Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, set./dez. 2023

O arquivo como objeto: cultura escrita, poder e memória | Dossiê temático

Descobrir Nize Isabel de Moraes

O “arquivo pessoal” de uma historiadora negra entre Brasil e Senegal (1967-2015)

Discovering Nize Isabel de Moraes: the “personal archive” of a black historian between Brazil and Senegal (1967-2015) / Descubrir Nize Isabel de Moraes: el “archivo personal” de una historiadora negra entre Brasil y Senegal (1967-2015)

Juliana Barreto Farias

Doutora em História Social pela Universidade da São Paulo (USP), com pós-doutorado em História da África pela Universidade de Lisboa, Portugal. Professora adjunta do curso de licenciatura em História da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) e do mestrado em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Brasil.

julianafarias@unilab.edu.br

Resumo

A historiadora paulista Nize Isabel de Moraes (1938-2015) – ainda praticamente desconhecida no Brasil – viveu na cidade de Dakar, no Senegal, tornando-se uma africanista pioneira, especialista nos estudos sobre a Senegâmbia. Este artigo esboça os contornos de uma “biografia” de seu acervo, a partir de seu “arquivo pessoal”, buscando atentar para os movimentos de sua constituição e preservação, além de examinar algumas leituras do conjunto documental, observando oscilações e (im)possibilidades na trajetória desta intelectual negra.

Palavras-chave: “arquivo pessoal”; Nize Isabel de Moraes; Senegal; história; “biografia do acervo”.

Abstract

São Paulo historian Nize Isabel de Moraes (1938-2015) – still virtually unknown in Brazil – lived in the city of Dakar, Senegal, becoming a pioneering Africanist, a specialist in Senegambian studies. This article sketches the outlines of a “biography” of her collection, based on her “personal archive”, looking at the movements involved in its constitution and preservation, as well as examining some readings of the documentary collection, observing oscillations and (im)possibilities in the trajectory of this black woman intellectual.

Keywords: “personal archive”; Nize Isabel de Moraes; Senegal; history; “biography of the collection”.

Resumen

La historiadora paulista Nize Isabel de Moraes (1938-2015) – aún prácticamente desconocida en Brasil – vivió en la ciudad de Dakar, Senegal, convirtiéndose en una pionera africanista, especializada en estudios sobre Senegambia. Este artículo esboza los contornos de una “biografía” de su acervo, a partir de su “archivo personal”, considerando los movimientos involucrados en su constitución y preservación, así como examinando algunas lecturas del acervo documental, observando oscilaciones e (im)posibilidades en la trayectoria de esta intelectual negra.

Palabras clave: “archivo personal”; Nize Isabel de Moraes; Senegal; historia; “biografía de la colección”.

A descoberta de ser negra é mais do que a constatação do óbvio. (Aliás, o óbvio é aquela categoria que só aparece enquanto tal depois do trabalho de se descortinar muitos véus.) Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar a sua história e recriar-se em suas potencialidades.

Tornar-se negro (Souza, 2021, p. 18)


Além dos “dias de Dakar”

Hoje é dia 16/11/1967. Hoje faz exatamente 15 dias que estou em Dakar. Aqui não é muito fácil. Todos são diferentes. Fiz 2 exames e não passei em nenhum, pois a língua francesa para mim está se tornando um bocado difícil. Pelo que vejo vou ser obrigada a entrar numa escola para crianças (enfant) para começar o B-A-BA francês. Os negros africanos são completamente diferentes uns dos outros (assim penso eu). Pois não tomam conhecimento da mulher, a moça, que para eles é algo comum, todas são iguais, eles não fazem diferença alguma. Já tive uma experiência um bocado desagradável com um rapaz de Gana, por sinal bastante desagradável mesmo, tudo por falta de experiência e orientações neste sentido. Só agora posso compreender por que me chamavam de inocente no teatro, todos continuam rindo de mim aqui na África. Tudo por causa da minha maneira de pensar. Ninguém me entende. Quando penso que encontrei uma pessoa amiga, jaz trás... (Diário, 1967).1

Esta longa citação é o início do relato da historiadora paulista Nize Isabel de Moraes (1938-2015) sobre seus “dias de Dakar”. Recém-chegada ao Senegal, ela decidira registrar as dificuldades que encontrou em seu processo de adaptação à cidade: barreiras da língua; convívio nem sempre agradável com os moradores e, de uma forma geral, com outros africanos; relações de gênero desiguais. Embora não tenhamos informações mais exatas sobre sua partida do Brasil ou mesmo sobre o desembarque na África, sabemos que, em 1967, ela já estava na capital do país e, no ano seguinte, ingressara na Universidade de Dakar (atual Cheikh Anta Diop), onde recebia uma bolsa de pesquisa.

Mas a situação ainda não parecia muito bem resolvida. Em um caderno de páginas quadriculadas, cujo título escrito à caneta era “Diário NMoraes – Dakar-Senegal-África”, ela voltou a narrar suas experiências africanas. Se quando chegara “para estudar na Universidade de Dakar” seu francês era “péssimo”, o que a “obrigara” a fazer um curso, em outubro de 1968 ainda não conseguira finalizá-lo, “devido aos acontecimentos que atingiram a universidade”. Conforme registrou,

Os resultados do descontentamento dos estudantes senegaleses tiveram graves consequências. Uma boa parte de estudantes estrangeiros deixaram Dakar definitivamente: francês, daomeanos, malianos, camaronenses, ivaroenses [sic] (Cote d’Ivoir), Sudan etc. De minha parte, as coisas se complicaram, pois resisti, teimei e fiquei, isto porque a embaixada brasileira foi obrigada a fazer uma declaração dizendo que eu ficava de espontânea vontade, tirando assim toda a sua responsabilidade sobre a minha pessoa. Aliás, bastante racista a referida embaixada, chegando até a expulsar uma senhora francesa que estava em minha companhia. Acabei ficando [o grifo é meu]. (Diário, 1968)2

À primeira vista, essa narrativa periódica parecia seguir um projeto predefinido de registro de suas experiências. Mas, na verdade, não havia muita regularidade nessa escrita e, quase sempre, as descrições eram encerradas abruptamente. Não porque Nize Isabel tenha, afinal, se adaptado ao novo lar ou retornado ao Brasil. Pelo contrário. Ela continuaria morando no Senegal até 2015, ano de seu falecimento. Ao longo desse quase cinquentenário de vida africana, com algumas temporadas na França e em outros países, ela iniciou novos diários, também interrompidos rapidamente. Ainda assim, seguia aproveitando qualquer pedaço ou bloco de papel para anotar seus roteiros de pesquisa e viagens, maldizer suas dificuldades financeiras, lembrar de pessoas queridas, além de alguns desafetos, e ainda denunciar cenas de racismo e machismo.

Mas, em todo esse tempo no Senegal, Nize Isabel de Moraes experimentou, igualmente, muitas conquistas profissionais e pessoais. Os entraves linguísticos logo se dissiparam, e ela não só conseguiu falar e escrever em francês, como aprendeu inglês e um pouco de wolof, língua da maior parte da população senegalesa. Na Universidade Sorbonne, em Paris, tornou-se mestra e doutora em história da África, respectivamente, nos anos de 1972 e 1977. Pesquisadora do Institut Fondamental d’Afrique Noir (Ifan), na Universidade de Dakar, foi reconhecida como uma das pioneiras no estudo da Petite Côte, região da Senegâmbia, notadamente nos séculos XVII e XVIII.3 Também se dedicou a outras atividades em diferentes instituições e associações, a exemplo da embaixada brasileira em Dakar, da emissora Radiodifusion Nationale, onde tinha um programa de rádio, com notícias e músicas brasileiras, e ainda da Associação de Historiadores do Senegal e do Clube da Imprensa de Dakar (com participação em debates e publicações).

