Acervo, Rio de Janeiro, v. 37, n. 1, jan./abr. 2024

Memória e história: potências e tensões nos usos de acervos privados | Dossiê Temático

Os arquivos pessoais em dois atos

Narrativas históricas e contra-históricas

The personal archives in two acts: historical and counter-historical narratives / Los archivos personales en dos actos: narrativas históricas y contrahistóricas

Flávio Conche do Nascimento

Doutor em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Servidor do Arquivo Público do Estado de Mato Grosso (APMT), Brasil.

flavioconche@gmail.com

Resumo

Este artigo trabalha com o que há de anunciado, significado objetivamente declarado, e com o que está apenas enunciado, dependente de contexto mais amplo de significados enredados entre si, nas narrativas de duas coleções de documentos pessoais do Arquivo Público de Mato Grosso. Adotando como referência as organizações (arranjos) de duas coleções, assinala como as narrativas de si buscaram construir, em espaços de arquivos, “provas públicas” e um “lugar na história”, ao mesmo tempo em que deixaram pistas para a contra-história das negociações pessoais e das contradições sociais.

Palavras-chaves: acervos pessoais; narrativas de si; tratamento documental; Mato Grosso.

Abstract

This article works with what is announced, an objectively declared meaning, and with what is only enunciated, dependent on a broader context of meanings entwined with each other, in the narratives of two collections of personal documents from the Public Archive of Mato Grosso. Adopting as a reference the organizations (arrangements) of two collections, it points out how self-narratives sought to build “public evidence” and a “place in history”, at the same time that they left clues to the counter-history of personal negotiations and social contradictions.

Keywords: personal collections; self-narratives; document handling; Mato Grosso.

Resumen

Este artículo trabaja con lo anunciado, significado objetivamente declarado, y con lo que está solo enunciado, dependiente de un contexto más amplio de significados entrelazados, en las narrativas de dos colecciones de documentos personales del Archivo Público de Mato Grosso. Adoptando como referencia las organizaciones de dos colecciones, señala cómo las autonarrativas buscaron construir en espacios de archivos una “evidencia pública” y un “lugar en la historia”, al mismo tiempo que dejaron pistas para la contrahistoria de las negociaciones personales y de las contradicciones sociales.

Palabras clave: colecciones personales; autonarrativas; tratamiento documental; Mato Grosso.

A importância pública dos arquivos pessoais

O conteúdo deste artigo corresponde à abordagem de pequena fração de itens do acervo do Arquivo Público de Mato Grosso (APMT). Conforme o nome da instituição permite concluir, a maior parcela dos documentos que está sob a responsabilidade do APMT provém do acúmulo documental produzido nos órgãos da administração pública estadual.

A exemplo dos itens da Presidência do Estado, cuja documentação foi produzida e/ou acumulada nos trabalhos do presidente do Estado, ou do Juizado de Menores, documentação proveniente dos trabalhos de um juiz, a composição do acervo do APMT diz respeito, em sua maioria, às atividades passadas de agentes públicos e/ou cuja produção foi remetida a uma instituição pública. Característica que nos leva à necessidade de justificar a razão de arquivos pessoais comporem acervos de importância pública, e que igualmente demanda explicar como tal relevância foi construída dentro das dependências do APMT.

Nosso objetivo aqui é enfrentar obviedades ainda não esgotadas. Tomando como fato a importância pública de dado acervo privado ‒ quer porque oferece perspectivas alternativas às burocráticas, mas interessantes a um número amplo de cidadãos, quer porque complexifica acúmulos de itens documentais que formam, nas instituições de arquivo, narrativas herméticas, arranjos, descrições de fundos, coleções ou itens documentais ‒, outro recorte para a questão, notadamente, contempla as estratégias pessoais de quem preservou, organizou e doou elementos de suas próprias memórias, visando “entrar para a história”, entre outros fins.1

Seguindo os exemplos anteriores, em tom provocativo inicial, convidamos quem nos lê a imaginar a composição do arquivo pessoal de um sujeito que tenha exercido a Presidência do Estado de Mato Grosso. Provavelmente, a imagem que veio à mente do/a leitor/a é a de uma massa de papéis, empilhados, envelopados, organizados em blocos, de todo modo, originários das atividades cumpridas pela função do cargo executivo, ao passo que também podemos conjecturar que, na imagem construída, esteja manifesta a representação de sujeito homem, médico, ou magistrado, membro de grupo social distinto, cujos vestígios das experiências mais pessoais são anteriores e posteriores à Presidência.

Agora, deixemos de lado o caso do presidente de Estado e sigamos com o exercício, tendo como referência nesse segundo momento as fotografias, as anotações, as cartas, os registros em geral de uma pessoa que um dia se ocupou braçalmente com o trabalho de elevação do prédio da Presidência do Estado. A conclusão quase óbvia acerca das diferenças entre os dois casos está atravessada de capitais simbólicos, estratificações, hegemonias e hábitos sociais.

Sob quais critérios poderíamos relativizar a relevância pública das memórias do presidente? Ou, e mais interessante ainda, como não tergiversar perante a eventual expectativa de preservar uma memória de si, quando um acontecimento como esse provém da inciativa do “cidadão comum”? Não basta afirmar que todas as memórias têm ou deveriam ter o mesmo direito de ocupar o espaço público dos arquivos. Afinal, perguntas desse tipo não mobilizam apenas demandas jurídicas; requerem identificar práticas e estratégias conduzidas pelos “sujeitos comuns” diante das hegemonias e das estratificações sociais.

Segue-se dos exemplos apresentados uma relativa dificuldade de se adotar procedimentos “meramente técnicos”, método universal objetivo, que satisfaçam a definição do que vem a ser um arquivo pessoal “digno” de guarda e de acesso público. Nesses termos, além de as diferentes linhas de acervo institucionais serem formas manifestas da diversidade do “valor histórico”, pluralidade que se expressa nas linhas dos arquivos e dos centros de memória, fica em evidência, de todo modo, a historicidade das produções, dos acúmulos e das técnicas, seja quanto às transformações da definição do que são ou devem fazer os arquivos, seja no tocante às mudanças das técnicas e dos métodos aplicados nos espaços dessas instituições.

Sabemos que o acervo proveniente das atividades de um presidente de Estado, antes e depois do cargo, tem grande chance de ser importante do ponto de vista público, ou seja, que os interesses por conhecer e preservar os vestígios pessoais da pessoa ocupada com afazer socialmente renomado tendem a emprestar prestígio para o arquivo pessoal dela, em geral. A pessoa e o sujeito público, no caso, satisfazem um mesmo ser ou consciência representante do Estado. Por sua vez, se adotarmos a mesma perspectiva para tratar da “pessoa comum”, notamos que, subjacentes à importância pública, estão hierarquias e relações de poder antecedentes ao veredito acerca do critério da relevância.

Defendemos a hipótese de que o que tende a ocorrer no reconhecimento público dos acervos pessoais, quando a proveniência é mais “popular”, é um tipo de dialética invertida, um imperativo de indeterminação, que faz frente à fórmula acabada do público: mesmo que indiretamente, ou não intencionalmente, o “sujeito comum”, “cidadão qualquer”, promove sínteses que reabrem a própria relevância e a noção de coisa pública, expõe os limites ideológicos de sua abrangência universal, seus determinismos, sua pretensa representação da totalidade dos indivíduos.2

Por um lado, vale a pena não perder de vista a centralidade do estranhamento causado por presenças, por assim dizer, “inconvenientes”, “fora de lugar”, “impróprias”, na ação de pôr em perspectiva o interesse público, a relevância pública ou a coisa pública. Não parece exagero recordar ter sido mediante tensões criadas por coletivos e sujeitos “populares”, “comuns”, que o público se abriu ao longo do tempo para entendimentos mais amplos acerca do que são ou devem ser os entes detentores de direitos à preservação da memória social.

