Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 2, maio/ago. 2023

Marc Ferrez: a fotografia como experiência | Dossiê temático

Figurações do passado em ação

Acervamentos fotográficos na família Ferrez

Figurations of the past in action: photographic archives in the Ferrez family / Figuraciones del pasado en acción: archivos fotográficos de la familia Ferrez

Iara Lis Franco Schiavinatto

Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora associada da Unicamp, Brasil.

iaralis@unicamp.br

Resumo

Este artigo discute práticas de acervamento fotográfico e de colecionismo na e da obra de Marc Ferrez, abrangendo desde modos pelos quais ele montou algumas séries fotográficas na Expedição Hartt até a análise de práticas culturais na coleção da família Ferrez.

Palavras-chave: fotografia; arquivo; cultura visual; temporalidades; figurações do passado.

Abstract

This article discusses photographic collecting practices in and of Marc Ferrez’s work, ranging from how he assembled some photographic series in the Hartt Expedition to the analysis of some cultural practices in the Ferrez family collection.

Keywords: photography; archive; visual culture; temporalities; figurations of the past.

Resumen

Este artículo discute prácticas fotográficas y de coleccionismo en y de la obra de Marc Ferrez, que van desde las formas en que reunió algunas series fotográficas realizadas en la Expedición Hartt hasta el análisis de algunas prácticas culturales en la colección de la familia Ferrez.

Palabras clave: fotografia; archivo; cultura visual; temporalidades; representaciones del pasado.

I

Convém situar o leitor quanto à natureza deste texto. Ele é sumamente baseado na aula ministrada nas provas de titularidade junto ao Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Unicamp, realizadas em 2 de fevereiro de 2023. Nele, mantive a estrutura geral da aula, apesar de alguns cortes. Mantive ainda algumas marcas discursivas de sua condição primeira de enunciação: sinais de oralidade, o uso da adjetivação e a descrição abreviada de alguns aspectos em favor de um argumento autoral maior exigido por essa aula – entendida como um laboratório de criação, transmissão e troca de conhecimentos em cultura visual, estudos de mídias e história.

II

Na esteira dos estudos de Michel Foucault, Jacques Derrida e do pós-estruturalismo dos anos 1980, e debruçada nas pesquisas de Elizabeth Edwards, a historiadora da arte Costanza Caraffa (2011, p. 38) sintetizou uma mudança epistêmica sobre o arquivo fotográfico: “Archives are not just temples of memory. They are complex, dynamic institutions in which not just the individual document, but the context in which it was created and transmitted is preserved. In photo archives, we find not just information but knowledge”.

A autora interroga a montagem, a ordenação do arquivo fotográfico e suas intenções, seus usos e suas formas de publicização, suas mediações, suas intermedialidades e modos de transmissão, considerando a agência das imagens e seus processos de transformação em várias direções, ciente de que um princípio da longevidade do arquivo consiste em documentar a si mesmo sucessivamente, gerando novas linhagens de fontes e práticas de acervamento. Essa noção potente de arquivo permite indagar micro-histórias entre fotografias e modos de ver, considerando que as imagens são hoje experienciadas e tratadas como elementos centrais da vida social.

Destaco dois elementos substanciais dos nexos entre arquivo e história. Primeiro, em meados dos anos 1970, Michel de Certeau assinalou que catalogar e classificar são operações fundamentais do conhecimento histórico, logo, da objetividade em seu regime de verdade. Segundo, as engrenagens entre esses gestos (catalogar e classificar) e o arquivo referem-se às formas de açambarcar culturalmente temporalidades passadas no presente, visto que há transmissibilidade de saber. E, ensinou Derrida, são por natureza mensagens endereçadas ao futuro. Nessa perspectiva, uma intenção deliberada de sobrevivência constitui o próprio arquivo. Nele, o indício documental é uma materialidade que condensa em si temporalidades, sendo que ele pode ser alterado, apagado e até destruído. Segundo Paul Ricoeur (2007), um dever do arquivo consiste fortemente em conjurar tais ameaças.

A historiadora da arte global Anna Maria Guasch data a guinada do chamado “momento arquival” nos anos 1990. Nessa altura, o arquivo foi convertido de templo da memória em algo ativo ao tornar o material histórico, fragmentado na esfera das fontes e do arquivo, um acontecimento. Passa-se, então, a indagar os deslocamentos operados dentro e fora do arquivo enquanto práticas culturais. Guasch (2011) e Maurício Lissovsky (2004) concordariam quanto à condição poética de história que o arquivo oferece em virtude dos diversos atravessamentos entre temporalidades, dentro e fora dele (arquivo), entre conhecimentos e entre práticas culturais.

Na montagem dessa arena teórico-metodológica de problematização, é incontornável reconhecer que a cultura digital é pletora de culturas de memória e atua na culturalização da temporalidade. A especialista em performance e política Diana Taylor (2010, p. 2) identifica uma radical transformação ao afirmar:

The digital raises new issues about memory and knowledge production/transmission in the so-called “era of the archive”. Technologies offer new futures for our pasts; the past and present are increasingly thought through in terms of future access and preservation. This temporal dislocation perfectly captures the moment in which we currently find ourselves in relation to digital technologies – the feeling of not being coterminous with our time – the belatedness and not-there-yet quality of the now.

Nessa direção, Wolfgang Ernst (2013), expoente da arqueologia das mídias, identifica uma mudança do “espaço arquivístico” para o “tempo arquivístico”, devido à dinâmica dos fluxos que redefinem o acervo, à transferência permanente de dados e à reciclagem da informação quanto à reelaboração contemporânea da noção de memória arquivística e seus usos. Para ele, inscreve-se uma inescapável dimensão temporal nos processos de acervamento.

Assim conformada, essa arena entrecruza cultura visual, história intelectual, arqueologia das mídias,1 o processo de digitalização e algoritmização da cultura. Nela, traço uma micro-história das relações, reordenações, fissuras e silenciamentos entre a coleção de Gilberto Ferrez (1908-2000) e a produção visual de seu avô, o fotógrafo franco-brasileiro Marc Ferrez (1843-1923). A produção fotográfica de Marc, a coleção de Gilberto e o acervamento de Marc Ferrez no Instituto Moreira Salles (IMS) concorrem para a elaboração visual de como passados habitam presentes. Para tanto, uma noção de política de imagens coloca-se no horizonte dessa micro-história ao levar em conta que, no franco processo de plataformização da vida e digitalização da cultura, as imagens se tornam interfaces das mediações cotidianas. Pensar em termos contemporâneos uma política de imagens impõe, juntamente, considerar os diversos dispositivos e as tantas estratégias de in-visibilidades em escala planetária.

III

A coleção de Gilberto Ferrez, composta de 15 mil artefatos visuais, ocupa um lugar de destaque no mega-arquivo fotográfico do IMS, criado em 1987 com o nome de Instituto de Artes Moreira Salles. Essa coleção, adquirida em 1998, ganha foros de uma espécie de carro-chefe da instituição e conta com uma sólida ação curatorial de Sergio Burgi,2 coordenador da área de fotografia do IMS, desde 1999. Ele sublinhou a importância da obra desse fotógrafo no registro das transformações urbanas e na formulação de uma noção de território no Brasil.

Desde 2016, metade do acervo físico do IMS é composto pelo material dos Diários Associados, proveniente do mais antigo conglomerado de mídia brasileiro, fundado nos anos 1920 pelo empresário e jornalista Assis Chateaubriand. A outra metade é composta de 52 coleções, havendo uma política coordenada de acesso ao material digitalizado, de divulgação e de publicização do acervo em exposições, seminários, mídias sociais, no canal da instituição no Youtube e em sua linha editorial.

As séries fotográficas de Marc Ferrez são ainda visibilizadas no portal Brasiliana Fotográfica, que nasceu de um acordo institucional entre a Biblioteca Nacional (BN) e o IMS, capitaneado na época por Renato Lessa (BN) e Flávio Pinheiro (IMS), e foi lançado em abril de 2015 (Zanatta, 2019). Trata-se de um projeto de memória, difusão e acesso, situado no contexto mais amplo de uma política de digitalização, preservação e acesso da documentação fomentada pelo Plano Nacional de Microfilmagem de Periódicos Brasileiros, de 1978, pelo Pro Foto,3 pela Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional (1998), pela BNDigital (Biblioteca Digital Luso-Brasileira) e pela Brasiliana Iconográfica. Esse acordo hoje abrange um pool de instituições nacionais e estrangeiras, entre elas: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Diretoria de Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha, Leibniz-Institut fuer Laenderkunde, Arquivo Nacional, Museu da República, Casa de Oswaldo Cruz – Fiocruz (COC), Fundação Casa de Rui Barbosa, Museu Histórico Nacional e Fundação Joaquim Nabuco.