À época de suas primeiras investigações no Senegal, em especial nos anos 1960 e 1970, havia pouquíssimas pesquisadoras brasileiras – e negras – dedicadas à história da África, e menos ainda realizando seu trabalho in loco no continente, mesmo quando os primeiros núcleos universitários de estudos africanos já estavam sendo criados pelo Brasil. Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o Centro de Estudos Afro-orientais (CEAO) iniciara suas atividades em 1959.4 No Rio de Janeiro, o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos (IBEAA) foi criado em 1961 como um órgão diretamente ligado ao presidente Jânio Quadros. Idealizado por Cândido Mendes, então chefe da assessoria internacional da presidência, foi extinto com o golpe militar de 1964. Nove anos depois, Mendes retomou o projeto em novos moldes, vinculando-o à Universidade Cândido Mendes, com o novo título de Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA). Após quatro anos, a Universidade de São Paulo (USP) também estabeleceria o seu centro de estudos africanos (Schilickman, 2015, p. 38) e, inclusive, a própria Nize Isabel dele participou, como veremos adiante.

Uma das únicas intelectuais negras dessa primeira geração de africanistas,5 Nize frequentou o curso de história da USP entre os anos de 1959 e 1964, tendo concluído bacharelado (1963) e licenciatura (1964). Como a maior parte de suas colegas mulheres, dois anos após se formar, passou a trabalhar como professora de história no ensino secundário.6 Não tenho, até o momento, informações mais detalhadas sobre projetos ou pesquisas em que, porventura, ela tenha se envolvido naqueles anos. De toda forma, em um curriculum vitae datilografado (e sem data) que consta de seu acervo no Ifan, há a anotação de que, nos anos 1960, concluiu os estudos superiores no Centro de Estudos e Cultura Africana junto à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), hoje chamado de Centro de Estudos Africanos (CEA).

Criado em 1965 por Fernando Augusto Albuquerque Mourão e Ruy Galvão de Andrada Coelho,7 o centro estava, inicialmente, vinculado ao departamento de sociologia e, três anos depois, foi incorporado ao quadro geral da universidade, tornando-se interdisciplinar e interdepartamental. Através das grades disciplinares de diferentes áreas, o núcleo oferecia cursos diversos, recebendo também alunos africanos. Por conta dos esforços do CEA, a USP foi uma das primeiras universidades brasileiras a ofertar disciplinas sobre África e, a partir de 1972, os cursos de ciências sociais, história e geografia as disponibilizavam tanto para a graduação como para a pós-graduação.

Nessas aulas, os temas em destaque também seguiam os movimentos políticos em ebulição naquele momento no continente africano, com abordagens sobre os processos de independência e as novas configurações nacionais. Sem o mesmo incentivo a investigações na África, especialmente quando comparada ao centro da UFBA, por exemplo, a instituição paulista – e sobretudo o departamento de sociologia – sobressaía por sua abertura à produção acadêmica africanista desde pelo menos fins da década de 1960. Foi ali que Fernando Mourão defendeu, em 1969, a primeira dissertação brasileira sobre a África, com o título A sociedade angolana através da literatura: a Luanda na obra de Castro Soromenho e orientação de Ruy Coelho (Schilickman, 2015, p. 39; Pereira, 1991).

Até agora, disponho de poucos dados acerca do período em que Nize de Moraes esteve na USP – trata-se de uma pesquisa em instituições paulistas ainda em fase preliminar.8 De toda forma, há uma carta em seu arquivo remetida pelo CEA e assinada justamente pelo professor Mourão, atestando a proeminência de suas pesquisas, conforme lemos a seguir:

A professora Nize Isabel de Moraes no período em que realizou pesquisas em Dakar, junto ao Institut Fondamental de L’Áfrique Noire – Universidade de Dakar – produziu 17 trabalhos, ora sozinha e ora em colaboração com especialistas de renome internacional na matéria específica, trabalhos estes que li a seu pedido. A maior parte destes trabalhos são de maior interesse para a reconstituição do passado histórico da Costa Ocidental da África, principalmente em função das relações comerciais, o que apresenta duplo interesse atual. Cabe pôr em destaque o fato de que estes trabalhos mereceram publicação e já se encontram estampados em revistas do exterior, órgãos de instituições de maior renome científico, o que torna evidente o esforço da pesquisadora e a qualidade dos referidos trabalhos. (São Paulo, 29 de novembro de 1977)

Certamente os primeiros estudos africanos na USP “inspiraram” – ou motivaram – a longa viagem da historiadora paulista para o Senegal. Entre os professores do CEA em seus primeiros tempos, estava, por exemplo, o camaronês Paul Etamé Ewané, licenciado em direito pela Universidade de Dakar.9 Em princípios dos anos 1960, o Senegal vivia suas primeiras experiências nacionais. Como outras nações recém-independentes – só no ano de 1960, foram 16 novos estados africanos –, também buscava encontrar a chave para o fim da pobreza, do subdesenvolvimento econômico e libertar-se das pressões da Guerra Fria e de alguns persistentes laços colonialistas. Ainda assim, sob o governo de seu primeiro presidente, Léopold Sédar Senghor, o país continuava tendo fortes conexões com a França e tentava evitar o socialismo pan-africano (Dávila, 2011, p. 18-19).

Entretanto, Senghor também abraçou a negritude, movimento político, cultural e intelectual que questionava o racismo e celebrava a herança compartilhada entre África e mundo atlântico. Em 1966, organizou o 1o Festival Mundial de Artes Negras (Fesman), na cidade de Dakar, reunindo delegações de 37 países, com participação de intelectuais e artistas africanos e da diáspora. Entre os brasileiros ali representados, estavam as obras de Rubem Valentim, Heitor dos Prazeres e Agnaldo dos Santos, que também foram exibidas na mostra de arte contemporânea. Ao final, o prêmio de escultura foi concedido a Agnaldo dos Santos, já falecido em 1962.10

De acordo com Rosimar Diouf e Nina Gonçalves Silva, amigas brasileiras de Nize que até hoje vivem no Senegal, a historiadora paulista também teria chegado ao país africano para acompanhar o Fesman.11 Embora não descartemos essa hipótese, até o momento, os registros iniciais sobre sua estada no país remetem ao ano de 1967. Sem conclusões mais precisas sobre essa questão, é possível ao menos afiançar que, cerca de dois anos após finalizar a graduação (em 1965), Nize Isabel de Moraes já estava em Dakar. E talvez, durante os tempos de estudante universitária, seus professores-pesquisadores tenham-lhe instilado o “vício da pesquisa”, já que, mal aportou na África, começou a se embrenhar pelos acervos senegaleses e também pelos europeus.

Todavia, ainda hoje, essa intelectual negra continua praticamente desconhecida no Brasil, e mesmo entre a historiografia africanista produzida no país. Entre os poucos estudiosos que dialogam com sua obra, podemos citar o historiador Thiago Henrique Motta, em sua tese de doutorado de título História atlântica da islamização na África Ocidental: Senegâmbia, séculos XVI e XVII. Sabemos ainda que uma cópia da dissertação de Nize, intitulada La Petite Côte d’après le capitão Francisco de Lemos Coelho (ca.1669), pode ser consultada no catálogo de dissertações e teses do Centro de Estudos Africanos da USP.