Por outro lado, importa não exotizar o “comum”, o “popular”, limitando o anonimato dos “cidadãos comuns” a um lugar apenas de antagonismo contra as “pessoas de privilégio” social (Spivak, 2010; Thompson, 1998). De modo que, no APMT, um grupo de servidores públicos avalia a pertinência das solicitações de doação de documentos pessoais; sendo oportuno sublinhar, ao menos para a discussão de momento, que o privilégio social evidentemente existe, mas é menos marcante do que a expectativa generalizada que têm as demandas de doação por reforçar ou construir uma preservação pública para as trajetórias de si.

Tal grupo avalia se os documentos apresentados são ou não originais, cria breve inventário dos itens, reflete sobre a legalidade da doação, acerca da possível guarda e do acesso, se existe ou não espaço nas salas de acervo etc. No mais, trata-se de um trabalho que ocorre sob as influências antecedentes à aplicação dos métodos de trabalho, trazidas pelas expectativas de preservação pública das próprias pessoas doadoras. Busca-se não encurtar os critérios da doação às “pessoas de privilégio”, contudo, preserva-se a demanda de autoridade pública na composição da relevância social moldada pelas memórias de si.

Em tese, a guarda pública oferece aos itens doados pelos particulares algo permanente (guarda permanente), garante tratamento técnico, difusão de conteúdos documentais e tipo diferenciado de autoridade mnemônica. A autoridade do público empresta representações e transfere poderes simbólicos ao pessoal, em outras palavras.3

Medo da morte, ou do esquecimento, para além dos juízos que porventura possam adjetivar os motivos da produção dos acervos pessoais, não parece demasiado supor que entre eles está a existência de tradições e de poderes consolidados, não necessariamente anunciados pelas pessoas, mas que elas são capazes de notar e com as quais aprenderam a negociar. A história que protege do esquecimento é também aquilo que instituições e pessoas entendem por história, memória, documento, acontecimento, questão impactante nas relações entre instituições e pessoas ou vice-versa. Do fenômeno da escrita à criação da ideia de prova, do fato histórico, passando pela diplomática, pela transformação da história monumental em história documental (Le Goff, 1990), até chegar à gênese documental, à análise tipológica (Bellotto, 2002; Rodrigues, 2012), não parece desmedido considerar que, observando por outra chave, aquilo que nos arquivos é sinônimo de uma longa tradição de conhecimento e especialização, para as pessoas representa conteúdo difuso, todavia, que sabem identificar e assimilar em alguma medida na consolidação de suas próprias narrativas.

A um só tempo, para a instituição pública que passa a custodiar a documentação pessoal, acontece um incremento da capacidade de oferta das possibilidades de investigação. Por vezes, preenchem-se lacunas, intencionais ou não, do conteúdo registrado nos afazeres oficiais de Estado.

Grosso modo, os documentos que estão sob a responsabilidade do APMT se referem a ocorridos como as Bandeiras, ao planejamento das ocupações coloniais da fronteira, às colonizações recentes das terras devolutas, à modernização do espaço geográfico de meados do século passado etc. De tal maneira que se pode verificar na pequena fração de documentos pessoais da instituição um tipo de disputa pelas mediações dos poderes: um movimento interessante, conduzido em dois fluxos, em que ora o APMT “empresta” autoridade para o arquivo de pessoas, ora são elas que transferem seus acúmulos e suas produções documentais para endossar a autoridade de guarda, reforçando a qualidade dos trabalhos da instituição.4

Existem atualmente três conjuntos de proveniência pessoal com tratamento em fase de conclusão ou já finalizado no APMT: os documentos de Benedito Sant’Anna da Silva Freire, cuja doação foi feita por familiares,5 e os itens de Adelaide de Almeida Orro e de Jair Rodrigues Carvalho, doados pelas próprias pessoas produtoras e acumuladoras dos documentos, entrevistadas por profissionais da instituição durante a construção dos arranjos e das descrições dos conjuntos.

Antes de adentramos nas considerações sobre esses dois últimos acervos pessoais, o objeto da discussão de nosso artigo, cabe-nos sublinhar um outro ponto, a propósito das mediações dos poderes. Acreditamos estar correto assinalar a resistência ao esquecimento também nesses casos, até mesmo que se pode identificar nas resistências uma mensagem que se confunde com a negociação. Resistir ao esquecimento se confunde (do subjetivo ao social, ou vice-versa) com a resistência de pessoas que lutam contra privilégios e que também negociam como forma de existir, de se fazerem escutadas, lembradas, dentro dos jogos de poderes das instituições e do estado das mediações em determinado contexto. Afinal, qual classe, grupo, perfil de pessoa, chega a uma instituição de arquivo, voluntariamente, ou sem nenhuma campanha de doação aberta pela instituição, convencida de que suas memórias fazem sombra a outras, públicas ou privadas?

Quem do anonimato relativo dos “sujeitos comuns”, para além dos exemplos provocativos iniciais do presidente do estado e do sujeito que trabalhou na construção do prédio da Presidência, na prática, pôde passar a ter por hábito registrar seus próprios atos, organizá-los e assim buscar dar a eles uma unicidade, visando compartilhar com número mais amplo de pessoas suas memórias? Quais resistências seriam essas? Quais negociações podem ser indicadas enquanto constituintes de casos assim?

Parece-nos acertado salientar, em complemento ao entendimento de uma resistência fechada nas experiências dos indivíduos em si, que os registros de Adelaide de Almeida Orro e Jair Rodrigues Carvalho conformam narrativas construídas de jeito bem tradicional e, ao mesmo tempo, a contrapelo. São vestígios de esclarecimentos pessoais acerca dos poderes instituídos. Seus doadores buscaram “ser história”, tinham dimensões das estratégias pertinentes para galgar êxito na preservação pública de suas memórias, descritas na plataforma de difusão do APMT. São igualmente vestígios de esclarecimentos sobre assuntos delicados, controversos, das experiências de vida registradas pela pessoa mulher, Adelaide, ou do cotidiano das famílias ribeirinhas e de povos originários subalternizados dos registros de Jair, ambos enunciados na plataforma do APMT.

Com o título Os arquivos pessoais em dois atos,6 buscamos englobar, a um só tempo, 1) as narrativas fundadas durante a organização dos trabalhos no APMT dos dois acervos pessoais, apresentando elementos das informações reunidas sobre os documentos dentro de seus contextos de produção e de acúmulo; e 2) as narrativas dessas pessoas que procuraram “entrar para a história” dentro das regras dos jogos de poder, apresentando as maneiras que encontraram de passar adiante mensagens, não necessariamente pelo conteúdo dos itens documentais, mas por sua organização prévia como um todo. Defendemos haver nos dois atos uma contra-história ‒ forma de narrar a história que complementa ou que entra em choque com outra, enunciada por estilo distinto, menos objetivo e mais dependente do contexto das narrativas em geral.7

Adelaide de Almeida Orro (AAO) dá nome a uma coleção arquivística higienizada, estabilizada, descrita, digitalizada e em fase de indexação e revisão final.8 Quase o mesmo pode ser dito sobre Jair Rodrigues Carvalho (JRC), com a diferença de a coleção estar totalmente indexada e revisada.9 Ambas são coleções compostas, em sua maioria, de itens iconográficos, fotografias reveladas ou em suporte de negativo, diapositivo fotográfico e fotos digitais, com parcela de documentação escrita, no caso de AAO, e um arquivo em formato de áudio no caso de JRC, fruto da única entrevista autorizada a ser divulgada pelo doador, além de um recorte de jornal, duas anotações e três mapas que nasceram de seu exercício explicativo.