Baseada em entrevistas feitas com protagonistas do projeto da Brasiliana Fotográfica, a pesquisadora Roberta Zannata (2019) mostra que a formação do portal se deve em boa parte ao reconhecimento de uma lacuna na visualidade quanto às transformações urbanas no Brasil da virada dos séculos XIX e XX.4 Um dos objetivos do portal reside em reunir obras completas de fotógrafos do século XIX, tais como Marc Ferrez, Georges Leuzinger e Guilherme Gaensly. Prioriza-se, explica a autora, uma representação do Brasil figurada por importantes fotógrafos, grande parte deles estrangeira, que fixaram seu olhar sobre a nação. Na formatação desse projeto, a obra expressiva de Marc Ferrez se justifica e ganha uma vitrine que a recontextualiza sob o signo da noção de “brasiliana” – uma categoria pública altamente culta entrelaçada a uma história editorial consistente no Brasil do século XX.

Essa recontextualização expositiva e a política de divulgação da obra fotográfica de Marc Ferrez no site do IMS reforçam seu traço de um “fiel servidor” do Estado imperial – assim qualificado por seu neto, Gilberto, em 1953, no artigo pioneiro sobre a história da fotografia no Brasil publicado na revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) (Ferrez, 1953), o que acentua mais e mais a aderência e a sincronia histórica entre as fotografias de Marc Ferrez e o território do Brasil – conceito fundamental da exposição Marc Ferrez: Território e Imagem, com curadoria de Sergio Burgi e Ileana Pradilla Ceron (2019), ocorrida no IMS.5 Por outro lado, às vezes, minora o caráter cosmopolita da produção, circulação, consumo e recepção de suas fotografias.

Em entrevista à Zanatta (2019, p. 40-41), Sergio Burgi comentou a conformação da noção de brasiliana na qual a fotografia é referente da nação. A seu ver, a brasiliana se associa à linguagem artística, à vocação comunicativa da fotografia e a um tipo de imagem que existe globalmente em fluxo. Não é pouco mencionar que o próprio Walther Moreira Salles fundou, com Assis Chateaubriand e um grupo de empresários mineiros, em 1965, uma Galeria Brasiliana, que durou até 1968. Com o selo da Galeria Brasiliana, Gilberto Ferrez publicou o livro Aquarelas de Richard Bate, em 1965. Seria possível, assim, indicar um interesse pela noção de brasiliana por parte do fundador do instituto, que parece ter se prolongado ao patrocinar a publicação, em 1983, da obra História geral da arte no Brasil, organizada por Walter Zanini.

A formação de Sergio Burgi e sua especialização no trabalho com arquivos fotográficos remonta a meados dos anos 1970, sendo amplamente reconhecida. Ele participou do processo de criação de uma política pública de arquivos fotográficos no âmbito do Ministério da Educação (MEC) e da Fundação Nacional de Artes (Funarte), entre as décadas de 1970 e 1980, sob a mentoria e militância de Solange Zúñiga (Costa, 2019; Zerwes; Costa, 2022). No conjunto, tratava-se de uma política de Estado para preservação e visibilidade de acervos, publicações e prêmios. Isso formou uma rede de acervos espalhada pelo país, ancorada em estruturas culturais contemporâneas ou já existentes. Estava em curso uma política descentralizada, embora coordenada e longeva, de formação de arquivos fotográficos e de profissionais dedicados à preservação. Tal política, inclusive, repercutiu em outros países da América Latina.

A convite de Solange Zúñiga, Burgi dirigiu o Centro de Conservação e Preservação Fotográfica (1985) da Funarte (1975), sendo que seu Núcleo de Fotografia fora criado em 1979. Eles lançaram as bases institucionais para a formação de técnicos, pesquisadores e gestores ligados à fotografia. Burgi atuou junto a uma equipe de especialistas – vários deles com estágios internacionais em acervos fotográficos e bibliotecas de grande porte. Essa equipe montou e consolidou uma política nacional e pública de acervos em todo o país capitaneada por Zúñiga. Nessa época, Burgi e Joaquim Marçal de Andrade (BN) já trabalhavam juntos. Hoje dividem a curadoria da Brasiliana Fotográfica, respondendo respectivamente por suas instituições. Por seu turno, a política da Funarte ajudou a reconfigurar uma visualidade do Brasil no período de redemocratização ao voltar-se a uma nova territorialização do país por meio da imagem. Nela, Marc Ferrez passou a encimar o prêmio nacional de fotografia da instituição, apoiado pelo patrocínio estatal, convertendo-se em um sinônimo de excelência e uma chancela no campo da fotografia.

Em 1998, a revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan6) publicou um número dedicado à fotografia. Sua editoria conferiu a Gilberto a rubrica de servidor da fotografia, transferindo o atributo com o qual ele próprio consagrara seu avô, Marc, no artigo de 1953. Nesse mesmo número, Zúñiga notou uma mudança significativa rumo a uma política de acervos fotográficos, uma mudança em curso angulada pela coleção, que diferia da política de pluralização e qualificação dos acervos fotográficos, impulsionada entre os anos 1970 e 1980. O arquivo fotográfico voltava-se à coleção. Segundo Zúñiga, três grandes momentos compunham uma história dos arquivos fotográficos no Brasil. O primeiro primava pela falta de uma política pública. Ela desenha um momento no qual a compreensão sobre o arquivo e a história estaria personalizada na figura do amável Américo Jacobina Lacombe, que lhe deu a primeira oportunidade de emprego na área. Zúñiga identificou nele uma ponta de iceberg de um contexto maior, conservador de uma noção de história que relegava o arquivo a um lugar menor, caracterizado pelo acúmulo material (até desorganizado), ligado a uma estéril agenda do conhecimento histórico. Identifica esse tempo de dantes, a política pública dos acervos fotográficos dos anos 1970 e 1980 que liderara e, no futuro próximo, uma virada rumo às coleções, em fins da década de 1990.

Em 2004, o pesquisador Ricardo Mendes (2004) notou uma guinada importante entre os anos de 1980 e 1990. Se havia uma mudança na ordem dos estudos da história da fotografia flagrada no conteúdo, nos autores e nos textos da Revista do Patrimônio (1998, n. 27), ele apontou uma alteração na demanda do usuário por coleção de imagens e seu consumo – especialmente fotográficas – e nas suas plataformas de preservação, ao falar do processo de digitalização da documentação visual e na reordenação da documentação em bancos de dados. Essa transladação de plataforma de acervo e do documento ali sob guarda – conforme alertou a especialista Ana Maria Camargo (2021) – mostrava a necessidade de uma rediscussão sobre o entendimento do caráter evidencial do documento, elemento que não se restringe à mera contingência. Pois a marcação da procedência do documento o distingue das demais fontes e deve ser sempre preservada, sob pena de fazê-lo perder sua identidade. Segundo ela, a organização dos documentos e a elaboração de instrumentos de pesquisa modelam, necessariamente, o passado. Em outras palavras, delineiam historiografias possíveis.

IV

Solange Zúñiga conheceu Gilberto Ferrez ao estudar com sua filha, Helena Ferrez, no curso de história da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro. Burgi, Joaquim Marçal, Sandra Baruki, Pedro Vasquez – todos conheceram sua coleção de perto. Entre 1970 e 1980, Gilberto já era um colecionador renomado e autor de obras importantes sobre fotografia e iconografia no Brasil. Na qualidade de colecionador, na chave analítica de Kristoff Pomian (1987), ele se dedicou a tornar visível um mundo invisível e valorizou a fotografia como um fato cultural (Lenzi, 2013). Nos anos 1990, premido pelas suas condições financeiras, empenhou-se na fixação da coleção fotográfica com seu nome, circunscrevendo enfaticamente o material fotográfico do avô, ao negociá-la com o IMS. Esse gesto revela a busca pela manutenção da coleção e, ato contínuo, sua visibilidade, asseverando a institucionalização da memória da obra fotográfica do avô sob a rubrica Coleção Gilberto Ferrez.