***

A obra e a trajetória de Nize Isabel de Moraes surgiram como um dos meus temas de pesquisa quase por acaso. Foi no início de 2019, em um almoço na casa do historiador senegalês Boubacar Barry, em Dakar, que eu e a professora Maria Aparecida Lopes ouvimos falar de Nize Isabel pela primeira vez. Quando conversávamos sobre a (não) presença de pesquisadores do Brasil nos arquivos públicos e privados do Senegal, Barry nos falou de uma historiadora que viveu por longo período na capital do país. Naquele momento, eu e Maria estávamos no país africano para realizar investigações, cada uma com sua temática, sobre mulheres senegalesas e relações de gênero. Assim, a trajetória de Nize não estava, inicialmente, em nossos planos de trabalho. Mas ela “teimava” em abrir nossos caminhos.12

Poucos dias depois, aconteceu então um novo “encontro”. Desta feita, na casa da ex-embaixatriz Madeleine Senghor, no bairro de Almadies. Naquela tarde, enquanto apreciávamos sua coleção de arte senegalesa contemporânea, ela ia contando histórias dos tempos em que seu marido, Simon Senghor,13 trabalhara na embaixada do Senegal no Brasil, na década de 1970. Imprevistamente, passamos a folhear alguns livros em sua biblioteca e nos deparamos com um exemplar original da tese intitulada À la decouvert de la Petite Côte au XVII siècle (Sénégal et Gambie), de autoria de Nize Isabel de Moraes. E Madeleine, assim como Boubacar, começou então a recordar a vida de sua amiga.

Ainda que fortuitas, essas “descobertas” acabaram redirecionando nossos olhares. E mais uma vez, fomos “levadas” de volta a Nize. Não sabíamos se existia um acervo específico sobre sua trajetória pessoal e profissional dos dois lados do Atlântico. Inicialmente, juntando alguns fios desvelados por Madeleine e Boubacar, decidimos entrar em contato com funcionários da embaixada brasileira em Dakar, e foi assim que chegamos à brasileira Rosimar Diouf, nascida no Rio de Janeiro e casada com o senegalês Semou Diouf. Vivendo no Senegal desde o fim dos anos 1980, ela não só era amiga da historiadora brasileira, como cuidou de seu corpo adoentado até seus últimos dias de vida, em 2015, ano do falecimento de Nize. Médica de formação, Rosimar também preparou seu velório e enterro católicos, bem como zelou por seus pertences.

Decidiu, porém, depositar uma parte significativa de seus documentos e registros no Ifan, da Universidade Cheikh Anta Diop, instituição em que a historiadora brasileira trabalhou como pesquisadora assistente até se aposentar. Outra parte do acervo ficou, e ainda permanece, na casa de Diouf. Desses dois conjuntos documentais, constam inúmeras fotografias, manuscritos de pesquisas e esboços de artigos, livros e da tese, diários, cartas, escritos esparsos, anotações de viagens de campo, atas das reuniões do Ifan e inúmeros pequenos objetos, recibos e papéis pessoais das mais diversas origens. De outra parte, algumas obras de arte que pertenciam a Nize ficaram na casa de Nina Gonçalves Silva, também brasileira e sua amiga. As duas se conheceram na embaixada do Brasil em Dakar, onde Nina continua trabalhando na parte administrativa.

Não sabemos quais foram os critérios – ou mesmo se houve algum – para essa distribuição entre espaços públicos e privados. Rosimar Diouf não é historiadora nem tem qualquer formação em arquivologia. Suas atitudes falam muito mais do respeito à memória e do afeto que nutria pela amiga. Talvez por isso, na hora de “reorganizar” seu acervo, tenha decidido dividir sua guarda. Além disso, independentemente do que as amigas tenham acordado, Diouf preservou um conjunto expressivo em termos quantitativos, que não temos como ratificar se era, de fato, “tudo” o que Nize reuniu. Seja como for, tanto o que ficou na casa de Rosimar como o que está aberto à pesquisa na instituição pública senegalesa não foram sistematizados segundo concepções arquivísticas ou, minimamente, divididos a partir de quaisquer classificações temáticas ou com base em seus suportes, origens e datas.

Assim, tendo em vista que se trata de um processo investigativo em andamento, o “arquivo pessoal” de Nize de Moraes é abordado aqui a partir de uma mirada mais “etnográfica”, com o deslocamento do foco propriamente dos documentos para os processos de constituição do acervo. Embora situações e questões em torno de sua formação ainda permaneçam incertas, alguns indícios e dados esparsos permitem esboçar uma espécie de “biografia do arquivo”, nos termos postos pelo historiador John Randolph, isto é, de uma história da construção do conjunto documental considerado o “arquivo” (Heymann, 2013; Randolph, 2005, p. 209-231). Nessa perspectiva, os acervos – tal como os objetos – são perscrutados a partir dos sentidos que vão ganhando no decorrer do tempo, em suas trocas e transformações físicas. É por meio desse processo, e não isoladamente, que esses conjuntos documentais adquirem seus sentidos nos dias atuais. Conforme assinala Randolph, “a biografia como uma metáfora heurística deve servir para nos lembrar que arquivos, como objetos, são também submetidos à história” (Randolph, 2005, p. 210).

Arquivo “descoberto”

Entre as pastas e caixas dispostas nos cômodos da casa de Rosimar Diouf, em Dakar, e na sala do arquivo do Ifan, seção de pesquisa da Universidade Cheikh Anta Diop, documentos de tipos e origens diversas se misturam. Nesta última instituição, eles estão acondicionados em pastas sob a denominação “Dossiers Nize Isabel de Moraes”, sem qualquer critério de ordenação ou classificação. Assim, uma carta para o presidente do Senegal Léopold Sédar Senghor ou outra para uma amiga brasileira, receitas de comidas “típicas” do Brasil, resumos de textos, transcrições de fontes coligidas em arquivos de Portugal e da França ou diplomas de graduação e mestrado estão agrupados em um mesmo lugar. Não sabemos se Nize Isabel de Moraes já tinha a intenção de reunir todo esse material com vistas à formação de um acervo. Afinal, era uma historiadora muito afeita à pesquisa e à organização de fontes documentais, especialmente as escritas. Por que então não pensar que tivesse isso em mente quando guardou tantos papéis, cadernos e outras publicações na casa de sua amiga?

Quando já se encontrava em um estado de saúde bem delicado, no início dos anos 2010, Nize mudou-se para a residência de Rosimar, onde tinha um quarto próprio e os cuidados necessários a seu bem-estar. Pouco a pouco, ela foi ficando com mais dificuldades para se locomover, valer-se de sua memória ou mesmo resolver pequenas questões. Foi então que a amiga decidiu ir até a embaixada brasileira em busca de algum auxílio e acabou sendo nomeada como sua representante legal. Em 2011, o casal Diouf até tentou localizar seus parentes em São Paulo – Nize e Semou chegaram a viajar juntos para o Brasil –, mas sem sucesso. Conforme lembrou Semou Diouf,

Ela tinha cortado totalmente as relações com o Brasil e falava para minha esposa que a família que ela tinha aqui éramos nós. [...] a mãe faleceu, e ela era realmente uma filha única. Então ficou aquela coisa... Já que ela está no Senegal, e nós temos uma excelente relação, nós vamos continuar sendo a família dela aqui.14

Sem precisar tempo, lugares ou nomes de pessoas mais próximas a Nize, as amigas brasileiras Rosimar e Nina Gonçalves também contaram que, por essa mesma época, fizeram uma “triagem” de seus pertences e se depararam “com coisas impressionantes, muito bonitas”. Como Nize tinha muitos amigos senegaleses, incluindo o “pessoal que vendia nos mercados”, suas coleções eram constantemente reabastecidas, especialmente com o “artesanato senegalês”, do qual era fã.15

Embora indeterminados, esses relatos permitem observar que, entre tantos cuidados, houve uma preocupação com a seleção do que deveria ser conservado de seu acervo pessoal e profissional. Seguindo muito mais a emoção do que preceitos técnicos ou profissionais, suas amigas, afinal, definiram o que ficaria em suas próprias residências e o que iria para instituições especializadas. E certamente algumas orientações foram deixadas pela própria Nize. Alguns anos antes dessa distribuição, a historiadora já havia feito a doação de sua biblioteca pessoal, composta por cerca de 518 exemplares sobre história, literatura, cultura, entre outras áreas, para a Biblioteca Central da Universidade Cheikh Anta Diop, conforme documento de doação que assinou – o que, por si só, já evidencia a importância que ela conferia a seu acervo.