Contemplando as questões apresentadas, indicaremos que a pessoa de Adelaide, primeira enfermeira diplomada de Mato Grosso (MT), foi também uma mulher em espaço tradicionalmente masculino e hegemonizado por médicos, a área da saúde. Jair, um servidor público que trabalhou durante parte da vida acompanhando a criação de novos centros urbanos no norte de MT, foi um sujeito em meio às contradições do processo recente de colonização das terras amazônicas.10

As duas pessoas doadoras e os seus acervos

Adelaide de Almeida Orro nasceu em 1927 na cidade de Rosário Oeste (MT). Em 1941 passou a exercer interinamente o cargo de visitadora do Centro de Saúde de Cuiabá, e em 1944 se matriculou no 1º Curso de Visitadora Sanitária do Centro de Saúde da capital, Cuiabá, o que lhe possibilitou, em 1945, a efetivação no quadro de trabalhadores da instituição como enfermeira. Um ano depois, com subsídio do governo mato-grossense de Fernando Corrêa da Costa, foi mandada à capital federal, Rio de Janeiro, para cursar enfermagem na Escola de Enfermagem Anna Nery (Figura 1), na praia de Botafogo. No ano de 1949, retornou a Mato Grosso diplomada, feito que lhe rendeu o orgulho de ser a primeira enfermeira mato-grossense. Já na década de 1970, aposentada pelo Ministério da Saúde, foi convidada pelo médico Clóvis Pitaluga de Moura para ministrar a disciplina de Enfermagem em Saúde Pública no curso tecnólogo (graduação de curta duração) em Saneamento Ambiental da recém-fundada Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Na mesma instituição, ajudou a criar o curso de enfermagem científica, pouco tempo depois.


Figura 1 ‒ Turma 49 I do Curso de Enfermagem da Escola “Anna Nery”, 20 maio 1947. Fotógrafo não identificado. Na marcação, feita pela doadora, Adelaide é a pessoa de número 9. Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Adelaide de Almeida Orro, BR MT APMT. AAO. 100. 130 00001. Disponível em: http://atom.apmt.mt.gov.br/index.php/br-mtapmt-aao-130-00001-1. Acesso em: 18 ago. 2023

Mulher proveniente de família de economia modesta, foi com a enfermagem que Adelaide construiu a biografia de ascensão social e o desenvolvimento de capital simbólico que se encontram na coleção do APMT. Dando conta de passar mensagem nessa direção através do conjunto geral dos itens doados, a documentação da Coleção Adelaide de Almeida Orro tem 176 registros fotográficos, dos quais oito são cópias, e 110 itens escritos, com dez cópias, documentos pessoais e probatórios, em sua maior parte. Destacam-se nos materiais escritos os dois cadernos nos quais a doadora ofereceu explicações acerca de sua biografia: no primeiro, explica o conteúdo das fotografias coladas nas páginas do caderno; no segundo, transcreve e comenta publicações do Diário Oficial, sobretudo a documentação produzida pelo Curso Auxiliar de Enfermagem Dr. Mario Corrêa da Costa, que havia ajudado a fundar em Cuiabá, mas que existiu por pouco tempo.

São as informações dos itens documentais (nível de descrição: item) dos dois cadernos na organização do APMT, respectivamente:

Título: Caderno de Adelaide de Almeida Orro, produzido para registros manuscritos de memórias, dar explicações sobre a sua biografia, desde a formação profissional até a atuação no campo da enfermagem, tendo ainda fotografias descritas, transcrições de leis, decretos, portarias e atos. Data: 13/10/1990.11

Título: Caderno de Adelaide de Almeida Orro, produzido para registros manuscritos de memórias e transcrições de documentos acumulados acerca da Escola Estadual de 1º e 2º Grau Presidente Médici – Curso Auxiliar de Enfermagem Dr. Mario Corrêa da Costa. Data: 13/10/1190.

Âmbito e conteúdo: Caderno que concentra informações sobre documentos acumulados por Adelaide de Almeida Orro, pesquisados na Escola de 1 e 2º Grau Presidente Médici, no Arquivo Público e na Imprensa Oficial do Estado, trazendo as leituras construídas pela doadora a partir de conversas com colegas de trabalho, antigas alunas e outras pessoas beneficiadas pela escola. Adelaide narra, em 184 páginas de caderno com pautas, como buscou tais informações tendo por objetivo “historiar o verídico”. Para tanto, transcreve os documentos e os comenta logo depois.12

O recorte temporal da produção e do acúmulo dos itens de AAO se encontra entre os anos de 1940 e 2007. Em declarado zelo com sua própria trajetória, Adelaide fez transcrições, colagens, criou pastas e rascunhou nos cadernos, organizou registros de momentos da infância e da vida adulta, experiências do ensino básico e das especializações na enfermagem; foi dos afazeres da aluna universitária no Rio de Janeiro até a carreira de docente em Cuiabá. Estruturou, assim, uma linha em continuidade para si. Do mesmo modo, manifestou queixas sobre as dificuldades de se levar adiante o projeto de implantação do Curso Auxiliar de Enfermagem, que, segundo a doadora, nunca sequer dispôs de sede própria. Avaliou também que não bastava a ela ter conhecimento especializado, pois foram muitas e imperativas, para a evolução da enfermagem em MT, as necessidades da ordem do convencimento estratégico de seus colegas médicos e das autoridades políticas.

Lemos, num dos cadernos doados, partes de um dos itens manuscritos:

Em virtude da minha remuneração ser mínima e não compatível com a de nível superior, houve entre mim e os médicos um consenso:

A Sociedade de Proteção da Maternidade e a Infância de Cuiabá, através da sua dinâmica e inteligente presidente ‒ d. Mariana Palma de Arruda, mantenedora da maternidade de Cuiabá, necessitava de uma enfermeira diplomada para o cargo de chefia, uma vez que a que lá se encontrava não comprovou seus títulos e, por isso, se encontrava demissionária.

Foi então que a citada presidente acima, de acordo com o diretor da Maternidade de Cuiabá, o saudoso e querido dr. Clovis Pitaluga de Moura, propuseram-me um salário de Cr$ 1.000,00 (mil cruzeiros), com registro na carteira de trabalho, para dar meio expediente na Maternidade de Cuiabá, no período matutino, com a finalidade de melhorar os atendimentos às parturientes e também transmitir ensinamentos técnicos às enfermeiras (assim denominavam as atendentes) que ali trabalhavam com a maior dedicação e amor, sob a orientação muito enérgica e eficaz do diretor da maternidade.

[...] Gostaria muitas e muitas vezes que o dia tivesse 48 horas, pois, muitas e muitas vezes, trabalhei também no período noturno, em complementação necessária às minhas responsabilidades do setor preventivo e curativo.13

E seguiu Adelaide:

A partir de agosto de 1987, quando deixei a DRH14 após as férias vencidas, solicitei minha lotação no Setor de Estatística, com objetivo de obter dados confiáveis, nos quais os planejadores da saúde pudessem confiar.

Fizemos revisão total nos mapas diários e mensais, de acordo com cada programa especial, elaboramos cronograma e fluxograma da remessa de dados, bem como preparamos instruturas para o preenchimento dos mapas. Saímos a campo e implantamos pessoalmente nos polos regionais de saúde, onde in loco discutíamos, discutíamos os problemas, procurando resolvê-los.

Faltando apenas dois polos para levarmos a nossa mensagem de treinamento em serviço, houve troca de secretário e o serviço foi totalmente desativado.15

A construção narrativa de AAO é interessante, ainda, do ponto de vista das conexões para as quais Adelaide procurou dar prova para o conteúdo das anotações feitas nos cadernos e para as fotografias. A doadora buscou apensar documentos que comprovassem a sua narrativa. Quando, por dez vezes, oferece registros fotográficos da enfermeira Dirce Fernandes dos Reis, Adelaide soma ainda mais informações mediante a inclusão do currículo da colega de trabalho. Entre portarias transcritas, cópias do Diário Oficial grifadas, certificados de realização de cursos, históricos escolares de alunos e de professores/as, estão na organização do acervo: o contrato firmado entre o estado de Mato Grosso e a pessoa de Adelaide em 1946, para custeio e manutenção do ensino no Rio de Janeiro, o seu pedido de exoneração do cargo de visitadora do Centro de Saúde Pública de Cuiabá, sua designação para a Secretaria de Educação, onde coordenou o Curso Auxiliar; e mais: estão assinalados na organização os registros em fotografia de prédios públicos de Cuiabá e do Rio de Janeiro, espaços de lazer, praias, praças, avenidas, locais consolidados do imaginário social destes lugares.