Gilberto, que herdou a obra de Marc, foi um colecionador metódico. No trato com a materialidade da obra do avô, refez suas chapas em vidro com o mesmo laboratorista que trabalhou para ele. Cabe assinalar, no entanto, uma diferença significativa de tamanho e complexidade entre os objetos visuais de Marc, que englobavam fotografias de Auguste Stahl e George Leuzinger, e os de Gilberto. Menino, ele iniciou sua coleção com selos e livros. Ampliou-a imensamente com fotografias, alfaias, aquarelas, gravuras, estampas, tornando-se um comprador contumaz de imagens oitocentistas no Brasil e no estrangeiro, concentrando seu interesse, parece, na fotografia. Sua prática colecionista enredou-se profundamente à sua frequência constante de pesquisador, principalmente nos setores de periódicos e iconografia da BN, de museus e bibliotecas nacionais e estrangeiras.

Por sua vez, diga-se, Marc foi um pesquisador aplicado, conhecedor das imagens, dos procedimentos fotográficos e dos modos de mostrá-las. É possível indicar vários pontos altos em sua trajetória profissional e de negociante. Um deles foi sua participação na Comissão Geológica do Império, entre 1875 e 1878; outro, a produção de álbuns sobre a implantação do sistema ferroviário no Brasil nos anos 1880. Ou por volta de 1907, quando publica o Álbum da avenida Central, abre a sala de cinema Pathé no Rio de Janeiro, grupo com o qual se associara em 1904, e algumas de suas vistas fotográficas passam a circular estampadas em papel-moeda. Entre 1907 e 1908, a família Ferrez enricou, sobretudo, em função dos negócios com o “primeiro cinema” (Freire, 2022). Nem por isso Marc deixou de listar, publicar e vender suas vistas em cartão-postal.7 Ao contrário, manteve seu interesse pelo circuito comercial das imagens.

Gilberto nasceu em uma família burguesa com um raro traquejo cotidiano nacional e internacional com as imagens, que englobava uma convivência com uma heterogeneidade de artefatos visuais em seus suportes e resultados, processos de fabricação da imagem e modos de ver. Esse arsenal abrangia matrizes e câmaras fotográficas, estereoscópios, cartões-postais, álbuns, cadernetas de anotação, caixas numeradas com as matrizes fotográficas, laboratório fotográfico, material expositivo, cabine de projeção de filmes do cinema silencioso, filmes em nitrato, manuais de fotografia e assim por diante. Isso era acompanhado das contabilidades e dos contratos de negociação dessas imagens, no contexto do processo histórico de explosão de uma cultura material e de objetos visuais que tematizavam a própria visualidade, que ainda prezava os espaços expositivos nos quais essa heterogênea materialidade visual se inscrevia.

Na prática, Gilberto reitera certos valores quanto a aspectos da cultura visual do avô, partilhados por seu grupo social na época. Por exemplo, a minoridade do cartão-postal frente à grandeza do álbum. Parece haver um gradiente em comum da ordem da formação do olhar entre eles. Recorde-se que, juntos, excursionaram para fotografar o Corcovado, quando fotografar excursionando era também uma prática de aprendizagem e transmissão do conhecimento fotográfico.8 O avô ensinou ao neto, menino, as vantagens da luminosidade do sol ao raiar do dia, ao fotografar paisagens com massas de vegetação em tons de verde em céus amplos.

Sugiro a possibilidade de avançar na análise focando a bagagem familiar das práticas visuais e colecionistas de Gilberto,9 porém, convém atentar aos sentidos do colecionismo da primeira metade do século XX. Nesse período, notou Salgado Guimarães (2006, p. 8), a nação demandou uma nova visibilidade para si, e o passado pesava no presente. No Rio de Janeiro oitocentista, a ênfase das práticas colecionistas residia mais na montagem de coleções com declarado interesse em obras europeias (Knauss, 2001). Na virada do século, deu-se um sistemático interesse pela criação e montagem de coleções artísticas acerca do Brasil, fosse nos objetos, fosse na sua história.

Tais práticas colecionistas imbuíam-se de um fundo patriótico (Knauss; Alves, 2015, p. 223-232; Alves, 2017, p. 187-196).10 Elas se afinaram com o estabelecimento do Museu do Ipiranga, primeiro museu histórico do país forjado no projeto museológico e histórico de Afonso d’Escragnolle Taunay, em São Paulo; com a formação do Museu Histórico Nacional (Gomes, 2014)11, no Rio de Janeiro, como parte da política de comemoração do centenário da Independência do Brasil e dirigido por Gustavo Barroso; e com a criação do Museu Mariano Procópio, uma iniciativa privada em meio ao culto desse centenário. Esses museus históricos desempenham um papel de motor cívico, encarregado, sobretudo, de dinamizar e dar a ver o 7 de setembro – data oficial da Independência do Brasil –, como uma força cultural no interior de disputas políticas (Schiavinatto; Lima Junior, 2022).

No geral, uma nova acumulação e classificação de objetos visuais e artísticos estava em curso, atravessada por lógicas expositivas atreladas ou não aos espaços museológicos, que ajudava a renovar a compreensão sobre as artes no país e os significados das imagens. Práticas colecionistas e historiadoras se associavam de forma a recompor um passado oitocentista e monárquico entre as décadas de 1900 e 1930. Angela de Castro Gomes (2014) indicou a intensificação da política de recuperação histórica do Brasil Império a partir dos anos 1930, com as pesquisas sobre a família imperial e a fundação do Museu Imperial de Petrópolis na antiga casa de veraneio de d. Pedro II e da imperatriz Teresa Cristina. Era uma nostalgia reelaborada do oitocentos (Salles, 1996). No bojo desse processo, inicialmente, Gilberto tematizou a iconografia de Petrópolis e atuou no Instituto Histórico dessa cidade – na qual sua família tinha uma propriedade.

Ser colecionador, nesse contexto, atava-se a um lugar socialmente hierárquico que qualificava o aparecimento das coleções. Nelas, os objetos eram mantidos juntos em espaços específicos (maiormente, nas casas) e exibidos sob a mediação do colecionador. A coleção, via de regra, era motivo de distinção e prestígio social. A condição de colecionador abarcava uma convivência com objetos e suas características (inclusive técnicas), seus usos, suas trajetórias, criando uma intimidade cotidiana.12

Em outra direção, a prática colecionadora podia lastrear e catapultar um colecionador para um espaço museológico, como no caso do conhecido colecionador das obras de Jean-Baptiste Debret, o industrial Raymundo Ottoni de Castro Maya (1894-1968). Ele repatriou Debret e foi fundador do Museu de Arte Moderna (MAM), seu primeiro presidente e principal doador; presidiu a comissão do IV Centenário do Rio de Janeiro; e comprometeu-se com o reflorestamento e a patrimonialização da Floresta da Tijuca. Sua coleção segue exposta no Museu da Chácara do Céu e no Museu do Açude, unidades do Instituto Brasileiro de Museus do Ministério da Cultura (Ibram/MinC). Para Castro Maya, a atuação de Debret assemelhava-se a uma intervenção na moderna cultura artística do Brasil (Siqueira, 2001, p. 59-72). Essas práticas colecionistas e historiadoras engatavam-se ao circuito do comércio e da negociação das obras de arte no período. O antiquário, colecionador e historiador Francisco Marques dos Santos, bem inserido nessa arena cultural, desenvolveu uma carreira que o integrou a importantes instituições da área do patrimônio nacional. Ele foi conselheiro do Iphan desde sua fundação e dirigiu o Museu Imperial de Petrópolis entre 1954 e 1967.13 Parte de seu sucesso devia-se à sua atuação como antiquário e marchand.

Em resumo, na capital federal havia vários colecionadores de portes e escopos variados. Esse grupo de elite, majoritariamente masculino, circulava numa arena cultural composta por diferentes instituições, inclusive museológicas. Nessa direção, Maria Isabel Lenzi (2013) salienta dois aspectos em Gilberto. Primeiro, sua atuação no colecionismo no Rio de Janeiro entre 1930 e 1990, particularmente entre 1930 e 1960. Depois, esse círculo ativo de colecionistas e bibliófilos, com práticas colecionistas próprias e um circuito de coleções, estava, muitas vezes, afinado com o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), o Iphan, a BN, e com os museus (Museu Nacional de Belas-Artes, Museu Histórico Nacional e Museu Imperial de Petrópolis). Gilberto foi sócio do IHGB e integrou o conselho consultivo do Iphan por décadas. Além disso, fez parte do grupo da Arca do Jacarandá, organizado por Francisco Marques dos Santos, que existiu entre 1929 e 1954. Nele, vários de seus membros participavam do IHGB, do Iphan e de algumas das duas instituições.14 Ambas eram, assim, compostas por homens brancos, bem formados, com uma atuação entre os negócios, o espaço público e o Estado, marcados por práticas colecionistas privadas, domésticas e públicas.