Também podemos constatar isso a partir de um registro feito com outras intenções: um ofício datilografado, possivelmente um rascunho, preservado entre seus documentos, e endereçado ao secretário de Educação de São Paulo. Quando partiu para o Senegal, na década de 1960, Nize era professora concursada do governo estadual paulista. Dispensada para realizar os estudos de pós-graduação fora do país, ela precisava periodicamente renovar essa licença. Mas, na década de 1970, foi aberto um processo contra ela, sob alegação de “abandono de cargo”. Assim, no registro em questão, fazia uma espécie de histórico da situação, informando que havia retornado ao Brasil em novembro de 1977 para responder à ação. Depois de prestar seu depoimento, seguia esperando o andamento do processo. Contudo, ressaltava que, “nessa situação, ela não tivera condições e tempo de transportar seus pertences, de valor pessoal e científico inestimável, havendo ainda a considerar o fato de que as passagens que lhe foram concedidas expiram no dia 11/2/78” (grifo nosso).

Se os indícios apontados até aqui não permitem comprovar o desejo manifesto de Nize de constituir um arquivo pessoal, ao menos sugerem os significados que o ato de “arquivar-se” teriam para a historiadora paulista. De qualquer maneira, ao “descobrir” um acervo, constatamos que, de fato, nem tudo “se guarda”. Conforme ressalta o historiador Celso Castro em suas análises sobre o acervo de Didinha, existe um processo seletivo, muitas vezes não explicitado, que resulta diretamente de quem define o que permanece ou não, que “coisas vale a pena guardar”. E isso tudo pode não apenas se realizar em diferentes momentos, como também obedecer a uma espécie de “lógica de acumulação”: por que guardar? Onde guardar?

Dessa forma, é preciso evitar um olhar naturalizado em torno dos quais a vida de uma pessoa – ou de uma instituição – se “objetiva”. No conjunto de tudo aquilo que se preservou, sempre há intenções diversas, tanto da parte do próprio indivíduo como daqueles que, posteriormente, cuidam de seus registros e memórias. Nesses processos, revelam-se as intencionalidades de quem produziu o arquivo e, igualmente, de quem o conservou e organizou, mesmo quando se deixou “do jeito que estava”.

Sendo assim, a constituição do acervo de Nize – aparentemente de toda uma vida acadêmica – nos coloca algumas questões. Em primeiro lugar, ficam evidentes as relações (desiguais) entre gênero, memória e arquivos. E isso independentemente do lugar que se observe, seja no Brasil, no Senegal ou em outros espaços nacionais. Como a historiadora Michele Perrot já destacou, há uma persistente invisibilidade feminina nos arquivos, especialmente os de caráter público. Uma das explicações para essa ausência é o privilégio dado a uma narrativa histórica dominante, cujos critérios de seleção ainda passam por certas esferas da vida social vistas como supostamente mais importantes e, sobretudo, masculinas, como a política, a religião, as guerras etc.

Nessa perspectiva, permanece cristalizada a crença de que os homens se ocupam dos grandes feitos e obras e as mulheres ficam relegadas à reprodução da ordem e da família, os cuidados com a casa, os filhos, “em todos os casos tarefas sumamente desvalorizadas socialmente”. Como consequência, o grande “teatro da memória” torna-se o lugar masculino por excelência, com as mulheres como “leves sombras”, em seus papéis de coadjuvantes. Para além das narrativas, esse diagnóstico também se expressa na escassez – e, no limite, na ausência – de fontes históricas sobre as mulheres. O que não quer dizer, é certo, que esses registros inexistam ou sejam sempre numericamente inferiores.

De qualquer maneira, os arquivos – constituídos por seleções, ordenamentos e inscrições pessoais e institucionais que resultam também de escolhas – estão longe de serem simples “receptáculos apáticos”. Pelo contrário, são “produtos e produtores de hierarquizações sociais”. De um lado, essas operações acabam determinando o que deve ser preservado e, portanto, celebrado e monumentalizado. Por outra parte, elas encarnam um longo processo de exclusões, quase sempre silenciosas, imperceptíveis e naturalizadas. Geralmente as pesquisas realizadas partem do que eles “possuem”, da documentação ali reunida. Mas quem questiona o que não está em seus repositórios? Quem não é representado? Por que seus registros não foram, e não são, conservados?

Sem exatamente responder todas essas questões, as comparações com os processos de constituição de “arquivos pessoais” de outros intelectuais, mesmo com trajetórias mais “distantes” em relação à de Nize Isabel, podem iluminar algumas dessas discussões – e ainda lançar outras novas. Proponho então aqui uma aproximação com as análises do historiador Miguel Palmeira em torno do acervo do também historiador de origem estadunidense Moses Finley (1912-1986), depositado na seção de manuscritos da biblioteca da Universidade de Cambridge, no Reino Unido (Palmeira, 2013).16 Reconhecido por sua inovação e destaque como um dos mais importantes especialistas no campo da história econômica antiga, Finley foi convidado para lecionar em Cambridge em 1954, onde permaneceu até sua aposentadoria em 1977.

Por volta de 1990, quatro anos após sua morte, os denominados “Finley Papers” começaram a se configurar no formato aproximado ao que se encontra hoje. Convidado por Dick Whittaker, amigo e inventariante de seu espólio, o professor Ricardo de Donato, da Universidade de Pisa, ficou à frente da organização e classificação do material. Mas parte dessa divisão já havia sido estabelecida pelo próprio historiador, que indicou quais documentos seriam preservados ou não, ainda que não se saiba quais foram exatamente os critérios. Segundo Miguel Palmeira, “o que se pode imaginar é que Finley tenha selecionado seus documentos com vistas à reunião futura deles em um arquivo”. Com a posição institucional e simbólica que ocupava no campo da história antiga, era bem provável que também “ocorresse algo similar ao que sucedera aos papéis de colegas acadêmicos célebres, devidamente arquivados” (Palmeira, 2013, p. 95).

Conservado na instituição em que lecionou por mais de três décadas, o “arquivo Finley” reúne vinte caixas numeradas, contendo títulos próprios em cada uma, referentes a nomes de livros, temas e projetos de pesquisa, editoras. Nesse conjunto, encontram-se correspondências ativa e passiva de Finley com colegas, alunos e editores; anotações manuscritas para preparação de aulas e textos; recortes de jornal em que o historiador aparecia como autor ou tema de reportagem, e ainda notícias sobre temas variados, como o sistema educacional britânico, além de artigos de outros pesquisadores.

Trata-se de um arquivo, eminentemente, “profissional”, quase todo relacionado às suas atividades como “trabalhador intelectual”. Não há registros sobre suas relações familiares ou de amizade, por exemplo. Tudo, de alguma forma, está ligado à sua atuação como professor e pesquisador, o que era, de fato, sua intenção desde o início. Daí, conforme assinala Palmeira, a dificuldade para qualificá-lo como “pessoal” em sentido mais estrito. De qualquer maneira, a leitura do acervo, nos termos propostos pelo historiador brasileiro, permite observar tanto as “oscilações inscritas na trajetória acadêmica de Finley” como os “campos de possibilidades” com que se deparou ao longo de sua carreira.

Ao realizar uma “história da história” a partir da produção acadêmica de Finley, mais especificamente de seu modelo explicativo sobre a sociedade e a economia da Antiguidade, Miguel Palmeira assinala que essa análise não deveria prescindir de utilizar como fonte a “obra” publicada pelo historiador. Todavia, ir além dela – ou seja, buscar dados pertinentes que não estivessem, necessariamente, nos livros e artigos já em circulação – lhe parecia um caminho recomendável. Foi assim que os “Finley Papers” se revelaram como material estratégico para tal investigação. Perscrutando esse “além obra”, Palmeira pôde tensionar uma história profissional dotada de suposta coerência, onde o “êxito acadêmico” se realizava “naturalmente como decorrência da excelência intelectual” (Palmeira, 2013, p. 97).