Adelaide procurou se afirmar como enfermeira numa área, a da saúde, de relevância notadamente intelectual na Cuiabá da metade do século XX. Ademais, indicou de quais formas a sua memória foi atravessada por poderes e pelos assuntos públicos de Estado, e vice-versa. Encontramos em AAO, a título de exemplificação do argumento: currículos de três enfermeiras que dividiram com ela as execuções de projetos e de três médicos, destacando-se o de Clóvis Pitaluga de Moura; três ofícios de agradecimento a Adelaide – o primeiro, emitido pela Secretaria de Saúde de MT em 1987, agradecendo pelos serviços na Divisão de Recursos Humanos; o segundo, de 1974, emitido pela 1ª Região de Saúde, feito em agradecimento pelos serviços prestados durante a enchente do rio Cuiabá, ocorrida no mesmo ano; e o terceiro, datado de 1993, trazendo agradecimento do Conselho Regional de Enfermagem de MT por sua colaboração no 1º Seminário Estadual de Ética da Enfermagem.


Figura 2 ‒ Morro da Luz [1940]. Fotógrafo não identificado. “Seis médicos e um padre posam para a fotografia do alto do Morro da Luz. O religioso veste batina, os demais vestem terno branco com gravata. Compõem a foto, segundo informação do verso, da esquerda para a direita: dr. Paulo Epaminondas; dr. Aguilar; dr. Virgilio Alves Correa; dr. Venicius Moraes; o padre Teodoro Kolczycki; dr. Manoel Souza Vargas; e o último de nome também não identificado”. Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Adelaide de Almeida Orro, BR MT APMT. AAO. 900. 990. 00002. Disponível em: http://atom.apmt.mt.gov.br/index.php/no-morro-da-luz. Acesso em: 18 ago. 2023

A segunda pessoa importante da oportunidade, Jair Rodrigues Carvalho, é natural de Cambará, nascido em 1938, havendo mudado para Madaguari, ambas cidades do Paraná, e posteriormente para Piracicaba, São Paulo, a fim de buscar educação formal. Jair retornou ao Paraná com o mesmo objetivo pelo qual havia saído do estado, dessa vez, para a cidade de Curitiba, onde finalizou o ensino básico e ingressou, em 1964, no curso de agronomia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Concluiu a graduação em 1967, e, já em 1973, mudou-se para Cuiabá, aproveitando a oportunidade de ser contratado pela extinta Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso (Codemat), no contexto dos incentivos migratórios dos governos federal e estadual para a “ocupação” dos “espaços vazios” da região. Em Mato Grosso, lecionou na UFMT por pouco tempo e logo se dedicou tão somente aos trabalhos de aerofotogrametria e fotointerpretação, entre outras atividades, do ramo da Codemat.

Na Codemat, Jair se ocupou com trabalhos de gabinete e de campo. A companhia tinha economia mista, com 51% de controle estatal, e era ligada a setores estratégicos do Poder Executivo de MT: planejamento e mediações de empréstimos para a criação de lotes urbanos e rurais, apoio à abertura de rodovias, promoção de parcerias com colonizadoras privadas, a exemplo da Integração Desenvolvimento e Colonização (Indeco), ou com órgãos federais, como o Instituto Brasileiro de Café (IBC). Consta como o maior sucesso de trabalho da Codemat a criação da cidade de Juína, ao norte do estado, onde Jair trabalhou coordenando loteamentos e distribuições de lotes. Desentendido com autoridades locais, foi transferido para o Instituto de Terras do Estado de Mato Grosso (Intermat) por volta do ano de 1986, onde assuntos fundiários que já conhecia passaram a integrar, objetivamente, os afazeres de regularização das terras. Até que, por fim, foi novamente transferido, em meados dos anos 1990, para a antiga Fundação Estadual de Meio Ambiente (Fema), hoje Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema).

JRC oferece registros de diferentes contextos das políticas de terra em MT, variando, nos suportes, entre fotografias reveladas e em negativos e diapositivos, capturas feitas durante os afazeres na Codemat e no Intermat, e em fotos digitais, na Sema. A Coleção Jair Rodrigues Carvalho contempla os anos de 1973 a 2007. E detalhamos melhor os três momentos: enquanto servidor público da Codemat, Jair registrou viagens de fiscalização e acompanhamento da fundação de cidades em áreas onde as fixações urbanas “ainda” não haviam se solidificado no estado, durante os anos de 1970 e 1980 (Figura 3); no Intermat, problemas relacionados às posses e ocupações de terras conquistaram a atenção dos objetos, lugares e pessoas registrados nas fotos; diferentemente, por fim, das fotografias feitas enquanto funcionário da Sema, já nos anos 2000, em viagens de fiscalização das condições de preservação de quatro parques estaduais. Entre ditos e não ditos no conteúdo dos itens observados isoladamente, ele construiu com o acervo uma trajetória em que figura como um tipo de agente das grandes transformações recentes de MT.


Figura 3 ‒ Aldeia Caiabi, 1974. Fotógrafo: Jair Rodrigues Carvalho. “Visita da equipe da Codemat à aldeia Caiabi ‘por ocasião de uma fiscalização’, ‘pegando o cacique para ajudar na identificação de terras que não tinham índios’ (JRC). Oito pessoas posam para a fotografia: três crianças, quatro mulheres e um homem com um bebê em seus braços. Nenhuma delas foi identificada. Trata-se de uma família indígena, o ‘homem é o cacique’ (JRC). Formatos geométricos e linhas retas estão desenhados em seus corpos. Nota-se ao fundo o avião monomotor utilizado pela equipe da Codemat”. Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Jair Rodrigues Carvalho, BR MT APMT. JRC. CD. CR. 00017. Disponível em: http://atom.apmt.mt.gov.br/index.php/aldeia-caiabi. Acesso em: 18 ago. 2023

Jair doou 1.010 registros fotográficos para o APMT, a maioria em negativos sem revelação. Durante as entrevistas concedidas para a identificação dos itens, o doador parece ter compreendido parte dos objetivos das atividades, o que motivou a doação dos itens digitais em momento já de quase finalização da demanda com os negativos, quando se entusiasmou com os trabalhos de identificação do conteúdo das imagens. Encontramos no histórico do arquivo da coleção, com “JRC” sendo utilizado para designar uma frase direta do doador, relato feito durante algum momento das entrevistas:

Não foram as instituições Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso (Codemat), Instituto de Terras do Estado de Mato Grosso (Intermat) e Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema) que produziram, acumularam e doaram o conjunto iconográfico ora apresentado, mas Jair Rodrigues Carvalho, e isto pede atenção arquivística especial. De 1974 a 2007, recorte temporal da produção das imagens, Jair Rodrigues Carvalho fotografou profissional e subjetivamente, de maneira que os interesses do “técnico Jair” e da “pessoa Jair” estiveram desde o início entrelaçados. Da escolha pelo “o quê” ou “quem” registrar, por qual negativo revelar, por quais fotos comporiam álbuns etc., Jair Rodrigues Carvalho fez escolhas. No momento, é inoportuno argumentar sobre tais escolhas, importa apenas registrar sua existência, tendo em vista que nos esforçamos para que as mesmas pudessem ser supostas e problematizadas pelos pesquisadores, mediante recursos técnicos condizentes com os traços de procedência. Gentilmente concedidas pelo doador à equipe do Arquivo Público de Mato Grosso (APMT) ao longo do primeiro semestre de 2016, as entrevistas foram cruciais para elencar detalhes do conteúdo das imagens e para criar o arranjo. Fruto disto, Jair Rodrigues Carvalho tornou-se a principal base das descrições das imagens ‒ que contêm, inclusive, citações diretas de falas, transcrições, sempre acompanhadas de aspas e das iniciais “JRC”. [...] Conforme afirmou o protagonista das imagens, “tudo tem sua hora” (JRC), tão logo, sua trajetória de vida e os diferentes contextos de Mato Grosso se expressam em cada uma das instituições pelas quais passou: Codemat, Intermat e Sema. Estas dão nome aos três grupos arquivísticos da coleção. Com exceção das fotografias organizadas em álbuns, os itens foram doados de forma desorganizada. Negativos e fotos reveladas foram, então, organizados por conteúdo, observando eventuais datas e localizações geográficas afins. Posteriormente, todo este arranjo foi aprovado e por vezes reorganizado durante as entrevistas. O quarto e último grupo arquivístico deriva quase que em sua totalidade destes momentos de conversa com Jair Rodrigues Carvalho: momento em que ele mesmo lançou mão de anotações em mapas para explicar ocorridos constantes nas imagens. De título homônimo, Anexos, destaca-se neste grupo também o áudio da única entrevista cuja autorização de divulgação foi concedida por Jair Rodrigues Carvalho.16