Gilberto ainda se integrou ao grupo dos cem bibliófilos do Brasil (1944-1967), criado por Castro Maya e Pedro de Orleans e Bragança. Nele, José Mindlin se sobressaía. A trajetória intelectual do historiador, também colecionador, Américo Jacobina Lacombe (1909-1993), próximo a Gilberto, evidencia melhor essa atuação em várias instituições. Formou-se em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi professor na PUC do Rio de Janeiro, onde estudou história, atuou como diretor da Casa de Rui Barbosa, presidente do IHGB e professor de história em escolas do Rio de Janeiro e do Colégio Rio Branco. Integrou a Comissão de Textos de História do Brasil do Ministério das Relações Exteriores. Participou das bancas examinadoras de vários concursos no Colégio Pedro II e nas universidades de São Paulo e da Bahia. Coordenou, ainda, a coleção Brasiliana, como linha editorial da Cia. Editora Nacional, entre 1950 e 1960. Esses sujeitos sociais e as instituições mencionadas conformavam uma arena intelectual que reelaborou uma visualidade sobre o oitocentos recompondo-a na primeira metade do século XX. No bojo desse processo, a Inspetoria de Monumentos e, depois, o Iphan tombaram edificações associadas ao passado da monarquia brasileira, como o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, em 1938.

Gilberto desenvolveu ao longo da vida uma trajetória de pesquisador, colecionador, historiador, autor de livros e organizador de exposições. Foi um diligente pesquisador, tanto quanto zeloso organizador de sua obra impressa – inclusive sobre a qualidade tipográfica. Para isso, travou uma correspondência regular com outros intelectuais interessados no estudo das imagens do período, a fim de obter e checar regularmente as informações, a procedência e o paradeiro das imagens. Entre eles: o mencionado colecionador Francisco Marques dos Santos, o diretor do Museu Paulista Afonso d’Escragnolle Taunay, o historiador Mário Barata, além de Joaquim de Sousa Leão, Paulo Berger e Frei Clemente da Silva Nigra. Para Gilberto, havia um engate necessário entre a coleção/arquivo, pesquisa, publicação e exposição.15

No bojo dessas práticas colecionistas, historiadoras e iconográficas, a historiadora Lenzi (2013) recuperou em Nathalie Heinich a noção de “mediador”, com a qual define o protagonismo de Gilberto. Segundo Heinich (2004, p. 88 apud Lenzi, 2013, p. 120),

uma obra de arte não encontra espaço como tal a não ser graças à cooperação de uma rede complexa de atores, sem marchand para negociá-la, críticos para comentá-la, colecionadores para comprá-la, peritos para identificá-la, avaliadores para pô-la em leilão, conservadores para transmiti-la à posteridade, restauradores para recuperá-la; ela quase não encontrará espectadores para contemplá-la, além de que, sem intérpretes, editores e impressores, ela não encontrará ouvintes para escutá-la, leitores para lê-la.

A partir dessa definição, Lenzi conclui que podemos considerar a coleção, os livros e as exposições de Gilberto Ferrez: “mediadores de artistas e fotógrafos oitocentistas – a sacralização da maior parte desses artistas se deve ao trabalho de Ferrez. [...] o fotógrafo Marc Ferrez, sem dúvida, foi o que mais mereceu a mediação de Gilberto”. Daí a grandeza da intervenção de Gilberto na obra de Marc, gerando novos processos de acervamento e sua visibilidade.

Gilberto assentou de vez um nexo fundamental entre o fotógrafo Marc, o Estado, a coleção e o oitocentos. Estabeleceu um modo de escrita sobre a história da fotografia altamente enraizado no acervo fotográfico, quase como se a história fosse a tradução que se deseja transparente do arquivo, ao tempo em que configurava seu acervamento. Assim, ele atua em instâncias (da escrita, da coleção, do acervamento e da extroversão da obra) que condicionam a apreensão de Marc no século XX. Essas escolhas metodológicas por parte de Gilberto em torno da noção de “artista fotógrafo/artista paisagista” lhe permitem atrelar a produção fotográfica de Marc, de um lado, a demais fotógrafos oitocentistas e, por outro, às antigas e preciosas gravuras dos viajantes (um eixo importante de suas pesquisas visuais). A fotografia valia por si e, pensada em série, incutia uma noção de contextualização, comparação e distinção entre as imagens (Schiavinatto, 2020). É possível indagar algumas de suas escolhas e mediações.

Já na “Advertência aos leitores” do artigo de 1953, Gilberto abordou os “artistas fotógrafos” e suas fotografias em função de seu “valor iconográfico”. Tratava-se de uma categoria crucial que ia além do valor artístico das imagens produzidas pelos fotógrafos. Ela incorpora e instrumentaliza um valor documental essencial aos serviços dos peritos do patrimônio – no caso, no Iphan.16 O “valor iconográfico” aparecia na revista direcionada ao patrimônio como campo de estudo intelectual e de política pública. Logo, o artigo portava consigo um gesto de intervenção e orientação concernente ao campo do patrimônio. As fotografias poderiam dar a ver a paisagem do oitocentos e se tornar um modo do órgão institucional e oficial do Estado ver o Brasil do período. Sérgio Micelli (1987), em um artigo tão curto quanto provocativo, publicado na revista do Iphan, sublinhou a centralidade e a exímia eficácia do instituto na política cultural do Brasil no século XX.

O termo reapareceu em sua obra sobre a iconografia do Recife de 1953, publicada no tricentenário da restauração de Pernambuco, na Iconografia petropolitana (1800-1890) (Ferrez, 1955), e o acompanhou por décadas. Reaparece no título de sua maior obra: Iconografia do Rio de Janeiro (1530-1890) qualificado como catálogo analítico.

A noção de iconografia atravessa a prática colecionista e historiadora de Gilberto, desdobrando-se em suas publicações – até na formatação. Em livros e catálogos, ele adotou um procedimento no qual inseria um mapa de um sítio estudado. Mais de uma vez, analisou detidamente a produção cartográfica do Rio de Janeiro, a ponto de identificar o primeiro mapa dessa cidade na esfera do IHGB (Ferrez, 1959). Logo, o mapa não era apenas uma imagem para ilustrar ou enfeitar o livro. Tratava-se de uma informação garimpada em séries documentais textuais e visuais cotejadas, no intuito de angariar uma informação procedente geográfica e historicamente. Esse gesto culto funciona como um protocolo de escrita da história que elabora e/ou intensifica um senso de verossimilhança histórica. Com essa preocupação, Gilberto deteve-se nos estudos imagéticos de Petrópolis, do Rio de Janeiro, de Salvador e do Recife, assumindo seu interesse “pela parte evolutiva da cidade”.17

Através da iconografia, entendida como uma operação estética, histórica e intelectual, ele associou o registro cartográfico, a produção imagética (em especial, fotográfica) e o autor (muitas vezes, o fotógrafo e o viajante) (Ferrez, 1965). Adotou esse instrumento visual descritivo para uma cartela variada de suportes, pesquisas e obras: desde aquelas sobre a produção visual dos viajantes do Primeiro Reinado, passando pelas de cariz fotográfico, e até sua maior obra, vista no exaustivo catálogo com a listagem de 4.494 documentos iconográficos sobre o Rio de Janeiro, editada pela Casa Jorge Editorial.

