde o tema envolve uma longa e antiga discussão sobre a constituição de um campesinato ligado ao setor de produção de alimentos, um dos mais destacados defensores de sua feição caracteristicamente escravista foi Francisco Silva, que fez desse um dos argumentos centrais de sua tese de doutorado e utilizou as mais referenciadas fontes primárias existentes para o período e a região que constituem o objeto de seu estudo para demonstrá-lo em bases estritamente empíricas. Nessa interpretação, o caso do Rio de Janeiro, onde “as parcas informações que possuímos sobre a produção de farinha” (refere-se ele à Notícia curiosa e proveitosa a benefício da Real Fazenda de Santa Cruz, de 1783) mostram um grande número de lavradores donos de plantéis de um a dez escravos; e o da Bahia, onde o material produzido pelos censos aplicados aos plantadores dos distritos de Nazaré (1781), Jaguaripe (1781) e Cairu (1781 e 1786) mostram “a absoluta predominância dos plantéis de um a dois, ou três a cinco escravos”, constituem fortes evidências da “universalização do escravismo como relação básica de produção no setor agrícola de mercado interno, bastante longe das generalizações vigentes nos manuais de uma pequena produção familiar de tipo caipira” (Silva, 1990, p. 49).

Uma conclusão parecida foi apresentada por Schwartz sobre um período pregresso da história dos distritos sul-baianos, onde, apesar da tradição da pequena lavoura, em 1724, mais de metade da população era escrava. “Intimamente ligada ao comércio exportador, a escravidão era também parte essencial de outros setores da economia baiana” (Schwartz, 1988, p. 86). Muitas pesquisas confirmam esse perfil para outros contextos, mas, para o período e as regiões aqui tratados não existem dados demográficos capazes de sustentar esse tipo de conjectura e algumas aproximações são possíveis a partir de outro tipo de material.6

Para o caso da Bahia, o caráter marcadamente escravista do setor de produção de alimentos que se constitui no século XVII se expressa através dos altos índices de formação de quilombos no entorno dessas regiões. Aqui, o principal exemplo vem dos distritos de Cairu, Boipeba e Camamu, que deram espaço a uma “tradição” na constituição de comunidades de escravizados fugitivos desde as primeiras décadas do século XVII e à ocorrência de uma revolta de escravizados que envolveu cerca de cem participantes no final do século; conhecidas por meio da documentação produzida no contexto de sua repressão (Schwartz, 1988, p. 379; Santos, 2004). O inventário de um lavrador de mandioca que vivia nessa região no final do século XVII e mostra, entre seus bens, oito escravizados, mil roças de mandioca e “uma roda de moer já usada”, constitui evidência de natureza inteiramente diversa da mesma característica.7

No Rio, a presença generalizada do escravismo, já nessa época, como uma consequência da expansão combinada de engenhos e do setor de produção de alimentos, aparece também por meio dos registros da proliferação das comunidades de fugitivos estudadas na tese de doutorado do historiador Flávio Gomes (1997). Ainda que ao longo do século XVII o número de registros de africanos recém-desembarcados batizados tenha sido relativamente baixo (o que pode resultar também do fato de que muitos deles foram batizados antes, em feitorias do litoral africano, como interpreta o mesmo autor em outro trabalho), nas últimas décadas do século “os quilombos já pareciam ser um problema crônico para a referida capitania”, suscitando a constituição de cargos (o de capitão-do-mato) e medidas preventivas ou expedições punitivas em 1650, 1659, 1663 e 1668 (Gomes, 2012; Gomes, 1997, p. 526 e p. 524-525). Como o próprio autor explica,

as histórias dos quilombolas no Rio de Janeiro oitocentista [...] tiveram seus enredos gestados entre o final do século XVII e principalmente ao longo do século XVIII. Ao mesmo tempo que engenhos e engenhocas eram erguidos, fronteiras agrícolas avançavam, a demanda de alimentos e as suas consequentes lavouras aumentava, milhares de africanos desembarcavam, a cidade crescia no vai e vem de produtos e pessoas, mocambos e quilombolas surgiam por toda a parte. (Gomes, 1997, p. 525)