Tal como no caso dos cadernos de AAO, os três álbuns de JRC, citados acima, organizam uma narrativa que explica acontecimentos passados mediante diferenças entre o tamanho das fotos reveladas, algumas delas coladas em posição de abertura e/ou de encerramento dos álbuns, entre o conteúdo dos itens revelados e não revelados e entre os materiais organizados ou não em álbuns. Contemplam as reveladas, por exemplo, a mata derrubada do Projeto Filinto Müller e a inauguração da cidade homônima que a Codemat tentou criar, sem sucesso, no noroeste de MT, às margens do rio Roosevelt. Estão organizadas em recorte secundário, dispostas apenas em negativos, as casas dos mateiros que abriram a mata e os seus familiares, as ruínas dos projetos de colonização anteriores aos implantados naquele novo contexto de colonização e o transporte dos troncos de madeira retirados durante os processos.

Consolidada entre fotografias reveladas avulsas, sem sistematização finalizada por Jair, outras organizadas em álbuns e outras não reveladas, além das digitais, a descrição de toda a coleção JRC foi validada, fase por fase, nas entrevistas concedidas pelo doador. Os negativos são o total dos itens feitos enquanto Jair trabalhou no Intermat. Estão nas partes não reveladas, em geral, as ocorrências menos ricas em detalhes, registros de pessoas identificadas apenas pelo primeiro nome, ou as identificações mais generalizantes de toda a coleção. Apontamos o seguinte exemplo, um item em suporte de negativo:

Título: Fiscalização em área rural de [Aripuanã] (conjunto de dez documentos).

Data: [1986].

Âmbito e conteúdo: Dossiê contendo dez fotografias sem revelação tocantes aos trabalhos de fiscalização da equipe do Intermat em [Aripuanã]. A equipe se faz acompanhada de um grupo maior de pessoas – todos os membros são homens. A fiscalização se dá dentro de uma área de floresta. Não se sabe ao certo o objeto da fiscalização. No “documento 01”, “documento 02” e “documento 03”, têm-se o registro de três homens não identificados. Todos estão dentro de um trecho de mata relativamente fechada. Algo semelhante ocorre no “documento 04”, desta feita, registram-se quatro homens, os mesmos três das fotografias citadas anteriormente e outro. No “documento 05”, em frente a um barraco com cobertura de lona dentro da floresta, quatro pessoas posam para a fotografia. Da esquerda para a direita, o terceiro é Jair Rodrigues Carvalho. No “documento 06” e “documento 07”, segue-se registro panorâmico do local. Vê-se o terreno sinuoso da região, com morros e mata. Já no “documento 08”, o grupo se reúne nas proximidades de dois veículos tipo camionete, estacionados nas margens de estrada de chão que corta a mata. São aproximadamente quatorze homens. Há um mapa na carroceria de um dos carros. João Maltezo (presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Aripuanã), primeiro homem da direita para a esquerda, com chapéu de palha e camisa de mangas longas na cor clara, tem a atenção dos demais membros do grupo. Antônio Alexandre da Silva (advogado do Intermat), com camiseta polo preta e calças jeans, ao lado do carro que está à direita da fotografia, e técnico do Intermat não identificado, com óculos escuros presos na camiseta, escorado em frente ao veículo mais à esquerda da imagem, são os únicos outros homens identificados. Semelhantemente, no “documento 09”, o grupo se reúne em frente a um barraco com cobertura de lona. Desta feita, vê-se também um trator. A. A. da Silva fotografa o recinto. Perto dele está um dos veículos, cuja porta adesivada traz escrito: “Seaf // Vilmar Peres // Uso exclusivo em serviço”. Finalizando o dossiê, vê-se no “documento 10” uma placa feita de madeira, afixada em tronco de árvore dentro da mata. Nela está escrito: “Proibido caçar e // pescar nesta propriedade // Fazenda Jaracatiara // proibido entrada de // pessoas estranhas // prop. Luiz de Almeida”.

Características físicas e requisitos técnicos: O estado de conservação dos negativos é ruim, com tom de verde acentuado devido à despigmentação. Trata-se de uma sequência única de negativos, sem nenhuma revelação, e cujas presentes poses representam a contagem da nona até a décima oitava de um total de vinte e quatro.17


Figura 4 ‒ Vista aérea da mata derrubada no Projeto Filinto Müller, 1985. Fotógrafo: Jair Rodrigues Carvalho. O documento é cópia ampliada de outro item. A fotografia pede atenção para a mensagem que a comitiva de inauguração da cidade leria ao chegar em Filinto Müller. Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Jair Rodrigues Carvalho, BR MT APMT. JRC. CD. AT. 0186. Disponível em: http://atom.apmt.mt.gov.br/index.php/vista-aerea-da-mata-derrubada-no-projeto-filinto-muller-copia. Acesso em: 18 ago. 2023

Os acervos pessoais: vestígios de indivíduos, memórias de si

AAO e JRC são vestígios passados de proveniência privada e pessoal, concomitantemente, são acervos num espaço público, do APMT. A concepção de arquivo remete, conforme assinalamos, aos interesses dos órgãos da administração do Estado nacional, e apenas recentemente, desde as duas primeiras décadas do século XX, é que passou a contemplar memórias de indivíduos que não eram “personalidades da história” (nacional, oficial), ou, basicamente, cujos feitos não estavam diretamente ligados à matriz pública da história tradicional (Heymann, 2009).

Não existe movimento geral com condição de precisar, a um só tempo, toda a transformação do conteúdo dos arquivos em apenas um processo global. Todavia, ao menos para a realidade francesa, com grande influência na historiografia brasileira, foram os anos 1960 e 1970 os dois marcadores (Gomes, 1998, p. 122) “da ‘rotinização’ do uso dos arquivos privados”, ou, “numa linguagem mais jornalística e palatável ao senso comum, [do] boom dos arquivos privados”. Importa não perder de vista que aconteceu nessas duas mesmas décadas o começo da institucionalização universitária da produção histórica e do ensino de história no Brasil, um movimento atravessado por alterações de campos nos afazeres que têm como objetos elementares os documentos probatórios e, sobretudo, os históricos (Guimarães, 2011).

Um arquivo, por definição moderna, corresponde à expectativa de garantir veracidade, notória comprovação, congrega demandas da relação entre Estado e cidadão, cidadão e cidadão, nascente no chamado Ocidente.

À época das transformações sociais experimentadas desde os séculos XVIII e XIX em países como França, Reino Unido, Estados Unidos da América (EUA), não ao acaso, foi que se deu a largada para a convenção dos alicerces da atual divisão (burguesa) entre o público e o privado; e não somente, foi quando nasceu a própria ideia de indivíduo moderno que conquistou, em geral, as mediações sociais ditadas pelas fronteiras da cidadania e das economias capitalistas (Bourdieu, 2001; Elias, 1995; Koselleck, 1999). A questão, capilar, definiu estruturas de simbolizações e influenciou marcadores sociais objetivos: fundamentou a leitura de sujeitos que são tão dotados de diretos civis e políticos quanto são proprietários de subjetividades e de identidades singulares.18

Por um lado, esse sujeito contempla dada equidade moral, uma igualdade civil. Trata-se do indivíduo abstrato do pacto social burguês. Por outro lado, não podemos esquecer da possibilidade também ortodoxa, iluminista, hermética mesmo, de se conceber esse sujeito-indivíduo. Trata-se da pessoa possuidora de uma consciência indivisível, não cindida, que é particular e pertencente a ele.