De modo preliminar, agora, é possível indicar alguns procedimentos nas e com as imagens desse incansável colecionador-iconógrafo-historiador18 no trabalho operativo da iconografia. No trato direto com a imagem apresentado nas legendas, ele privilegiou:

Essa noção instrumentalizadora de iconografia conjugava-se com sua escrita de história, seja em sua história visual do Rio de Janeiro, seja nas publicações a respeito da história da fotografia entre 1970 e 1980. Data de então seu Fotografia no Brasil – 1840-1900 (1985), considerado por Gilberto uma versão ampliada e revista do artigo de 1953. Pois, seu projeto de história da fotografia não tinha se esgotado em meados do século. Antes, se aprimorara quanto à qualidade e precisão das informações, desde a identificação do fotógrafo até o reconhecimento dos espaços dos mais variados feitios designados corretamente; da precisão na datação da fotografia, um perfil profissional do fotógrafo, às características corretas da materialidade da imagem. Ou seja, Gilberto se empenhorou na formulação da descrição imagética para torná-la uma fonte documental necessária na história da fotografia e das imagens, procurando e estabelecendo sua verdade descritiva. Tratava-se de um modo de escrita da história visual capaz de ser multiplicado, com variações, sob o mesmo preceito. Tais procedimentos buscavam constituir marcos importantes da história da fotografia. Por exemplo, a noção de autor,19 ou ao vincular intrinsecamente o acervo e a publicação.

A partir das conclusões de Lenzi (2013), pode-se dizer que sua noção de iconografia procurava estabelecer uma informação histórica que, pedagogicamente, caracterizava uma temporalidade histórica. Sua escrita divulgava uma história pátria para um público mais amplo e diversificado, embora fosse uma escrita amplamente aprovada e até certificada pelos institutos históricos, denotando seu teor oficial. Não coincidentemente, várias de suas publicações alinham-se a políticas de memória nucleadas no culto dos centenários. Sua escrita da história e a imagem aí mobilizada funcionavam como expedientes capazes de despertar e cultivar um dado sentimento cívico em torno do Brasil, ao erigir as imagens do passado em objeto de estudo do presente. Elas seriam o meio eficaz de acessar e conhecer o passado histórico. A imagem era um artifício que sincronizava temporalidades (passado/presente) e, em simultâneo, instituía um anacronismo entre elas. Através dela, o passado reaparecia no presente sob o signo do progresso, e dele se distanciava dentro de uma lógica linear das épocas históricas. Assim, quanto mais imagens acumuladas, mais o conhecimento histórico se expandia. De forma correlata, esse acúmulo retroalimentava o prazer do colecionador/historiador.

Ato contínuo, essa escrita da história informava o campo do patrimônio. Sua descrição visual foi usada para definir a feição de um tombamento e/ou configurar uma dada paisagem. Na comemoração de seus sessenta anos, o próprio Iphan reconheceu a autoridade de Gilberto ao republicar, na Revista do Patrimônio, uma série de 11 artigos marcantes daquele periódico entre 1938 e 1947. Essa escolha editorial reconhecia seu papel estruturante na instituição.20 O reconhecimento pelo Iphan já aparecera quando esse órgão o responsabilizou por coordenar a comissão encarregada de comemorar seu cinquentenário. A escolha para estar à frente da celebração de uma instituição patrimonial desse calibre indica um intelectual capaz de transitar dentro da instituição e de recontar seus feitos nos moldes que a própria cultura institucional se reconheça. Por decorrência, o intelectual, dentro dessa política de memória, passa a ter seu nome associado à instituição que outorga a política de patrimônio no país e ao próprio protocolo dos eventos balizados pela celebração histórica. Trata-se, no todo, de um alto capital simbólico angariado pelo intelectual em tela.

O processo de restauro do Paço Imperial evidencia a força da acepção de iconografia postulada e praticada por Gilberto. No Iphan, era corrente o uso do arquivo nas escolhas de restauração, e a própria instituição mantinha um acervo fotográfico das obras de arte de vários museus para uso e consulta (Costa, 2018; Hoffmann et al., 2016). Por ocasião da restauração desse Paço, em meados dos anos 1980, sublinhou-se sua importância como local de governança por ter sido casa dos governadores, dos vice-reis e sede do governo monárquico no oitocentos. No processo de restauro, alguns projetos disputaram seus novos usos. Na comissão encarregada do estudo das diversas propostas de uso do Paço Imperial da cidade, Pedro Calmon defendeu a criação de um museu de história do Império do Brasil, Ítalo Campofiorito postulou um museu de matrizes portuguesas, aspirado pela comunidade luso-brasileira, e Gilberto alinhou-se à proposta de um museu da Missão Francesa. Nenhum deles, todavia, vingou. O projeto levado a cabo alterou substancialmente o prédio dos Correios e Telégrafos que ali funcionou na maior parte do século XX, eliminando o terceiro pavimento, a fim de reestabelecer a arquitetura do monumento. As escolhas do restauro assentavam-se nos parâmetros arquitetônicos do Paço Imperial, a partir do inventário iconográfico exaustivo compulsado por Gilberto, devolvendo ao prédio o perfil que teria tido em 1826 estrategicamente, quando o Brasil fora capital do Império de Portugal e Brasil (Ferrez, 1984).21

Seus estudos iconográficos e sua argumentação quanto à importância das escolhas da fachada do prédio foram fundamentais no processo de restauro, relativamente à definição da feição final do edifício. Provavelmente, não lhe escapou a presença do mesmo Paço Imperial no primeiro daguerreótipo feito no Brasil de 1840, pelo capelão francês Compte. Na sua condução como conselheiro do Iphan, ele ajudou a delinear uma iconografia que lastreia o restauro, mirando tanto a origem da monarquia quanto a origem da fotografia no país. Assim, não seria um equívoco dizer que, para Gilberto, o Paço Imperial restaurado recompunha uma fisionomia do Rio de Janeiro imperial.

A noção de iconografia, assim, informou uma política de memória e de história urbana e vingou na paisagem da cidade. Na linha de Eduardo Costa (2016), nota-se que sua iconografia reconectou o tectônico a uma visualidade institucionalizada, no presente, por museus e instituições patrimoniais e, no passado, por instituições monárquicas – ambas reforçam a grandiloquência do patrimônio nacional e sua história.

Esses elementos iconográficos compunham uma ordem descritiva arraigada à força da evidência da imagem, que abarcava sua fatura. Por exemplo: os comentários sobre as estampas de Hildebrandt ou acerca de algumas fotografias do Recife revelavam a preocupação de Gilberto em detalhar o ponto de vista, a composição rara de uma dada paisagem carioca, a força documental da imagem ao mostrar, inclusive, o modo de fotografar de Marc Ferrez. O estudo da iconografia remete a um conhecimento sobre o próprio pensamento visual e o fazer imagético com informações obtidas em cada imagem, nas séries temáticas com as quais as coteja ou, ainda, com a gama de informações compulsadas nas bibliotecas e nos arquivos.

Por sua vez, o impulso cartográfico em suas obras editadas situa geograficamente o leitor/observador e entretece um contexto visual objetivo que compõe o poder descritivo da imagem fotográfica. Esse procedimento intensifica a força do seu referente e ajuda na elaboração de uma intertextualidade entre a imagem e o referente, enquanto uma relação discursiva dialógica. Assim evidenciada, a imagem convence o leitor. Esse protocolo conservador de escrita da história, em Gilberto, atende a uma exigência moderna da culturalização da temporalidade histórica notada por Koselleck (2014), na qual as narrativas sobre o passado passaram a exigir uma maior capacidade de representação, pois sua veracidade lastreava-se na fiabilidade das fontes de conhecimento.

O valor histórico desse passado pode ser redivivo como uma ação patriótica. No presente, Gilberto recupera o passado que merece não só ser lembrado, mas, de certo modo, recomposto. Esse rearranjo entre o passado e o presente, aos poucos, repõe a grandeza da monarquia e naturaliza as violências da escravização das gentes na chave do tipo social (Ferrez, 1984a). Tratava-se de um expediente histórico e político que enquadrava e negava a questão racial, atenuando sua força ou fazendo-a se diluir na própria imagem e/ou na sua exposição. A historiadora Ynaê Lopes e o curador Hélio Menezes22 sublinharam os sentidos políticos da negação dos significados raciais nas fotografias feitas por Marc, sob encomenda do Centro da Lavoura e Comércio,23 para atender exposições nacionais e internacionais de café entre 1881 e 1885. Nelas, os tantos homens, mulheres e crianças escravizados e escravizadas nas fazendas de café do Vale do Paraíba aparecem como se fossem corpos dessubjetivados, na medida em que o posicionamento coreografado dos corpos escravizados tenta negar sua condição. Despersonalizados eles ficavam enquadrados numa noção de tipos sociais do trabalho das fazendas, quando o amplo questionamento da escravidão e as lutas por liberdade se fortaleciam nas frentes do abolicionismo, acirrando o medo senhorial. As imagens ajudam a aplanar a condição de escravizado, naturalizando a própria escravidão. Ao categorizar vários corpos racializados fotografados por Marc na acepção de tipo, Gilberto concorre para a naturalização das desigualdades, da ordem do trabalho compulsório e da racialização dos sujeitos, sobretudo, quando essas fotografias eram raras e sancionadas oficialmente como a cara do passado do país. Elas colaboravam para um apaziguamento edulcorado do passado monárquico tão convenientemente recordado no governo de Getúlio Vargas.