Nesse percurso, os detalhes inscritos numa correspondência privada entre colegas ou os rascunhos de um artigo em preparação, por exemplo, poderiam ser lidos, à primeira vista, como meros “adornos empíricos” ou “detalhes anedóticos”. Entretanto, o interesse de uma consulta aos “Finley Papers” – e, de resto, aos “arquivos pessoais” de outros historiadores e intelectuais – não está na mimetização das “imagens que os acadêmicos fabricaram para si”, mas, justamente, em sua relativização, na descontrução de pré-noções sobre o autor e sua obra. Dito de outro modo, coligir e examinar essas informações arquivísticas trazem a oportunidade de desvelar outras condições de representação da vida intelectual. É um terreno fértil e privilegiado para a “observação da produção de conhecimento como processo”, em suas “condições efetivas (Palmeira, 2013, p. 94-95).

Há, contudo, que se precaver para não cair no que Angela de Castro Gomes chama de “grande feitiço do arquivo privado” (Gomes, 2004, p. 10). Ao guardar uma documentação pessoal, armazenada e produzida com a marca da personalidade e nem sempre destinada ao espaço público, acreditamos estar diante de seu produtor de uma forma “verdadeira”. A espontaneidade e a intimidade seriam como “garantias” de que ele estaria se mostrando “de fato”. Isso não deve, entretanto, nos fazer esquecer que esse acervo também nasce da desordem e supõe mãos que manipulam e classificam os documentos, olhos que vigiam o escrito ou mesmo cheiros que despertam memórias (Farge, 2009, p. 35).

Com mais esse “alerta”, cabe agora avaliar em que medida algumas questões colocadas por Palmeira acerca da trajetória e do acervo do historiador Moses Finley, um homem branco que atuou profissionalmente no mundo anglo-saxão, podem iluminar, mesmo na contracorrente, os arquivos de Nize Isabel de Moraes, uma mulher negra no universo acadêmico senegalês. Sem informações mais detalhadas de parte a parte, sabemos que os dois intelectuais, cada um à sua maneira, tinham intenção de “arquivar” seus materiais de trabalho. O que também pode ser entendido como algo, em última instância, próprio aos seus “fazeres” enquanto profissionais da história. Mas há que se reavaliar esses propósitos quando uma atividade quase corriqueira do ofício tem em vista a constituição de um legado intelectual.

De seu lado, Finley, embora econômico em declarações mais diretas, demonstrou seus “reais” objetivos através de atos concretos. A organização e a seleção apenas do material dito “profissional” são bem sintomáticas de seus planos. Nize Isabel, por sua vez, também não escondia, em atitudes e registros nem sempre intencionais, o valor “científico inestimável” de seus pertences. Entretanto, uma primeira leitura de suas cartas e anotações periódicas demonstra, repetidamente, as dificuldades para se estabelecer na academia senegalesa e como isso acabava minando seus planos e certezas profissionais. Na verdade, essa espécie de “descrença” em si mesma pareceu acompanhá-la durante toda a sua trajetória. E talvez tenha, de alguma forma, influenciado a organização mais criteriosa de seu acervo. Mas essas são hipóteses que ainda merecem uma análise mais aprofundada. Para meus propósitos aqui, importa reter que as interconexões de gênero, raça, classe e nacionalidade eram – e continuam sendo – determinantes tanto na formação como na visibilidade de “arquivos pessoais”, seja no Brasil, no Reino Unido ou no Senegal.

De qualquer maneira, à diferença dos “Finley Papers”, o arquivo de Nize não prescindiu de uma “produção de si”. Ao lado de fichamentos, esboços de artigos, versões revisadas de seus manuscritos, relatórios e correspondências com professores e colegas de diferentes universidades e países, existem também cartas mais íntimas para amigos e familiares, relatos de sua vida afetiva, de seus problemas de saúde, de suas queixas ao novo país de morada. E tal como apontado por Miguel Palmeira, muitas dessas anotações, que podiam se prestar meramente a ornamentos ou mexericos em torno da trajetória de uma intelectual brasileira na África, mostram-se fundamentais para compreender o processo palpável de suas investigações e publicações. Conforme veremos mais adiante, o racismo e o machismo enfrentados cotidianamente por Nize, uma historiadora negra fora de seu país de origem, influíram, diretamente, nas suas escolhas e caminhos de pesquisa e escrita.

É certo que não tenho como assegurar se, de fato, era vontade de Nize abrir esses registros privados à consulta de um público mais amplo. Ao contrário de Finley, que desde o início limitou seu acervo aos “papéis de trabalho”. Ainda assim, em ambos os casos, estamos diante de arquivos que começaram a se estabelecer a partir da iniciativa de pessoas muito próximas a eles. O historiador estadunidense contou com a estrutura da biblioteca de Cambrigde, uma das universidades mais prestigiosas do mundo, e ainda com amigos-organizadores que eram também professores e acadêmicos. Sem a mesma conformação da instituição britânica, o Institut Fondamental d’Afrique Noir, criado pelo governo colonial francês em 1936, desde a década de 1960 está vinculado à Universidade de Dakar (agora Cheikh Anta Diop) e é composto por seis departamentos, museus e acervos. Numa sala do prédio situado aos fundos do Museu de Dakar-Ifan, que abriga uma biblioteca com livros, revistas e documentos especialmente sobre história e arte africanas, grandes caixas de papelão contendo as pastas com o material de Nize Isabel ficam dispostas embaixo de mesas e estantes. Quando ali estive para pesquisar, nos anos de 2019 e 2020, a documentação permanecia dessa forma, sem qualquer ordenação arquivística.

Com a saúde debilitada, Nize certamente não teve condições de proceder a uma apuração mais refletida em torno de seu acervo, ficando a tarefa relegada às suas amigas, que não são especialistas na área. Como já assinalei, no momento da separação da documentação e dos objetos, critérios nem sempre explicitados devem ter sido levados em conta para determinar o que ficava em suas residências e o que iria para o Ifan. Acontece, porém, que – até onde pude acessar a documentação nesses locais – não há uma linha divisória tão demarcada assim, distinguindo registros mais “confidenciais” de outros sem restrições. De um jeito ou de outro, esses (não) movimentos só reafirmam a historicidade dos conjuntos documentais. E mais ainda: como outros agentes, mesmo “externos” a eles, também são fundamentais em sua transformação em “arquivos”.17

Uma historiadora “senega-brasileira”

Tudo que Nize Isabel de Moraes reuniu, materialmente, na maior parte de sua vida, permaneceu no continente africano nas mãos de suas amigas e na universidade em que trabalhou. Quando nos voltamos para sua trajetória, não nos deparamos com uma “ausência de fontes”, situação tão comum para as mulheres nos arquivos. Embora não esteja tecnicamente ordenado e classificado, seu acervo está disponível aos pesquisadores. Ainda assim, cabe avaliar, afinal, o lugar que ela passou a ocupar no grande “teatro da memória” do Senegal, ou simplesmente de Dakar.

Na Universidade Cheikh Anta Diop, especialmente no Ifan, onde esteve integrada, com muitas oscilações, por mais de trinta anos, Nize era vista sob múltiplas identidades: historiadora, mulher, negra, brasileira, enfim, filha de uma terra do outro lado do Atlântico. Ali, construiu relações de trabalho – em alguns casos, de sincera amizade – com pesquisadores senegaleses, franceses e norte-americanos que também se dedicavam aos estudos sobre a Senegâmbia. Mas o fato de ser uma estrangeira em terras africanas – tanto em termos de origens, como de gênero – talvez explique algumas de suas escolhas. Mesmo que muitos historiadores e outros estudiosos à época estivessem privilegiando as fontes e tradições orais, ela optou por construir sua obra a partir de registros escritos, dispersos pelos antigos países colonizadores europeus. Sem ser uma “filha da terra” ou tampouco dominar as diferentes línguas faladas no espaço senegambiano, como optar por uma outra metodologia?