O advento do indivíduo, no Ocidente, permitiu a extensão de regimes globais de gestão das subjetividades e das experiências de tempo, formas de se narrar a vida inseridas no mal-estar da modernidade por meio de (auto)biografias, ou pelo recorte subjetivo da realidade social inscrita na manutenção de diários, na preservação de objetos pessoais etc. E aqui o nosso argumento se vale de um duplo problema: o da historicidade do surgimento e da convenção de narrativas destinadas à memória e à escrita de si (Gomes, 2004); e o do estilo de narrar as coisas dentro de um tempo linear, progressivo, ditado por experiências cumulativas, quer para a vida das pessoas que se explicam nas biografias, de si e de outros indivíduos, quer para o desenvolvimento do Estado soberano que se descreve pela história (Foucault, 2010).

Daí que, diante de poderes consolidados, de determinados regimes de historicidade, as pessoas tenham aprendido a negociar com as hegemonias e a formular estratégias não necessariamente disruptivas, mas, isto sim, demandantes de lugares simbólicos, de pertencimentos, de legitimidades (Hartog, 2014; Ricoeur, 2007). Cabe-nos assinalar, ainda, a popularização das técnicas dos registros escritos, motivada, sobretudo, pela expansão da educação formal, e o barateamento do acesso a equipamentos como máquinas fotográficas, dois dos fatores basilares da multiplicidade de documentos que passaram a integrar as formas de narrar a vida do ângulo múltiplo dos recortes pessoais.

De modo, igualmente, que a qualidade múltipla dos indivíduos tenha adquirido a condição de qualificar o que estamos denominando aqui de popular. Não sendo necessariamente um grupo político, ou sinônimo de massa, ou de classe social, o “popular”, como o “comum”, refere-se neste artigo ao conjunto de sujeitos que, possuindo nomes próprios, dividem com outras pessoas a condição de ser algo singular, mas sob os limites da abstração generalista da cidadania – resguardando-se a ironia, e por isso o uso das aspas, de o “popular” ser a significação de hábitos da maioria populacional, não necessariamente representada, objetivamente, por um ente maior. Trata-se de ironia frequente nas estratégias e táticas de demanda e de contenção das representatividades sociais das pessoas diante do ente abstrato e objetivo do Estado democrático moderno.

De volta às considerações sobre as coleções AAO e JRC, defendemos o argumento de que os dois acervos tiveram nos ofícios de Adelaide e de Jair o seu ponto de convergência e de afirmação da relevância pública da guarda dos documentos. Sem a enfermagem e sem a engenharia, provavelmente, não existiriam os elementos “populares” de evidência para as estratégias dos dois sujeitos.

Em 2007, Adelaide encaminhou para o APMT algumas fotografias, manifestando o desejo de doar parte de seu acervo; e em 2011 decidiu repetir o ato, com mais 121 fotos, algumas duplicadas, além de ter doado os documentos escritos naquela ocasião. Jair fez a doação da maior parte dos itens no ano de 2007, tendo entregado outro conjunto de fotos durante as entrevistas no APMT, em 2016. De todo modo, entendemos que ambos os casos contemplam cálculos das doações sustentadas pelo desejo de somar trajetórias individuais a um passado mais amplo, incluído em história feita já em perspectiva, logo, conhecida pelos doadores e atinente ao passado recente de MT. O “popular”, assim, vale-se de duas indeterminações, a da mulher mato-grossense enfermeira e a do engenheiro das colonizações das terras, que indagam a fórmula acabada da história.

Na forma de narrar de AAO, é a própria biografia de Adelaide que fundamenta a afirmação de legitimidade da mulher enfermeira, distinta socialmente: a primeira diplomada da área em MT. Comparando-se com JRC, AAO traz apelo mais evidente para a intimidade da pessoa doadora. Entre o caminho percorrido pela mulher que está “à frente de seu tempo” e a “resistência da mulher enfermeira”, da “mulher especialista que cuida das pessoas”, a narrativa contra-histórica da coleção assinala a história que “avança no tempo” a partir da pessoa de Adelaide. Se não interpela entendimentos consolidados do conceito de história, amplia as possibilidades de narrativas, critica sem necessariamente denunciar, ocupa um lugar em um conjunto mais amplo do “processo histórico”, uma história adversa dentro da história, uma contra-história. Qual seja: sem Adelaide, o que seria da enfermagem em MT?

Já no caso de JRC, a forma de narrar tem com o doador a presença de um personagem importante, no entanto, ligado a processos que aconteceram, ou mesmo que aconteceriam, para além de suas estratégias pessoais. Jair foi um homem que coordenou ocupações “racionais” das terras e que, posteriormente, as protegeu da ilegalidade e dos crimes ambientais; encarna, assim, um movimento que despertence a ele, que não diz respeito à sua singularidade, ainda que seja constituinte de sua subjetividade e da sua condição de sujeito. Na contra-história da coleção, em paralelo aos trabalhos do engenheiro agrônomo, estão os vestígios do anonimato das famílias ribeirinhas, “posseiros”, povos indígenas, a comercialização de peixes nos rios, pontes sobre igarapés, casebres de antigos trabalhadores da borracha, registros das tensões dos loteamentos das terras. Jair foi importante, mas foi o personagem de um processo.

Tendo isso em mente, trazemos o seguinte item de AAO (Figura 5):


Figura 5 ‒ Enfermeiras leigas com o menino Silvio, criado por elas, na Maternidade de Cuiabá, 9/8/1950. Fotógrafo não identificado. Da esquerda para a direita, posam para o registro uma mulher não identificada, Nicolina Gomes, Hilda e Augusta Modesto, companheiras de área de Adelaide. O menino ao centro é Sílvio, criado pelas enfermeiras. Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Adelaide de Almeida Orro, BR MT APMT. AAO. 200. 220. 00009. Disponível em: http://atom.apmt.mt.gov.br/index.php/enfermeiras-leigas-com-o-menino-silvio-criado-por-elas-na-maternidade-de-cuiaba. Acesso em: 18 ago. 2023

E, para contemplar JRC, citamos o seguinte trecho da descrição de um de seus dossiês:

Dossiê contendo vinte e quatro fotografias tocantes à visita de fiscalização da equipe da Sema às possíveis ocupações, desmatamento e outras atividades irregulares no Parque Estadual do Xingu. A rota para chegar ao parque se dava mediante navegação pelos rios Fontoura e Xingu, daí a natureza do conteúdo que se segue. No “documento 01”, no “documento 02” e no “documento 03”, registra-se o preparo da equipe para o início da viagem pelo rio Fontoura. Trata-se de um local de fazenda, propriedade particular – “estes locais costumavam funcionar como apoio aos trabalhos dos técnicos, emprestando barcos e motores, fornecendo alimentos para as equipes” (JRC). [...] No “documento 08” e no “documento 09”, destacam-se duas placas afixadas no tronco de uma árvore nas margens do rio Xingu. Na placa de cima se lê: “Governo Federal // Ministério da Justiça // Fundação Nacional do Índio // área proibida // terra indígena com acesso // interditado a pessoas estranhas // [menções ilegíveis a artigo da Constituição Federal e a duas leis pertinentes ao acesso à área]”. Na placa de baixo se lê: “Fazenda // pirilampo // [ilegível]”. [...] Em via de finalizar o dossiê, no “documento 23”, outra vez em solo, Jair. R. C. posa para o registro em cima de pranchas de madeira – “a madeira beneficiada vinha do intuito de fazer construções no local, e assim obter a garantia da posse da área” (JRC). Finalmente, no “documento 24”, Jair R. C. aparece no meio de mata derrubada, “provavelmente em via de preparar plantios e garantir posses” (JRC). Em ambos os casos as áreas estão dentro do parque, e Jair R. C. segura um aparelho de GPS nas mãos.19

As últimas questões: o que contam quadros de arranjo?