V

Essa acepção de iconografia, pari passu, conjugava-se à noção de evolução histórica. Gilberto (1985) mesmo sintetizou sua posição:

Documentos iconográficos insubstituíveis, de alta fidelidade, absolutamente imprescindíveis ao estudo correto da história sociológica da evolução dramática de nossas cidades nesses últimos cem anos. Estudos esses impossíveis às novas gerações sem esse material. Como não sabemos se ainda conservar-se-ão em bom estado por muitos mais anos, e para sua maior divulgação, organizamos esse álbum.

A evolução dramática urbana no Brasil referia-se ao oitocentos, mas remontava ao século XVIII, ou mesmo a recuados episódios. A noção de evolução vinha carregada de intenções em relação ao passado e era afeita ao formato álbum, que ordenava a fotografia tal qual um arquivo. A organização sequenciada das imagens segue tendo um efeito semelhante ao tempo que corre para o leitor/espectador. Daí também sua predileção pelo álbum frente ao cartão-postal. Aquele conforma conjuntos, facilitando a impressão e a editoração, enquanto o cartão-postal fragmenta e agiliza a circulação das imagens, miniaturizando-as e, de certa maneira, privatizando-as nos espaços domésticos.

No todo, a iconografia torna-se um procedimento interno de um programa de uma dada lógica visual, que rearranja um retrospecto histórico encarregado de narrar uma história das imagens, na qual pode interpolar diferentes suportes imagéticos (mapas, cartões-postais, litogravuras, gravuras, desenhos, aquarelas, fotografias).

No geral, as mais variadas publicações de Gilberto presentificam e rememoram Marc ao publicar suas fotografias, assegurando sua grandeza. Em 1982, ele reeditou o Álbum da avenida Central – uma obra grandiloquente, de caráter fundacional da política das imagens, calcada no cartão-postal do Rio de Janeiro moderno de Pereira Passos (Neves, 1986). A primeira versão desse Álbum, a cargo de Marc, foi encomendada pela Comissão Construtora da Avenida Central. A segunda, por Gilberto, contou com patrocínio de outro pool de construtoras. Aqui, avô e neto se aproximam. Gilberto não alterou nada no Álbum, sendo que costumava intervir nas legendas e na ordenação/composição das fotografias em suas publicações.

No Álbum negociado entre a comissão e o fotógrafo Marc Ferrez, ficou acertado que as fotografias privilegiariam elementos arquitetônicos dessa nova avenida. Deliberaram pelas fachadas dos prédios, em virtude de seu interesse formal, decorativo e didático, colocando dados sobre o projeto, construção e produção da fotografia nas legendas (elementos de valor iconográfico em Gilberto).

Marc abriu o Álbum com a planta baixa da avenida Central, como um panorama geral para situar o leitor de suas mudanças. A introdução dessa imagem na abertura concorria para a organização de uma discursividade geográfica sobre a evolução urbana e justificava a grandeza histórica de um bem edificado – tal qual o Paço Imperial. A fotografia e sua articulação com a menção cartográfica tornavam-se aqui um aliado poderoso da imaginação geográfica e histórica. Nessa direção, a produção fotográfica de Marc conjugava-se à compreensão, cada vez mais generalizada, de que as fotografias contribuíam para o empirismo e a paixão da época por coletar, classificar e controlar os fatos, fosse na busca de conhecimento, fosse na condução da administração colonial – estando ambas profundamente entrosadas.

No Álbum, Marc some com os entulhos e os entornos dos edifícios. Ele “limpava” qualquer signo que sujasse ou abalasse a monumentalidade da fotografa, dos projetos, dos prédios edificados e, enfim, da própria avenida. No entanto, privilegia maiormente, ao fundo das imagens, a rotundidade da geografia do Rio e a identificação dos créditos da obra vista na publicação. Ele considera a autoria do projeto, do bem edificado e da fotografia feita no mesmo patamar de importância, colocando-se numa posição similar àquela do engenheiro.

Figura 1 – Álbum da avenida Central. Marc Ferrez. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon1387674/icon1387674.pdf. Acesso em: jan. 2022

Em algumas passagens do Álbum, Marc Ferrez traz elementos casuais da cidade, nos quais ecoam um ritmo do cinema e/ou do fremir da literatura de panorama, estando ambos bem interligados (Schwartz; Charney, 2001; Barros, 2008; Lissovsky, 2022; Freire, 2022). Mais de um autor tem notado isso na composição e montagem de algumas fotografias de Marc Ferrez no Álbum da avenida Central (Lissovsky, 2022; Barros, 2008). Em uma delas (Figura 1), ecoa o elogio do movimento dos corpos urbanos do primeiro cinema, na disposição e ritmo, no pequeno grupo lateral de sujeitos dessa capital, transformada em cartão-postal da República. Na mesma imagem, o sol a pino reflete o esmero do ornamento em ferro que encima a porta de entrada do prédio de fachada neoclássica majestosa. Esse ornamento em art nouveau reaparece na sombra no chão na lateral esquerda ou no arremate dos postes da “feérica” eletricidade, como se dizia na época. Atração, movimento e encantamento do olhar – categorias fundamentais do primeiro cinema – substanciam essa imagem. Esse diálogo com a cultura visual da época não se esgota nessa relação entre a imagem-fixa e a imagem-em-movimento. Se o Álbum elogia o poder da engenharia que reforma a cidade, também a entroniza, porque ela identicamente se moderniza numa lógica visual semelhante àquela do cartão-postal.

Na política de modernização da capital da República da virada do século, o Álbum, a contrapelo, é uma obra da barbárie, pois colabora para extirpar e apagar simbolicamente as referências à herança africana, diaspórica, às manifestações das populações negras e libertas do pós-abolição, ajudando a sumir com seus convívios comunitários, solidários, que foram sistematicamente perseguidos, tais como a roda de samba, as festas religiosas, as maltas de capoeira, os blocos carnavalescos e os tantos batuques. Para Marc e Gilberto, porém, o Álbum era uma obra cabal da civilização, que monumentaliza a cidade. Hoje, ela é motivo de debate e consulta, porque a maior parte dessas edificações veio mais tarde abaixo. O Álbum, publicado pelo avô e republicado pelo neto, lembra uma fantasmagoria espetacular da ordem e do progresso.

A coleção de Gilberto é organizada sob a égide de uma noção de processamento, sem se restringir à ideia de guardar bem guardado ou apenas ao gosto de acumular. Trata-se de uma prática colecionadora e historiadora passível de ter suas ficções (de totalidade), suas transitividades (como no gesto de reapropriação da imagem e trabalho com as referências) e suas opacidades com o manejo do espetacular em Marc Ferrez.

VI

Ao longo da vida, Marc Ferrez dedicou-se à criação e ao desenvolvimento de técnicas e métodos fotográficos, explorando suas materialidades, a fim de obter uma imagem com a melhor fisionomia do visto. Ele percebeu a vocação documental e arquivística da fotografia e da série fotográfica. Tratava-se de uma nova configuração visual estabelecida entre 1840 e 1850. Para Ernest Lacan, editor do primeiro jornal francês de fotografia, La Lumière (1851-1867), a série fotográfica associava-se à história e à fixação do evento, preservando sua fisionomia para as gerações futuras. A série atrelava-se a uma noção de identidade que se identificaria na imagem.