Embora uma série de problemas merecessem ser melhor investigados (refiro-me, por exemplo, à afirmação de Kalina Silva sobre o aumento do tráfico de escravos para a capitania no século XVII, mas sobretudo ao estudo referencial de Guillermo Palacios sobre a emergência, no século XVIII, de um “setor camponês livre” em atividades, notadamente a de subsistência ligada à agricultura da mandioca, antes caracterizado por “lavouras escravistas de porte médio”), a melhor evidência para o caso da capitania de Pernambuco é a já mencionada “lei da mandioca”, editada pela Câmara do Recife em 1704. Ao atrelar a obrigatoriedade da agricultura da mandioca ao número de até três escravizados, a determinação torna muito clara a aproximação, ainda que imposta, entre a atividade e um setor escravista de pequeno porte. Essa relação, aparentemente muito próxima, ainda que às vezes forçada, entre a mandioca e a escravidão, aparece também nas demais leis da mandioca, que, a partir de 1688, obrigavam o plantio de covas “de acordo com o número de escravos possuídos” e ilustram, por outro lado, a forte resistência dos maiores proprietários em cumpri-la. Isso pode significar também que, se existe qualquer fundamento nas conjecturas sobre uma suposta “autossuficiência” de alimentos nos engenhos, ela deverá ser atribuída, em grande parte, às lavouras praticadas por escravizados em seus terrenos particulares.

Ainda que sob algumas alegações em contrário, parece estar hoje bem estabelecido que o sistema da “brecha camponesa” vigorou em todas as colônias escravistas das Américas, aí incluídas as que são hoje o sul dos Estados Unidos, o Caribe e o Brasil. Como definiu Ciro Cardoso em um de seus trabalhos referenciais sobre o tema, a “brecha camponesa” constituía “uma característica universal do escravismo americano” (Cardoso, 2009, p. 103). A imensa variabilidade do modelo no tempo e no espaço não permitiria uma resposta única em relação à sua capacidade de garantir a subsistência plena dos agricultores (embora em alguns lugares tenha sido admitida como regra), mas a maior parte das análises aposta que a produção realizada no interior desses terrenos cumpria não apenas o sustento da família, mas também a colocação de algum excedente nos mercados.

Os principais estudos, e provavelmente também as fontes primárias, são pouco específicos em relação às espécies cultivadas pelos escravizados em seus terrenos, admitindo-se, como regra geral, a cultura de gêneros de subsistência como o milho, o feijão, a banana e as raízes, paralelamente à criação de animais e, às vezes, ao investimento em gêneros comerciais ‒ o cacau na Venezuela e o algodão nas colônias inglesas da América do Norte. Referências explícitas ao cultivo da mandioca surgem em exemplos para a Martinica, no século XVII, e para a Bahia, no XVIII, mas é evidente que ele devia ser bastante difundido no interior das roças de escravizados em todas as regiões onde era comum também fora delas, isto é, em partes do Caribe e, particularmente, no Brasil (Karasch, 2000, p. 182; Cardoso, 2009, p. 99). Os termos roça (que significava, segundo o dicionarista Raphael Bluteau, em seu Vocabulário português e latino, de 1720, “a horta ou quinta em que se semeia a mandioca”) e conuco (nome dado também à técnica agrícola ancestral que os Taino aplicavam especificamente ao plantio da mandioca), amplamente utilizados na época para designar, respectivamente, no Brasil e no Caribe espanhol, os lotes de terra concedidos aos escravizados, servem, aliás, como importantes indícios sobre o qual podia ser, nesses contextos, o gênero preferencialmente cultivado (Bluteau, 1720).