As organizações das coleções AAO e JRC falam o que o conteúdo de cada item não conseguiria anunciar por si mesmo. E foi aproveitando do potencial efeito duplo de uma concepção de narrativa que não apenas transmite significados, mas que também os cria, que numa reflexão teórica mais geral, com base nos trabalhos com as coleções, apontamos neste artigo algumas pistas acerca da diversidade de leituras possíveis dos dois casos. Narrar diz respeito a uma ação de “dizer algo acerca de”, mas também contempla a interpretação que se faz daquilo que foi apresentado, a narrativa consolidada por quem absorveu, compreendeu o que foi dito, e ainda as novas leituras construídas, uma contingência do inteligível em face das tentativas de controle e disciplina dos significados (Ricoeur, 2007).

Fio condutor dos trabalhos em instituições de arquivos, a proveniência, nesse sentido, foi o que assumiu a função de mediação das questões apresentadas; um ponto que julgamos, por fim, ser oportuno demonstrar a propósito da estrutura dos quadros de arranjo de AAO e JRC. Reforçando o nosso argumento, estão nos quadros as intepretações sobre si de Adelaide e Jair, as mensagens escritas dos documentos, as anotações de antes e durante as entrevistas, as informações colhidas pelos técnicos do APMT, as maneiras de dispor e de privilegiar este e aquele item documental dos titulares etc.

Se observadas isoladamente, item por item, as leituras dos documentos de AAO e JRC ficam mais circunscritas àquilo que Adelaide e Jair desejaram objetivamente contar. Lemos num dos itens de AAO, escrito em manuscrito:

Como cuiabana adotiva, sempre amei Cuiabá que nasceu e vingou por teimosia.

Plantada por bandeirantes ambiciosos, no meio do sertão ínvio da Amazônia, qual diamante em tapete esmeraldino “cidade verdade”, na luta do ferro e do fogo, ofereceu aos seus filhos, uma coragem indômita e uma resistência incomparável para suportar as agruras do desconforto.

Cuiabá, no coração da América do Sul, “ponto geodésico, ‘determinado pelo valente mimoseano’ [natural da cidade de Mimoso (MT)] Marechal Candido Rondon”, que nos ensinou a civilizar os sertões e a nós mesmos.

Sei que fomos audaciosos e muito sonhadores em pedir de início uma escola de enfermagem de nível superior e, por incrível que pareça, a obtivemos na lei, mas, infelizmente, por falta de enfermeiras diplomadas, não pudemos colocá-la em prática.

Deixamos para o futuro e nos apegamos com toda altivez, garra e confiança na instalação do Curso de Auxiliar de Enfermagem, constante da mesma lei.20

E encontramos, em duas partes de um dos dossiês de JRC, registros das placas da fundação do Projeto Filinto Müller, em 1985:

Governo Júlio Campos // Progresso para todos // Se cidades forem planejadas e construídas // Se florestas e campos tornarem-se racionalmente produtivos // Riqueza e fartura brotarão // Garantindo a sobrevivência da humanidade. [...] Governo Júlio Campos, a história desta vasta região ficará enriquecida com a página da coragem, otimismo e esperança, que vosso governo edifica.21

Nas passagens, Adelaide tenta se alinhar ao “passado glorioso” do processo civilizatório que do Sudeste brasileiro chegou a MT, ao passo que Jair, semelhantemente, fotografou mensagens de honraria à fundação do novo centro urbano na Amazônia – segundo relatou, ele mesmo fez o registro das duas imagens e, inclusive, foi quem criou o conteúdo das mensagens das placas. Observando-se item a item, vê-se que Adelaide e Jair imprimiram em parcela da documentação uma narrativa edílica, cotidiana e corajosa. Duas realidades que, analisando os quadros de arranjo, isto é, as coleções de uma perspectiva mais geral, acabam por se fazerem menos harmônicas, mais contraditórias: Adelaide e a enfermagem estão encobertas por jogos de poderes hegemonizados por médicos e pela medicina, por regras que reforçam dicotomias entre uma “ciência masculina” e os “deveres femininos” nas políticas do cuidado das pessoas; Jair foi agente público da “ocupação”, do controle e da preservação da propriedade e depois do meio ambiente.

Tabela 1 ‒ Quadro de arranjo de AAO



Acerca da mudança das atribuições dos códigos de referência, entre os itens iconográficos e os escritos, vale a pena informar que o APMT foi uma instituição ligada à Biblioteca e Arquivo Público até o ano de 1972, quando enfim passou a integrar a extinta Secretaria de Administração (SAD), hoje Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag), separando-se da Biblioteca. Ocorrências como essa oferecem pistas para a construção da história dos arquivos e introduzem transformações das técnicas adotadas no tratamento dos documentos de guarda. Destarte, as metodologias do APMT ‒ que inicialmente estavam mais próximas às práticas de biblioteconomia, depois, gradativamente, aproximaram-se da arquivística ‒ acabaram por transferir tal histórico para a maneira de organizar os documentos de Adelaide: num primeiro momento, os trabalhos se fixaram na biografia e em sua trajetória pessoal: “nasceu em”; “é filha de”; “estudou”; “formou-se”; “casou-se com”; “trabalhou”; “foi mãe”; “teve amigos”; “conheceu lugares e épocas”; adiante, na biografia, a organização tentou incorporar a referência das tipologias dos documentos escritos.

É nos documentos escritos que a narrativa da coleção proveniente das memórias de Adelaide tem contradições mais evidentes. Não obstante, só se pode conhecer a complexidade das mensagens da doadora se forem incluídos na observação do acervo os trechos de linearidade e harmonia acentuadas, as fotografias. Trata-se da contra-história dentro da história da enfermeira.

Tabela 2 ‒ Quadro de arranjo de JCR



Notadamente, o volume e a multiplicidade de conteúdos das fotos de JRC concentraram-se nas atividades feitas na Codemat – com projeção particular para os itens organizados nos três álbuns doados. Compostas de fotografias reveladas e não reveladas, essas três peças traziam originalmente os objetos não revelados em etiquetas de plástico coladas nas capas de encerramento de cada álbum, ordenamento com recorte prévio, que foi respeitado na sequência dos números dos códigos de referência dos itens. De forma geral, os agrupamentos da coleção englobam os álbuns, as cidades onde Jair trabalhou, os projetos, as viagens e as fiscalizações. Por sua vez, na medida em que o arranjo respeita critérios do doador, por consequência, é possível verificar que, ao todo, a coleção estabelece aquilo que é ou não prioritário. Trata-se da história que “vem primeiro”, e da contra-história que “vem depois”.

Entre as duas histórias de AAO e JRC, por assim dizer, está anunciado aquilo que as duas contra-histórias enunciam. Não podemos esquecer que o acúmulo e a produção foram realizações de Adelaide e de Jair, tão logo, quando nos permitimos interpretar as coleções como, em parte, contra-históricas, tínhamos em mente que todos os conteúdos registrados eram históricos num dos sentidos mais clássicos do que se entende por história: narrativas sobre o passado fundamentadas em registros que “comprovam fatos”. Visamos, em suma, indicar as relações de poder, as hierarquias estabelecidas entre as distintas narrativas.

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Recebido em 28/8/2023

Aprovado em 18/1/2024


Notas

1 Observando desse outro recorte, nosso objetivo é fazer uma discussão que não questiona as razões das pessoas. Partimos de um ponto um tanto geralista, a saber: ocorre que, em nossas vidas cotidianas, como indivíduos modernos, estamos constantemente impelidos a deixar registros de nossas existências e o fazemos lançando mão de recortes mais ou menos aleatórios, registrando não propriamente nossas vidas, mas partes delas, na toada do que afirmou Philippe Artières (1998, p. 10): “Conservamos senão uma parte ínfima”. Dito objetivo tem dimensões teóricas e metodológicas que, conforme advertiu Ângela de Castro Gomes (1998), contemplam tanto a expectativa de se compreender cotidianos pessoais na história (a revalorização do indivíduo percebido dentro de uma noção de história feita por pessoas, não apenas de estruturas, números, análises quantitativistas ou psicologizantes) quanto o cuidado de não adotar a originalidade dos documentos como a “verdade” faltante para uma melhor leitura do passado histórico. Ponderou Gomes (1998, p. 125): “Este é o grande feitiço do arquivo privado. Por guardar uma documentação pessoal, produzida com a marca da personalidade e não destinada explicitamente ao espaço público, ele revelaria seu produtor de forma ‘verdadeira’: aí ele se mostraria ‘de fato’, o que seria atestado pela espontaneidade e pela intimidade que marcam boa parte dos registros”. Já acerca do enfrentamento de obviedades ainda não esgotadas, o objetivo anunciado na abertura do parágrafo, cabe-nos destacar, de um vasto universo de trabalhos anteriores, o dossiê da revista Estudos Históricos de 1998, volume 11, número 21, dedicado ao tema dos arquivos pessoais (onde estão os artigos citados de Artières e Gomes), assim como assinalar duas coletâneas de textos seminais organizadas por Isabel Travancas, Joëlle Rouchou e Luciana Heymann (2013) e Luciana Heymann e Letícia Nedel (2018).