Isso, decerto, não impediu que, ao longo dos anos, sua obra fosse ganhando destaque na historiografia sobre a Senegâmbia. Ao realizarem, em 1988, um inventário dos trabalhos sobre a região produzidos no Senegal e em outras regiões, especialmente na França e no mundo anglo-saxão, os pesquisadores Charles Becker e Mamadou Diouf chegaram a um total de 706, entre dissertações, trabalhos de pós-graduação, teses de doutorado, entre outros. Avaliando esse conjunto, apontaram alguns padrões e estimativas. Dividindo-os de acordo com o “tipo e o país principal de estudo (reino, país ou etnia)”, localizaram apenas três obras sobre a “Petite Côte”, espaço privilegiado por Nize Moares em seus trabalhos acadêmicos. E as três eram justamente de sua autoria. Separando os autores conforme sua origem, encontraram 469 (60,8%) africanos e 277 (39,2%) não africanos.

Também constataram uma preponderância de abordagens sobre os séculos XIX e XX, o que atestava um uso ainda preferencial pelas fontes escritas europeias. A baixa escolha por períodos mais antigos, tal como fizera Nize, refletia as opções metodológicas e o interesse ainda limitado dos historiadores pelos séculos que antecederam a conquista colonial. Embora pouco citado nos índices e memórias acadêmicas dos dois lados do Atlântico, o trabalho de Nize Izabel de Moraes continuou, por muitas décadas, como referência fundamental para quem busca investigar mais a fundo as histórias da Senegâmbia (Becker; Diouf, 1988).

Ainda assim, quando comparamos a recepção e o reconhecimento de sua obra no Senegal com a do belga Guy Thilmans, seu principal parceiro de pesquisas no país africano, as desigualdades de gênero, raça e nacionalidade voltam a ficar evidentes. Thilmans chegou ao Senegal em 1965 para estudar antropologia e acabou permanecendo no país e construindo toda sua carreira acadêmica no Ifan, inicialmente, como trabalhador temporário (1965-1966) e, daí até 1987, como “trabalhador belga de desenvolvimento”. Quando atingiu o limite de idade, a universidade fez um “contrato local”, continuamente renovado, já que não queriam se “separar de um pesquisador tão ativo”. No Senegal, Thilmans se destacou não apenas como antropólogo, mas também como arqueólogo especializado em proto-história, museógrafo e historiador.

Como tinha domínio de diversos idiomas, incluindo o latim e o holandês antigo, acessou muitos documentos desconhecidos e raros, que renovaram a história da Senegâmbia nos séculos XVI e XVII, muitas vezes em conjunto com Nize Isabel, “sua colaboradora habitual”. Embora figure como diretor da publicação e tradutor de alguns documentos, a obra À la découverte de la Petite Côte au XVIIe siécle (Sénégal et Gambie), editada em quatros tomos, num total de mais de mil páginas, era resultado das pesquisas realizadas por Nize para sua tese de terceiro ciclo (doutorado). No artigo em homenagem a Thilmans publicado, em 2002, na revista Outre-mers, Cyr Descamps, pesquisador francês associado ao Ifan, parece indicar que esses volumes foram apenas dirigidos por Thilmans. Ainda que sua participação também tenha sido fundamental, a produção do trabalho foi feita pela historiadora brasileira (Descamps, 2002, p. 685).

Nize Isabel de Moraes não teve as mesmas facilidades e celebrações recebidas pelo intelectual belga. Entre suas cartas e rascunhos, há narrativas sobre as muitas viagens de pesquisa realizadas, mas também persistentes solicitações de financiamento e postos de trabalho endereçadas a docentes e pesquisadores do Senegal, da França, de Portugal, e até mesmo a diretores de instituições e chefes de Estado, como o presidente Senghor. Antes de analisar algumas dessas “escritas de si”, é preciso ressaltar que, apesar de muito “sedutoras”, as correspondências jamais são totalmente transparentes como se costuma acreditar. Lugar da sociabilidade, elas tanto seguem determinadas convenções como aparentam uma descontração e uma espontaneidade que são apenas relativas (Gomes, 1998, p. 124). Como enfatiza o historiador Christophe Prochasson,

A impressão de pegar desprevenido o autor de uma carta que se destinava unicamente ao seu correspondente, o sentimento de violar uma intimidade, garantia de autenticidade, quando não de verdade, são às vezes bastante enganadoras. Existem correspondências que traem uma autoconsciência que não engana ninguém. Existem cartas ou documentos privados cujo autor mal disfarça o desejo, talvez inconsciente, de torná-los, o quanto antes, documentos públicos. (Prochasson, 1998, p. 11-12)

Sendo assim, ao selecionar alguns desses registros, constato que, de uma parte, as cartas guardadas por Nize – em geral, no formato de rascunhos – nem sempre identificavam o destinatário ou a datação completa e ainda mesclavam frases em português e francês. Essas indeterminações talvez indiquem que elas não tinham um interlocutor certo. Por outro lado, as descrições de viagens ganhavam, em alguns casos, diários e cadernos específicos ou eram simplesmente feitas em blocos de notas ou folhas avulsas. Mesmo irregulares, podiam fazer as vezes de cadernos de campo e, em seu cotejamento com os resultados finais de alguns trabalhos, nos permitem um entendimento mais amplo da trajetória e da obra da historiadora brasileira.

Nesse sentido, destaco aqui, em primeiro lugar, uma correspondência de 1992 – que não aponta a quem se endereçava –, em que Nize relata situações difíceis vividas em 1969, numa missão de pesquisa de seis meses em Portugal. Como uma espécie de denúncia, ou quem sabe uma justificativa a posteriori, contou que, nessa sua primeira viagem ao país europeu, a ideia era coligir documentos portugueses que descreviam a “Petite Côte”, partindo sobretudo das descrições sobre a região e as práticas comerciais feitas, no século XVII, pelo capitão português Francisco Lemos, que viveu na costa por mais de vinte anos. Entretanto, os resultados não atingiram o esperado. Conforme registrou, “na altura, não pude ter acesso a vários documentos históricos, relativamente ao século XVII, pelas dificuldades colocadas pelo comandante [e historiador] Avelino Teixeira da Mota”.

Depois dessa tentativa frustrada, ela retornou à capital portuguesa em 1972 e, novamente, saiu de “mãos quase vazias”. Para finalizar essa investigação, “apenas” conseguiu “oito documentos (alguns manuscritos), relativos ao referido período”. Como apontou na carta de 1992, o comandante Teixeira da Mota indispôs-se com ela, pois utilizara um documento da sua área de investigação, publicado anteriormente por Damião Peres, acerca do capitão Lemos Coelho. Ela argumentava que, por não ter acessado os arquivos de Portugal, sua tese ficou empobrecida, somente com oito documentos portugueses (Dakar, 1992).