As diferenças observadas no contexto angolano se devem às particularidades da escravidão e da agricultura que se praticavam ali. Desde o início das atividades do tráfico, uma distinção bem marcada separa os “escravos em trânsito” dos “residentes”. Até que fossem dirigidos para o embarque, na ilha de Luanda, os chamados “escravos em trânsito” permaneciam junto às fortalezas e presídios portugueses, no sertão ou na cidade, e trabalhavam eles mesmos nas pequenas hortas que se estabeleciam no seu entorno para prover a alimentação estritamente local, isto é, a sua e a dos contingentes militares. Não raro, esses redutos portugueses são apontados, por esse motivo, como a própria via de inserção da agricultura da mandioca pelas terras interiores do continente (Fage; Oliver, 1975, p. 328; McNeill, 2013, p. 27). O mesmo ocorria nos barracões urbanos em que os escravos aguardavam o embarque, como teria observado Olfert Dapper em fins do XVII, a respeito do porto de Pinda, onde, como em Luanda, “escravos à espera do embarque [...] trabalhavam as roças de mandioca enquanto os navios tardavam” (Alencastro, 2000, p. 92).

Apesar de alguns esforços iniciais em torno do cultivo do algodão e da cana, a administração portuguesa não conseguiu estabelecer em Angola qualquer produção significativa de bens agrícolas de exportação e toda a agricultura comercial era a de alimentos, que acontecia no interior dos arimos e se destinava ao abastecimento dos exércitos e do tráfico. Nessas terras, como explicou Caldeira, “vão ser utilizadas não apenas a mão de obra como as próprias práticas agrícolas e os conhecimentos técnicos tradicionais do continente africano”. Às vezes, os donos dos arimos habitavam-nos permanentemente, ou pelo menos por uma parte do ano, mas muitos deles “raramente punham os pés lá”. Nessas ocasiões, toda a produção dos “escravos dos arimos”, que compunham a totalidade de sua força de trabalho, e uma importante parcela dos escravizados residentes em Angola, era orientada “por um feitor e homem de confiança, o maculuntu, que em geral era ele próprio escravo” (Caldeira, 2014, p. 30). Esse tipo de produção, segundo a qual os nobres europeus locais faziam plantar a mandioca exclusivamente por seus escravizados, diferia essencialmente, como lembrou Vansina, da situação em Loango, Soyo, em Lifune e Onzo, onde logo a mandioca será plantada por camponeses livres em seus próprios campos (Vansina, 1997, p. 258). As técnicas empregadas nessa produção, nesses e em outros contextos, são assunto da próxima seção.

Engenhos de farinha

Pelo menos desde 1988, quando o reconhecimento legal da dimensão “imaterial” dos bens culturais impulsionou a constituição, no Brasil e no Caribe, dos diversos grupos de pesquisa, registro e salvaguarda dos “modos de fazer farinha”, uma compreensão comum tem marcado a maior parte da produção acadêmica que lida com o tema.8 Entre os historiadores, frequentemente mais dispostos a lidar com a questão de suas transformações no tempo, vale mencionar os textos de Manoela Pedrosa (2014), Manuela Braganholo (2017) e Juciene Apolinário (2019), para ficar em apenas alguns exemplos de análises muito distintas em termos de campo de observação, porém bastante próximas no tipo de leitura que oferecem sobre as tecnologias de beneficiamento da mandioca, marcadas, no longo prazo, sempre pelo signo da continuidade. O esforço justo em fazer notabilizar a dimensão real do conhecimento nativo na construção do Novo Mundo e talvez algum desconhecimento em termos de documentação parecem ser os principais motivos pelos quais pouco espaço tenha sido dedicado, pelo menos no campo dos estudos históricos, às transformações impostas aos métodos tradicionais de fazer farinha através dos tempos.