2 A construção da hipótese ocorreu com inspiração em estudos de Emília Viotti da Costa (2014) e na dialética negativa de Theodor W. Adorno (2009). Trabalhos de Paul Ricoeur (2007) e de Saidiya Hartman (2020) são outras duas fontes de inspiração.

3 A guarda permanente das instituições de arquivo é um passaporte, para as pessoas, para o não esquecimento? Recordamos aquilo que Pierre Bourdieu (2001) compreendeu como sendo uma “ilusão biográfica”: o contínuo que toma por base o nome próprio, atribuído a uma individualidade biológica, e que une diferentes agentes sociais, em diferentes campos de atuação, numa temporalidade que avança enquanto o ser biológico envelhece.

4 Exames sobre a transferência de capitais simbólicos entre acervos e instituições foram feitos e/ou organizados por Isabel Travancas, Joëlle Rouchou e Luciana Heymann (2013), Luciana Heymann e Letícia Nedel (2018), entre outras especialistas. Ademais, para nossa proposta de análise de um movimento conduzido em dois fluxos, a referência principal foi a provocativa reflexão de Saidiya Hartman (2020).

5 A doação de documentos do intelectual mato-grossense foi realizada em 2007. A maior parte deles se referia às atuações de advogado de Silva Freire, tendo permanecido com a família do jurista, poeta e jornalista de atuação um conjunto mais diverso de itens documentais. A Casa Silva Freire, instituição de direito privado criada pela família com finalidade educacional, científica, cultural e artística, com estatuto social assinado em 2019, vem dedicando esforços na catalogação e digitalização das poesias, livros, cartas, entre outros itens de sua vasta produção. A instituição possuiu a guarda dos itens não doados. Para saber mais, consulte o catálogo da instituição. Disponível em: http://www.casasilvafreire.org.br/projetos/exibir.asp?id=2&projeto=acervo_silva_freire_catalogacao_e_digitalizacao. Acesso em: 30 jan. 2024.

6 Título que faz referência à "Vênus em dois atos", artigo de Saidiya Hartman (2020).

7 Os documentos doados tinham por proveniência organizações prévias inacabadas, passaram por arranjos nas dependências do APMT após entrevistas, receberam tratamento técnico para fins de preservação e acesso como coleções. Coube à proposta de englobá-los em três atos, um cuidado técnico e duas advertências de natureza ética: 1) as reflexões sobre os arquivos pessoais conduzidas mediante os casos das coleções têm por expectativa satisfazer considerações mais gerais (dos arquivos) a partir de recortes mais específicos (das coleções); 2) porque as duas coleções envolveram o trabalho de muitos servidores da instituição, e procurando ecoar as dúvidas, os estudos e encaminhamentos coletivos das atividades, a escrita deste artigo foi feita a partir de um narrador em primeira pessoa do plural; 3) para a construção das duas narrativas do artigo não foram utilizados depoimentos concedidos pelas pessoas doadoras a nós como técnicos do APMT, usamos apenas as informações que estão para acesso público no sistema ou nas dependências da instituição.

8 Diferentemente dos iconográficos, os documentos escritos da coleção não estão disponíveis para acesso remoto. Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Adelaide de Almeida Orro, BR MT APMT AAO. Disponível em: http://atom.apmt.mt.gov.br/index.php/adelaide-de-almeida-orro-2. Acesso em: 16 ago. 2023.

9 Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Jair Rodrigues de Carvalho, BR MT APMT JRC. Disponível em: http://atom.apmt.mt.gov.br/index.php/arquivo-jair-rodrigues-carvalho. Acesso em: 16 ago. 2023.

10 Ainda do ponto de vista teórico e metodológico, acreditamos ser importante assinalar, a título de evidência, as leituras que fizemos de contribuições clássicas da arquivologia brasileira, Heloísa Bellotto (2002) e Ana Célia Rodrigues (2012), assim como de outras com relevância mais geral às humanidades, focadas no problema do indivíduo moderno, Pierre Bourdieu (2001) e Norbert Elias (1995).

11 Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Adelaide de Almeida Orro, BR MT APMT. AAO. 000. CAD 00004. Acesso via sistema informatizado ainda não disponível, item em fase de indexação e revisão final.

12 Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Adelaide de Almeida Orro, BR MT APMT. AAO. 200. CAD 00104. Importa informar, ainda, que referências e este item e ao BR MT APMT. AAO. 000. CAD 00004 se repetirão mais adiante em nosso texto.

13 Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Adelaide de Almeida Orro, BR MT APMT. AAO. 000. CAD 00004. Partes 55 e 58 do item.

14 Divisão de Recursos Humanos, Secretaria de Saúde de Mato Grosso.

15 Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Adelaide de Almeida Orro, BR MT APMT. AAO. 000. CAD 00004. Parte 225 do item.

16 Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Jair Rodrigues Carvalho. Histórico do arquivo. Disponível em: http://atom.apmt.mt.gov.br/index.php/arquivo-jair-rodrigues-carvalho. Acesso em: 21 ago. 2023.

17 Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Jair Rodrigues Carvalho, BR MT APMT JRC IT FC 0199. Fotógrafos: Jair Rodrigues Carvalho e não identificado. Disponível em: http://atom.apmt.mt.gov.br/index.php/fiscalizacao-em-area-rural-de-aripuana-2-conjunto-de-dez-documentos-fotografos-jair-rodrigues-carvalho-e-nao-identificado. Acesso em: 23 ago. 2023.

18 Norbert Elias (1995) trabalhou com a tensão atinente à passagem da sociedade de corte para uma nova sociedade burguesa, e o fez lançando mão da inquietação que a vida e a morte do austríaco Wolfgang Amadeus Mozart nos causam na atualidade: Mozart “fracassou”; a despeito de ser jovem “prodígio” musical, morreu endividado, doente, em 1791, aos 35 anos, sem obter êxito na venda de sua arte numa sociedade de estrutura social de arte artesã, feita por encomenda e segundo os gostos das cortes.

19 Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Jair Rodrigues Carvalho, BR MT APMT. JRC. SM. PX. 0207. Título: Rio Fontoura e Rio Xingu (conjunto de vinte e quatro documentos). Data: 2007. Fotógrafos: Jair Rodrigues Carvalho e não identificado. Partes 2, 3, 8, 9, 23 e 24 do dossiê. Disponível em: http://atom.apmt.mt.gov.br/index.php/rio-fontoura-e-rio-xingu-conjunto-de-vinte-e-quatro-documentos-fotografos-jair-rodrigues-carvalho-e-nao-identificado. Acesso em: 22 ago. 2023.

20 Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Adelaide de Almeida Orro. BR MT APMT. AAO. 000. CAD 00004. Parte 10 do Item.

21 Arquivo Público de Mato Grosso, Coleção Jair Rodrigues Carvalho. Título: Placas e faixas de inauguração do Projeto Filinto Müller (conjunto de sete documentos). Fotógrafo: Jair Rodrigues Carvalho. BR MT APMT. JRC. CD. AT 0181. Partes 2 e 7 do dossiê. Disponível em: http://atom.apmt.mt.gov.br/index.php/placas-e-faixas-de-inauguracao-do-projeto-filinto-muller-2-conjunto-de-sete-documentos. Acesso em: 21 ago. 2023.


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