Entre 1880 e 1889, Marc envolveu-se muito com o tema das ferrovias (Ceron, 2019) e algumas companhias ferroviárias encomendaram-lhe álbuns sobre suas obras em construção ou construídas. Ele fez séries fotográficas sobre a implantação das estradas de ferro, mostrando a engenharia humana que rasga a terra, detona e aplana encostas, cria enormes patamares para instalação da ferrovia e expõe a inserção do trem e da linha de ferro como signos da modernidade, que conjugam uma nova visualidade local e uma geografia imaginada com as vias de transporte e comunicação (Natale, 2012; Lyden, 2003). Ao contrário da rotundidade do Rio de Janeiro, essas encostas, domadas com grandes cortes verticais e horizontais nas pedras e nas serras, comprovavam o progresso incrementado no território nacional, ao passo que alteraram drasticamente a paisagem. O custo ambiental comentado pelos fazendeiros do Vale do Paraíba na instalação e expansão da plantation (Pádua, 2002) transparece nesses álbuns.

Figura 2 – Álbum Fotografias da estrada de ferro Curitiba-Paranaguá. Arthur e J. J. Wischral, 1928. Disponível em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/8641. Acesso em: mar. 2022

Gostaria de sublinhar na pesquisa visual de Marc Ferrez os modos de mostrar, de dar a ver as imagens, como parte de uma noção de espetacularização crucial na época (Benjamin, 2007), com atenção a duas situações concatenadas, nas quais a dimensão espetacular dos modos de mostrar se entrecruzaram.

Marc foi contratado pela Comissão Geológica do Império, organizada pelo renomado geólogo Charles Frederick Hartt (1840-1878) e patrocinada pelo governo monárquico. Era o fotógrafo da expedição do geólogo treinado no circuito universitário norte-americano. Formado em Harvard, Hartt (Freitas, 2001, 2002) trabalhou no Museu de Zoologia de lá e ensinou em Cornell. Foi o discípulo preferido do zoólogo e geólogo Louis Agassiz (1807-1873), um dos promotores e principais defensores do racismo científico e do criacionismo no século XIX. Para entabular a comissão, angariou recursos nos Estados Unidos e apoio da monarquia. Era a primeira incumbida de documentar fotograficamente várias partes do país, apesar de Hartt já ter excursionado por ele quatro vezes antes.

No contrato ajeitado entre Hartt, Marc e a monarquia, ficou acertado que as fotografias tiradas seriam objeto de estudo das ciências. Na qualidade de objeto científico, seriam expostas na Exposição Nacional de 1875, e no pavilhão brasileiro da Universal da Filadélfia de 1876, visitada por mais de dez milhões de espectadores. Elas passaram às coleções do Museu Nacional – inclusive as de indígenas botocudos (Nascimento, 2009). Em razão do projeto científico, foram musealizadas e mostradas em circuitos expositivos.

Para Hartt, era fundamental fazer o levantamento, a classificação e a sistematização de uma documentação fotográfica sobre o Brasil. Praticante de ilustração científica, achava a imagem um meio de ver com encadeamento epistemológico. Em uma noite no Recife, em 1875,24 numa conferência popular que proferiu, com a presença de Marc, Hartt mostrou objetos geológicos coletados e centenas de fotografias tiradas na expedição. Especificamente, exibiam as camadas geológicas do solo sob ação do tempo, referindo-se à sua formação. Visualmente, ele analisou a datação da formação da terra, do continente e das eras geológicas. Aqui, a questão geológica e geográfica se tornava um campo do visível e do representável. Na conferência, o espectador/observador ficou diante dos objetos científicos identificados e classificados, dois álbuns com 110 fotografias, tantas encartonadas nas paredes, a projeção delas por meio de lanternas mágicas em uma tela branca, e ainda a exibição de muitas em estereoscópios. As fotografias podiam ser adquiridas e negociadas ali mesmo. A exposição da imagem científica ocorria em simultâneo em várias mídias numa experiência marcada pela intermidialidade.

Segundo T. J. Clark (2007), mostrar as imagens em vários suportes e mídias ao mesmo tempo concretiza e acentua a experiência do espetáculo. Stephan Bann (2001) advoga que o exercício visual de ver o objeto e, ao mesmo tempo, sua representação (o objeto geológico coletado e sua fotografia) são modos modernos de olhar que espetacularizam o visto através da repetição da combinação apresentação e representação. Essas duas instâncias pulsaram na conferência. Assome-se mais uma camada de sentido quando isso se atrela à reprodução das fotografias feitas em série e sua circulação ampliada – para além daquela situação citada. O ato de ver incita um prazer visual moldado também pelo poder exibicionista da imagem, que não se restringe àquele momento, pois o espectador que comprou uma vista faz eco à menção espetacular da imagem.

A intenção comum entre o panorama, uma especialidade de Marc, e o estereoscópio reside em suscitar no observador/espectador uma viagem no interior da imagem. Modos de ver que convidam à imersão.25 O espectador/observador é sujeitado aos impactos sensoriais da imagem vista e da própria experiência de ver. Isso requeria uma notável habilidade em mostrar algo por parte do fotógrafo. Naquela noite no Recife, a imagem converteu-se numa categoria intelectual, científica e estética, imbuída de um senso de atração destinado a provocar um frenesi ao ser vista em várias superfícies.

O médico e escritor de Boston, formado em Harvard e renomado no mundo letrado oitocentista nos Estados Unidos, Oliver Wendell Holmes (1809-1894), escreveu um artigo sobre o estereoscópio na revista Atlantic Montly, em 1859. Deteve-se no estudo desse dispositivo visual por anos. Em 1899, publicou o manual The stereoscope and steresocopic photographs. Para ele, o estereoscópio fazia as superfícies parecerem sólidas. Seu efeito produzia uma aparência de realidade capaz de enganar os sentidos com sua aparente verdade. A imagem estereoscópica projetada, lembro, põe a ver as imagens em camadas de profundidade. Hartt e Marc tinham notícias desse debate, e Marc conhecia esse processo fotográfico de perto.

Na comissão, a análise da materialidade dos objetos geológicos coletados e daqueles fossilizados, a par das imagens das camadas geológicas dos solos, produziu um inédito arquivo científico que definiu, pela primeira vez visualmente, o tempo mais profundo da nação – seu passado mais remoto. As fotografias estereoscópicas feitas, acordadas com a agenda científica de Hartt, erigiam-se em evidências oficiais da nação, mostradas na chave do espetáculo e da atração. Assim, expunham o passado mais pretérito do Império – seu tempo mais remoto.

Figura 3 – Estudo detalhado da parte norte do carte na formação glacial do Portão Vermelho [...], 1875-1876; estudo detalhado do corte na formação glacial do Portão Vermelho mostrando os bloques erráticos, 1875-1876. Marc Ferrez. Disponível em https://www.getty.edu/art/collection/object/109975 e https://www.getty.edu/art/collection/object/108JC9. Acessos em: out. 2020

O conjunto das observações e imagens feitas aliado aos objetos recolhidos formavam um novo rol de informações científicas da geologia e tinham usos práticos para o Ministério da Agricultura, onde o Museu Nacional e a Expedição Hartt estavam arregimentados. Conhecer o tempo e a natureza geológicos do território ajudava a definir políticas contra a seca no Nordeste ou a enfrentar as dificuldades em rasgar a topografia das serras para a implantação do sistema ferroviário.

Um outro elemento da ordem do espetáculo remetia à noção do “homem primitivo” elaborada no Museu Nacional. Naquele momento estava em curso uma mudança importante no museu, promovida pelo botânico Ladislau Netto (1838-1894) – bem estudada por Michele de Barcelos Agostinho (2020). Ele reorganizou as coleções do museu, classificou e mudou suas formas de expor o material científico coligido, depois de ter estagiado no Jardin de Plantes de Paris, onde havia uma galeria de antropologia, inaugurada em 1855. No início dos anos 1860, ela contava com três mil itens em exibição das raças de todos os continentes. Então, Ladislau Netto se aproximou do grupo do arqueólogo Jacques Bouches de Perthes (1788-1868). Em suas pesquisas, entremeando paleontologia e antropologia, definiu a alta antiguidade do homem, preconizando a noção de pré-história (como um passado de duração ilimitada e incalculável), Idade da Pedra e de homem fóssil (como uma categoria científica).26 Baseado nesses pressupostos, Ladislau Netto dirigiu o museu (Guia..., 1882; Lacerda, 1906; Lacerda, 1882).27

Na Expedição Hartt, Marc fotografou os botocudos no sul da Bahia sob a encomenda do Estado. São imagens do e para o Estado. O termo genérico e pejorativo, “botocudo”, foi criado pela colonização portuguesa. Referia-se aos indígenas de diversas filiações linguísticas não tupi situados ao sul da Bahia até Minas Gerais, assim chamados em função do uso do disco de madeira (botoque) labial e auricular. Eram considerados selvagens remanescentes do passado e a evidência da vida primitiva de tempos remotos. Johan Friederich Blumenbach, um dos fundadores da antropologia física, ao analisar o crânio de um botocudo, classificou-o a meio caminho entre o orangotango e o homem (Cunha, 1992). Marc endossa esse termo ao fotografá-los em suas localidades. Conformavam ali uma ação de resistência, acaboclando-se nas faixas litorâneas e terras ocupadas, pois a larga maioria desses povos enfrentou massacres e derrotas em guerras abertas, ditas “justas”, entre as décadas de 1800 e 1820 (Morel, 2018).