Nesse mesmo período, Nize realizou outra viagem de pesquisa, desta feita brevemente relatada em seu “diário de Paris”. No mês de julho de 1972, finalmente conseguira um estágio no Museu de Etnografia, em Bâle, na Suíça, onde trabalhou por dois meses com uma professora que era a principal referência nas pesquisas sobre tecidos africanos. Nos anos 1970, conforme suas descrições, a pequena cidade suíça abrigava muitos “estrangeiros” (a maioria, europeus) e o que mais se ouvia pelas ruas era um “dialeto derivado do alemão”. Todos os “tipos humanos” se apresentavam com “olhos claros, com olhos azuis, verdes, negros, castanhos”, e havia até o tipo “moreno com cabelos negros e ondulados”. Embora tenha sido bem recebida pela equipe do museu e por alguns amigos, o contato com as pessoas lhe provocava “dores nos nervos”, expressão que costumava empregar em situações tensas. Nessa relação com o “povo”, as ofensas raciais eram frequentes:

Escutei certas reflexões não muito interessantes, por exemplo, existe ainda a concepção que o negro cheira mal por causa da cor da pele escura. Eles têm uma reação engraçada: põem as mãos na narina quando eu passo. Que engraçado, não esperava encontrar este tipo de gente na Suíça, aonde dizem ser um dos países mais civilizados do mundo: que palhaçada do povo, isto é, a massa será sempre a massa. Quando passo todos me olham com admiração e alguns saem achando graça da minha maneira de falar, sorrir etc. Suporto tudo, menos os tampas narinas... enfim veremos quanto tempo isso vai durar. (Diário, 5 de julho de 1972)18

Como temos visto, uma mulher estrangeira e negra parecia “fora de lugar” nos espaços europeus, e mesmo em alguns africanos. Ainda que Nize caracterizasse aquelas atitudes explicitamente racistas como “palhaçada do povo”, elas extrapolavam os ambientes ditos “populares”. Talvez fossem, inclusive, um dos motivos para as resistências com que se deparou em certos ambientes acadêmicos. E mesmo que não se mostrasse tão ativa nos debates antirracistas, o assunto, periodicamente, aparecia em suas anotações, em especial quando se referiam ao Brasil. Nos registros sobre seus primeiros tempos em Dakar, por exemplo, ela narrou o encontro com um pintor brasileiro (não nomeado) que também morava na capital senegalesa. Nas conversas entabuladas entre os dois conterrâneos em 1968, ele se mostrava “revoltado” com as desigualdades raciais ainda tão presentes em seu país de origem, mas Nize concordava apenas em parte com suas análises, conforme lemos a seguir:

Entrei em contato com um pintor brasileiro que deixou o Brasil há 23 anos passados. Resultado: todos os dias descrições sobre as questões: racismo, sociedade, situação de miséria e o que mais me irrita, o “negro”. Para ele não houve progresso algum do negro brasileiro. É sempre aquele que ele conheceu há 23 anos atrás. Que lástima, e o pior, ele [...] faz uma propaganda completamente desfavorável de nosso país comparando o negro brasileiro com o senegalês. E o pior é que aqui, e por toda a África francófona, só chegam as péssimas notícias do Brasil. O que é bom fica no território nacional e mais, o que é ruim chega rapidamente. Pobre Brasil, deitado eternamente em berços esplêndidos. (Diário, 30 de outubro de 1968).

Certamente, o incômodo com o que considerava uma “propaganda completamente desfavorável” foi se desvanecendo à medida que o racismo ficava ainda mais evidente em suas próprias experiências. Quatro anos depois – e já tendo passado pelo violento episódio de “tampas narinas” na Suíça – ela retomava o tema nos esboços de uma carta endereçada a uma conhecida de nome Diva. Escrita nas páginas finais de um diário de início dos anos 1970, Nize lhe solicitava informações sobre o racismo vivenciado pelos afro-americanos. Lá pelo meio do texto, ela lançava suas inquietações: “Como passou a sua viagem a USA? Almejou o que queria? E a Negrada está melhorando cada vez mais ou...??? Quais as novidades? Diva, e esses crimes atrozes (matar para roubar?). Soube que o racismo cresce dia a dia em São Paulo, Rio de Janeiro, no Sul...”19 (Diário, sem data).

Nesse mesmo período, ela também dizia enfrentar grandes dificuldades, por conta do pouco que recebia das instituições brasileiras e senegalesas. Em suas palavras: “Do Ifan não consegui nada, apenas uma carta de apresentação do diretor do referido instituto dirigida ao Museu do Homem, a fim de que eu pudesse vir a Paris. Tudo foi dado ou feito de uma maneira muito interessante. Muitos sorrisos, mas nem um tostão de ajuda” (Diário, 1972).

Finalmente, Nize Isabel mostrava-se feliz por realizar o sonho de cursar a pós-graduação em uma renomada universidade francesa, mas – seguindo um roteiro habitual (de sua vida? de suas narrativas?) – o momento vinha acompanhado de mais preocupações, como se a distância de Dakar lhe desse uma visão mais nítida do que vivia na capital senegalesa. Conforme anotou no diário, sentia, naquele momento, um certo “cansaço da sua pessoa no Ifan”, não só da parte do “Dr. X” (um dos códigos que usava para se referir a Thilmans), como também dos próprios dirigentes do instituto. Para não seguir nessas constantes – e desconfortáveis – investidas, pensava em deixar as autoridades locais em paz, parar “de pedir favores a este pessoal todo”, pois percebia que já se tornava uma pessoa inoportuna. Um cansaço que certamente estava ligado a toda energia dispendida em seu processo de formação profissional, mas também, talvez, como se notasse que as trocas de favores, principalmente com o presidente Senghor, lhe comprometessem como historiadora e pesquisadora, retirando-lhe autonomia para posicionar-se politicamente.

Parecia-lhe muito difícil ser reconhecida como uma intelectual. Mas essa não era uma situação exclusiva a Nize Isabel de Moraes. Se retomarmos trajetórias de outras brasileiras negras, quase suas contemporâneas, a exemplo da socióloga e psicanalista Virgínia Bicudo (1910-2003) e da também psicanalista Neusa Santos Souza (1948-2008), observaremos como racismo, sofrimento psíquico e vida profissional imbricavam-se, tornando-se mesmo determinantes para a (in)visibilidade de suas vidas e obras (cf. Souza, 2021; Gomes, 2013; Leal, 2010). Nos dois países em que Nize viveu por mais tempo, os investimentos em educação sempre foram diminutos, especialmente para as mulheres. No Senegal, o belga Guy Thilmans, ao falecer em dezembro de 2001, recebeu inúmeras homenagens da comunidade acadêmica. O que não aconteceu com Nize Isabel, sua parceira de pesquisa e publicações.

Ainda assim, acompanhando bell hooks, concordamos que, mesmo em sociedades difíceis para as intelectuais negras legitimarem seus trabalhos, ser uma historiadora, exímia pesquisadora, também se apresentava como uma forma de ativismo intelectual.20 Nesse sentido, a historiadora “senega-brasileira”, assim autoidentificada em uma carta que enviou à madrinha Glória, não só transformou o Senegal em sua “nova pátria”, como se tornou narradora e também autora da história da Senegâmbia, subvertendo o lugar da população negra como mero objeto de pesquisa no universo acadêmico. E a leitura do seu arquivo, que segue em contínuo processo de descoberta, nos permite apreender ainda mais os movimentos inscritos em sua trajetória e as possibilidades com as quais ela – e, de formas similares, outras intelectuais negras – se defrontou no decorrer de seus caminhos.

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Recebido em 24/5/2023

Aprovado em 30/6/2023


Notas

1 Toda a documentação de Nize Isabel de Moraes, tanto aquela conservada no Institut Fondamental d’Afrique Noir (Ifan) como na residência de Rosimar Diouf em Dakar, não está catalogada, apenas acondicionada em caixas e pastas, sem qualquer referência arquivística. Sendo assim, ao longo deste artigo, irei identificar apenas a data (quando for possível) e a natureza dos documentos.

2 Conforme destacou a própria Nize, Dakar também viveu seu “maio de 1968”. Nesse ano, a Universidade de Dakar havia se tornado o lócus de reivindicações estudantis. E elas foram reprimidas pelo presidente Léopold Senghor, que pela primeira vez em seu governo abusou desse aparato repressivo, e ainda determinou o fechamento da universidade por um ano. Em março de 1969, nova crise atingiria a instituição, com a adesão de todos os estudantes, em reação à expulsão de 25 colegas que teriam sido acusados de incitar o conflito. Conforme assinala Luiza Nascimento dos Reis, a partir da correspondência diplomática, evidencia-se como o governo brasileiro acompanhava com atenção esse momento de instabilidade no Senegal (Reis, 2021a, p. 86-88).