Uma exceção importante está nas análises do historiador Sérgio Buarque de Holanda que, em diversos trechos de diferentes obras, mas especialmente na seção de Monções que intitulou “Produtos indígenas e máquinas importadas”, tratou da introdução de maquinário trazido pelo colonizador no processo originário de beneficiamento das principais plantas nativas ‒ o algodão, o milho e a mandioca ‒ apontando, sobre a última, “a adaptação do modelo de prensa usual entre os lagareiros reinóis de azeite e vinho, sem que se renuncie ao tipiti indígena”. O caso mais importante, isto é, o “mais afetado pela introdução de técnicas europeias”, ele argumenta, foi o do algodão, que exigiu o uso dos teares horizontais no lugar dos verticais, especialmente nos meios urbanos, como resultado “da nova realidade demográfica, que pedia um aumento da produção e sem dúvida um rendimento maior dos gêneros de consumo”; explicação que está evidentemente na origem das transformações observadas nos processos produtivos de todas as outras espécies que se tornaram mercadorias no contexto da exploração colonial das Américas (Holanda, 2015).9

Sobre os processos artesanais de produção da farinha de mandioca, que os europeus reconheceram sempre como excepcionalmente inventivos, porém lentíssimos e muito trabalhosos, foram introduzidos de forma localizada e mais ou menos assistemática instrumentos e dispositivos de aceleração da produção, geralmente feitos de metal, e utilizados originalmente para outras funções, sem que os aparelhos novos tenham jamais feito desaparecer os antigos. Ao longo do século, informações recolhidas em diferentes partes do continente registram a introdução, isolada ou combinada, das rodas de ralar no lugar dos raladores manuais; das prensas de lagar ou pensa de tornillo no lugar do tipiti; e das chapas, fornos e torradores de metal no lugar dos de cerâmica, com vistas ao aceleramento da produção, sobretudo nas regiões onde era mais forte a pressão da demanda comercial.

Em 1612, o cronista Ambrósio Fernandes Brandão escreveu, sobre os métodos de preparação da farinha no Rio de Janeiro, que

no preparo da mandioca usavam de grande roda movida a mão para reduzi-la à massa, de prensa para enxugá-la e extrair a tapioca; a farinha cozia-se em alguidares ou tachos ‒ talvez no Rio de Janeiro, onde muito tempo preponderou esta produção e este comércio, empregassem logo grandes fornos. Com tachos só se podia cozer pouca farinha de cada vez. (Brandão, 2010, p. 32)

Pouco mais tarde, no contexto da ocupação holandesa em Pernambuco, Johan Nieuhof também registrou “a introdução de metais no fazer indígena” e as disparidades entre os métodos (e instrumentos) de produção empregados por produtores com mais ou menos recursos:

A mandioca era ralada contra uma grande roda de quatro ou cinco pés de diâmetro, coberta por uma chapa de cobre ou de ferro repleta de furos ou bordos cortantes, qual ralo para noz-moscada. O movimento contínuo da roda rala a mandioca […] caindo em uma gamela. Essa roda era chamada pelos brasileiros ibecém babaca e pelos portugueses roda de farinha. Todavia, as pessoas mais pobres têm que se arranjar com um ralo manual a que chamam tapeti. (Nieuhof, 1942, p. 285)

Uma série de outras fontes poderiam servir para ilustrar o uso isolado de um ou outro instrumento novo no processo produtivo da farinha (lembre-se, por exemplo, o já mencionado inventário de lavrador de mandioca da vila de Camamu, datado de 1689, que tinha entre seus pertences oito escravizados e “uma roda de ralar mandioca”). O uso combinado de todos esses instrumentos assinala a constituição das estruturas que no Brasil se tornaram conhecidas como “engenhos de farinha” e que podiam admitir, na verdade, grande variedade.