3 Na introdução do seu livro À la découverte de la Petite Côte au XVIIe siècle (Sénégal et Gambie), Nize Isabel destaca que a costa do Senegal desenha um amplo ângulo aberto. Do lado de um litoral, às vezes chamado de “Grande Costa”, estende-se a foz do rio Senegal até a península de Cabo Verde. Já uma segunda porção, a “Petite Côte”, ia da península até a embocadura da Gâmbia. Embora nascessem num mesmo rio e chegassem a se unir na aglomeração que mais tarde se tornaria Dakar, essas duas porções tinham muito mais diferenças do que semelhanças. A Grande Costa, área linear, sem estradas ou pontos de água, sujeita às ondas da barra, fazia parte de dois reinos: Cayor e Oualo. Já a Petite Côte possuía com a baía de Hann um “excelente local de ancoragem”, e quatro estados, Cayor, Baol, Sine e Saloum, terminavam ali (Moraes, 1998).

4 Sobre o CEAO e os pesquisadores brasileiros que se estabeleceram no continente africano, ver os trabalhos de Luiza Nascimento dos Reis (Reis, 2021a; 2021b; 2019; 2017).

5 Especialmente a partir de meados da década de 1960, é possível assinalar um número crescente de brasileiros desenvolvendo estudos acadêmicos sobre a África com pesquisas diretamente no continente, incluindo homens e mulheres negros, a exemplo da historiadora negra Beatriz Nascimento e da artista e militante negra Thereza Santos. Cf. Bernardino-Costa (2018), Ratts (2007) e Rios (2014).

6 Ao mapear o perfil e a circulação dos discentes do curso de história da USP entre os anos de 1934 e 1968, Roiz assinalou que muitos acabaram se tornando professores do próprio curso, mas havia evidentes relações (desiguais) entre gênero e educação. Eram, sobretudo, os homens que, de alunos, tornavam-se professores da instituição ou mesmo de outras universidades. Como consequência, a escrita da história acadêmica realizava-se em “caracteres predominantes masculinos”. Cf. Roiz (2012, p. 76-77) e Silva (2015).

7 Foi na década de 1950, quando realizava estudos e formação em Portugal, que Fernando Mourão começou a se interessar pela África. Ligado aos movimentos de libertação dos países africanos de colonização portuguesa, acabou perseguido pelo governo Salazar e só conseguiu retornar ao Brasil com o auxílio de Juscelino Kubitschek. Da década de 1970 em diante, ele colaborou na gestão diplomática do Itamaraty, viajando com delegações governamentais brasileiras para a África. Cf. Schilickman (2015, p. 39-40) e Munanga (2012, p. 11-30).

8 Este artigo apresenta resultados de pesquisas realizadas no Senegal com financiamento da União Europeia, por meio do Programa de Intercâmbio em Pesquisa e Inovação Marie Skłodowska-Curie (MCSA-Rise), onde atuei como investigadora integrada ao projeto “Slafnet – Escravatura em África: um diálogo entre Europa e África”, vinculada ao Centro de História da Universidade de Lisboa e à Universidade Cheikh Anta Diop, em Dakar, nos anos de 2019 e 2020.

9 Nos primeiros anos da década de 1960, os governos do Brasil e do Senegal assinaram parcerias que envolviam a concessão de bolsas para estudantes se estabelecerem em universidades dos dois lados do continente. Nesse período, 15 estudantes africanos viajaram para o Brasil, entre os quais a senegalesa Collete Diallo, que passou dois anos no país. Nas páginas finais do diário de sua temporada na França, Nize registra uma série de contatos de intelectuais e professores de diversas nacionalidades, como os brasileiros Luiz Felipe Alencastro e Celso Furtado, e a senegalesa Collette Diallo, cujo nome vem secundado pela informação “Embaixada do Brasil”. Cf. Reis (2021a; 2021b).

10 Para acompanhar o processo de seleção – e também os conflitos – em torno da delegação brasileira para o Fesman, ver Reis (2021b).

11 Agradeço ao diplomata brasileiro Marco Sparano por ter me colocado em contato com Nina Gonçalves, que, por sua vez, me introduziu a Rosimar Diouf e parte do acervo de Nize. Colega de graduação na UFF nos anos 1990, Marco trabalhou na embaixada do Brasil no Senegal entre 2011 e 2014.

12 Embora em períodos nem sempre coincidentes, ambas realizávamos estágios de pós-doutorado com pesquisas sobre mulheres e relações de gênero em diferentes espaços do Senegal. Depois de tantos “encontros” em sequência com a vida e a obra de Nize Isabel de Moraes, decidimos iniciar uma pesquisa conjunta. Os primeiros resultados dessas investigações aparecem em Farias; Lopes (2020; 2022).

13 Simon Senghor era sobrinho do presidente Léopold Senghor e foi embaixador da República do Senegal no Brasil a partir de 1977, quando substituiu seu primo Henri Pierre Senghor, também embaixador no Brasil entre 1963-1977. Conferir: Scholl (2021).

14 Entrevista realizada em Dakar, em março de 2020.

15 Entrevista realizada, conjuntamente, com Rosimar Diouf e Nina Gonçalves, em Dakar, março de 2020. Como assinalou Nina, lembrando da personalidade da amiga, “você ia no mercado e todo mundo conhecia a Isabel, você ia no bar e todo mundo conhecia Isabel, todo lugar que você fosse, todo mundo conhecia Isabel, mas todo mundo sabia chegar com calma, né?”.

16 Livro fundamental em torno de diferentes arquivos pessoais, destaco aqui, para a comparação proposta neste artigo, um outro capítulo, escrito por Felipe Brandi, com o título “Arquivos privados e história dos historiadores: sobrevoo no acervo pessoal de Georges Duby” (Brandi, 2013, p. 107-138). Conforme destacam as organizadoras na apresentação da obra, a volumosa correspondência em papel carbono que Duby foi guardando, cuidadosamente, a partir do final dos anos 1970, é o ponto de partida para os questionamentos de Brandi sobre a “consciência do titular quanto ao destino longevo de seu legado intelectual”. E conforme Brandi, essa consciência teria incentivado tanto “a pulsão autobiográfica do medievalista quanto o investimento na construção de um arquivo pessoal capaz de representá-lo como intelectual público” (p. 10).

17 Sobre esse tipo de situação e os arquivos Finley, Miguel Palmeira assinala que, se Ricardo Di Donato não tivesse se ocupado do acervo tão pouco depois de sua morte, provavelmente o conteúdo aberto ao público seria bem diferente (Palmeira, 2013, p. 97).

18 Não por acaso, o escritor afro-americano James Baldwin também descreveu, no artigo intitulado “Um estranho na aldeia”, o estranhamento e o racismo por que passou na comuna de Leukerbad, na Suíça, na década de 1950. O artigo foi publicado pela primeira vez na Harper’s Magazine em 1953, e depois na coletânea Notas de um filho nativo, em 1955. Na edição brasileira do livro, publicada em 2020, o escritor estadunidense-nigeriano Teju Cole, no posfácio de título “Um corpo negro”, volta a Leukerbad e também registra suas impressões e as reações a seu “corpo negro” naquela região suíça. Cf. Baldwin (2020).

19 Comparando esse trecho com outros de seus registros, me parece que a expressão “negrada” não tenha uma conotação negativa, sendo acionada por Nize para se referir, coletivamente, aos negros que viviam nas Américas.

20 Ao pensar nas expressões mais visíveis de ativismo concreto, “como fazer piquetes nas ruas ou viajar para um país do Terceiro Mundo e outros atos de contestação e resistência”, concordo com hooks que a luta revolucionária está no mesmo patamar que o trabalho intelectual (hooks, 1995, p. 469).


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