Tendo se tornado comum para designar o espaço doméstico de produção da farinha de mandioca a partir do início do século XIX (alternativamente ao talvez mais empregado “casa de farinha”), o termo aparece muito frequentemente associado, antes disso, à experiência da colonização dos açorianos em Santa Catarina no século XVIII, mas pode ter caído no uso geral já em meados do século XVII, como sugere o título atribuído pelo holandês Frans Post à tela em que registra a produção da farinha de mandioca em um engenho pernambucano dessa época. Nesse contexto, um “engenho de farinha” continha “três equipamentos usados no beneficiamento da mandioca”: o caititu ‒ a roda que substituía os raladores manuais; as formas de madeira, onde a massa resultante da espremedura era colocada para escorrer, fazendo as vezes do tipiti; e o forno, no formato de uma grande frigideira, onde a farinha é torrada antes de ser ensacada, apresentando notável diferença em relação à imagem produzida pelos também holandeses Guilherme Piso e George Marcgraf sobre o mesmo contexto, que retratam uma produção já francamente “mecanizada” (Soares, 2009).

Paralelamente à informação resgatada por meio de outras fontes, os espaços onde os novos instrumentos ou estruturas são mais frequentemente representados sugerem que eles eram mais comuns no interior ou nas proximidades das áreas de produção especializada, de acordo com a disponibilidade de recursos materiais e financeiros ou as necessidades da produção, enquanto no resto do território, os métodos e instrumentos tradicionais sobreviveram por mais tempo, resistindo, em muitos casos, até a atualidade. Já em meados do século XVI, o padre Manuel da Nóbrega reclamava da falta de estanho lavrado, tachos, caldeirões e alguidares de cobre para fazer farinha e, no final do século XVIII, um manual dirigido aos produtores de São Paulo recomenda aos lavradores sem recursos o uso dos pesos como alternativa à dispendiosa prensa de lagar (Leite, 1940, p. 84; Melo, 1871 apud Leandro, 2007).

A questão deve ser abordada com mais cuidado a respeito do território angolano, porque não se trata exatamente do problema da transformação, mas da própria adaptação das tecnologias americanas de cultivo e processamento da mandioca em inédito ambiente. O tema é complexo e controverso e, do conjunto de impressões que defendem a perfeita reprodução dos “métodos de preparo dos índios e brasílicos” (Alencastro, 2000) ou o contrário (Caldeira, 2014; Jones, 1957), vale destacar a criativa interpretação do africanista Jan Vansina. Em um trabalho de detalhada investigação sobre a difusão da mandioca na África Central, o historiador francês falou da transposição das técnicas americanas de processamento do tubérculo para o continente africano como um processo profundamente regionalizado, no qual os métodos específicos para o beneficiamento da mandioca na forma de farinha mantiveram-se, por bastante tempo, restritos aos redutos escravagistas-coloniais construídos pelos portugueses no entorno imediato da cidade de Luanda. Uma de suas fontes, a “Descrição da África”, publicada pelo holandês O. Dapper em 1686, descreve a produção da farinha de mandioca, nesse contexto, a partir do uso de “grandes rodas de cobres, do tamanho da roda de uma carroça”, cobertas por pequenos pontos, como um ralador, movidas pelo trabalho de dois escravizados, que depois punham as massas resultantes desse processo dentro de um grande caldeirão de metal, “para fazê-las secar ao fogo” ‒ uma imagem bastante semelhante à das práticas retratadas na mesma época no Caribe e no Brasil (Vansina, 1997).

Conclusão

Nenhuma fonte histórica pode, é claro, ser lida como expressão fiel da realidade. No final do século XVIII, o militar Elias Alexandre Corrêa anotou, no relato que depois se tornaria uma das mais celebradas fontes para o estudo da história de Angola, que os rudimentares métodos de beneficiamento da mandioca ali praticados, baseados no uso de sacos de palha (ou alicondes, como mais tarde explicará Venâncio) deixavam muito a desejar em relação à celeridade da produção brasileira que, à essa altura, já se processava

em grandes ralos de bronze circulares, que rodam continuamente, já pela força de braços, já de bestas e já de água, havendo a indústria inventado meios de poupar braços, ou de os poder escusar. (Correa, 1937)

Essa aparente contradição poderia dar margem a muitas interpretações, inclusive a da imensa variedade de formas que a produção provavelmente assumiu através do território. Aqui, ela deve servir como uma mostra de que a própria ideia da concentração, a partir do início do XVII, de formas de produção intensivas, escravistas e gradativamente mecanizadas em áreas de cultivo especializado, que constitui o argumento central deste artigo, não deve ser interpretada de maneira rígida, e certamente seria fácil encontrar uma série de outros exemplos que fogem ao esquema.

Na verdade, o que se quer aqui argumentar é que, sujeita aos movimentos do sistema-mundo moderno da qual é parte, a economia atlântica pode ter sido capaz de determinar a constituição, em diferentes partes dos vastos litorais a que tocava, de zonas econômicas análogas, semelhantes entre si no modo de organizar a atividade produtiva (nesse caso, a de alimentos) para responder às demandas impostas pelo seu próprio funcionamento. A aposta é que a história econômica da capitania do Rio de Janeiro seiscentista talvez possa ser melhor compreendida como parte dela.

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Recebido em 13/10/2023

Aprovado em 19/3/2024


Notas

1 Sobre as propriedades jesuíticas no vale do rio Bengo, ver Monumenta Missionaria Africana, v. 8, 1952. p. 6-7 e 109. Disponível em: http://memoria-africa.ua.pt/Library/MonumentaMissionariaAfricana.aspx.

2 Fundação Biblioteca Nacional (BN Digital). Sobre a Bahia, DHBN v. 3, p. 312, 315, 350. Sobre Pernambuco, Projeto Resgate, Pernambuco, cx. 21, doc. 1967. Disponível em: https://resgate.bn.br/docreader/docmulti.aspx?bib=resgate.

3 Fundação Biblioteca Nacional (BN Digital). Projeto Resgate, Bahia, Luísa da Fonseca, cx. 28, doc. 3457. Sobre o edital publicado pela Câmara fluminense, Alencastro (2000, p. 91). Disponível em: https://resgate.bn.br/docreader/docmulti.aspx?bib=resgate.

4 Fundação Biblioteca Nacional (BN Digital). Sobre o envio de farinha para a colônia, DHBN, v. 67, p. 338 e v. 68, p. 21. Disponível em: https://resgate.bn.br/docreader/docmulti.aspx?bib=resgate.

5 Relação de Antonio Dinis (1622), reproduzida em Monumenta Missionária Africana, v. 7, p. 67. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Catálogo Parcial do Fundo do Conselho Ultramarino da Série Angola. Disponível em: http://ahu.dglab.gov.pt/wp-content/uploads/sites/24/2018/04/PT-AHU-CU-ANGOLA-Parcial1602-1799.pdf. Acesso em: 27 jan. 2022.

6 Sobre o perfil escravista do setor de produção de alimentos, ver, por exemplo, Luna e Klein (2010).

7 O inventário de Estevão Marques Vicente consta no processo inquisitorial movido contra ele: Processo de Estevão Marques Vicente, 48 anos, cristão novo, homem do mar e posteriormente lavrador de mandioca (17/10/1674-6/6/1689), disponível em formato digital no site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo sob o código PT/TT/TSO-IL/028/11825.

8 Sobre os modos de preparo da mandioca e as casas de farinha como patrimônio, ver Mandioca: saberes e sabores da terra. Pesquisa e texto de Maria Dina Nogueira e Guacira Waldeck. Rio de Janeiro: Iphan; CNFCP, 2006. Catálogo da exposição realizada no período de 25 de maio a 30 de julho de 2006 e https://havanatimes.org/features/defending-cubas-tradition-of-indigenous-bread, por exemplo.

9 Na versão digitalizada da obra, as páginas não estão numeradas. Disponível em: http://library.lol/main/1276F27CCEBD6E3AFC180FC220309D7F. Acesso em: 23 jun. 2022.


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