A produção de uma documentação fotográfica integrada a uma política científica e pública foi um gesto inaugural nessa conjugação de forças, que transfigura o indígena em evidência de um tipo – categoria apta à classificação, à catalogação e à sua medição (Koutsoukos, 2020). Um ponto alto dessa política da imagem do “botocudo” deu-se na exibição de sujeitos ditos “botocudos”, suas produções (ditas industriais) e fotografias na Exposição Antropológica do Brasil de 1882. Nela, o indígena era o assunto central. Sua figuração aparecia nas salas Alexandre Rodrigues Ferreira (ARF), Hartt e Peter Lund (1801-1880) do Museu Nacional. Nessa ocasião, tanto houve uma difusão da imagem fotográfica quanto o museu se transfigurou em espaço de discursos fotográficos. Via-se uma cultura material expressiva sobre os “botocudos” na exposição. Na sala ARF, apareciam suas formas de viver, objetos coligidos e ilustrações riscadas nas expedições do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) e do príncipe Maximilien zu Wied-Niewed (1782-1867), além das cabeças de botocudos obtidas por ele através de mediadores culturais, como Joachim Quack.

Na exposição, a figura dos “botocudos” foi convertida em exemplo do homem fóssil – categoria estudada por Ladislau Netto com Bouches de Perthes. Ela apareceu na Revista da Exposição Antropológica, organizada por Mello Moraes Filho (1844-1919), em 1882, nas publicações de Ladislau Netto e na narrativa expográfica da exposição. Ele aliou essa exposição à tradição das exposições nacionais e universais. Alinhou-se ainda à Exposição de História do Brasil (1881), igualmente empenhada em criar um patrimônio visual do país (Turazzi, 2009), atravessada por imaginários geográficos e históricos racistas. Essa política de memória e de história das exposições a partir da primeira Universal de 1851, em Londres, inaugurou um espaço de enfrentamento entre os impérios europeus que buscavam afirmar seus imaginários nacionais, ao passo que expandiam, afirmavam e legitimavam o colonialismo (Thomaz, 2002).

Nessas condições, o “botocudo” vira um corpo eivado do passado no presente. Tratava-se de uma categoria capciosa de alto uso no ideário nacional, que remontava à existência de homem do passado, enquanto um fóssil, porém, existente no presente. Uma estratégica cenografia expositiva em dioramas foi montada com objetos recolhidos e modelos feitos em papel machê modelados sobre corpos de indígenas (de xerentes a botocudos), asseverando a verificabilidade do visto, almejando reproduzir um modo de vida selvagem. O “botocudo” fotografado por Marc e suas fotografias concorriam para afirmar que ele pertencia ao passado mais remoto, análogo ao primitivo. Seria apenas um resíduo no presente. Na montagem de um acervo científico sobre o Brasil, fincava-se visualmente uma distância excessiva entre o botocudo e o visitante/espectador/observador, abrindo uma rachadura entre eles. Essa forma de distância suscita uma indiferença entre os muito distantes ou uma compaixão idealizada entre esses sujeitos fraturados (Johannes, 2013).

Figura 4 – Indígena do povo aimoré, também conhecido como botocudo, 1875. Marc Ferrez. Exposição Antropológica Brasileira: artefatos e aspectos da vida indígena. Disponíveis em: https://brasilianafotografica.bn.gov.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/383 e https://acervos.ims.com.br/portals/#/detailpage/69475. Acessos em: dez. 2020.

O Museu Nacional fornecia uma gramática da coleta, classificação e catalogação do “botocudo” nessa chave “científica”. Naturaliza-se a figura do selvagem chancelada, dessa vez, pelo museu de ciências na esfera do Estado monárquico, dentro de uma política de memória. Essas imagens compuseram o álbum oficial Vues du Brésil,28 executado sob a direção do diplomata barão do Rio Branco, impresso em Paris e lançado na Exposição Universal de 1889. Nele, das 94 imagens do país, 24 resultam de fotografias de Marc.

Não parece ser coincidência que Marc Ferrez passou a configurar uma noção de tipo, em mais de uma ocasião nessa época, para corpos racializados. Uma categoria elástica que esvazia a agência do sujeito retratado, mesmo quando ele carrega suas marcas corporais, étnicas, de pertencimento afro-atlântico, diaspórico e afrodescendente. Uma categoria mobilizada por seu neto, Gilberto Ferrez, ao ensejar uma nostalgia do Império.

VII

É possível fazer algumas ilações dessa apresentação sobre figurações do passado acionadas por acervos fotográficos. Enquanto evidencialidades e modos de culturalizar as temporalidades, essas figurações habitam nosso presente. Nesta pesquisa, o arquivo funciona como uma estrutura de poder e produção de sentido, um locus de agência que molda nossa percepção das temporalidades. Permite analisar e reconsiderar os regimes de memória e historicidade em relação às práticas de uma cultura material. Permite, também, pensar como artefatos midiáticos e visuais – científicos, inclusive – atravessavam e modulavam as experiências no passado, e como sobrevivem em novos contextos, novas telas e dispositivos no tempo presente.

Se o nexo coleção/arquivo, publicações e formas expositivas, assinalado em Gilberto Ferrez, nos ajuda a pensar formas de (in)disciplinar as imagens e (des)aprender com os arquivos, a experiência de Marc Ferrez na Expedição Geológica do Império indica um polo gravitacional nas formas de espetacularização das imagens, junto aos modos de ver na culturalização de temporalidades históricas e na constituição de protocolos históricos.

O fio condutor do texto, análogo à aula, atenta a um processo de transarquivação, entendido como acontecimento constituído por práticas culturais. Ele pode ajudar a explorar buracos, fraturas, silêncios, apagamentos, desaparecimentos, esquecimentos entre arquivos/coleções, no caráter prospectivo do arquivo, nas formas de temporalização, na matéria da imaginação histórica e na sua produção poética. Nessa perspectiva, talvez propicie aventar novas relações entre as imagens e as nervurações do real – um imperativo do presente para vislumbrar possibilidades de futuro.

Referências

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Recebido em 5/12/2022

Aprovado em 18/5/23


Notas

1 A arqueologia das mídias se tornou uma área disciplinar nos anos 1990. Designa um campo de práticas intelectuais e artísticas que abordam as condições materiais de existência dos media, sem tomá-los como inertes ou neutros. Essa abordagem insiste na materialidade e na ecologia material de objetos midiáticos, fenômenos e processos, contrariando a persistente tendência de definir tecnologias informacionais e comunicativas e os processos em termos imateriais e descorporificados (Parikka, 2018).

2 De formas distintas e em diálogo, Pedro Vasquez e Maria Inez Turazzi se especializaram na obra de Marc Ferrez. Ver: Pelegrino (2008) onde há textos dos dois autores; e Turazzi (2000).

3 Segundo Joaquim Marçal (apud Zanatta, 2019), o projeto de preservação e conservação da Biblioteca Nacional alia-se ao núcleo de fotografia da Funarte e ao Programa de Conservação e Preservação da Fotografia Brasileira criado por Solange Zúñiga na virada dos anos 1970 para os 1980.

4 Ver o depoimento de Flávio Pinheiro (Zanatta, 2019, p. 31).

5 Imediatamente, antes e depois, outras exposições no IMS evocaram essa relação entre a fotografia e o território (sobretudo, urbano) em Marc Ferrez. São elas: A Praça, o Paço e o Morro (2016), Rio: Primeiras Poses – Visões da Cidade a Partir da Chegada da Fotografia (1840-1930), de 2016, e Moderna pelo Avesso: Fotografia e Cidade, Brasil, 1890-1930 (2022-2023).

6 Essa revista, segundo Márcia Chuva (2021), erige-se em um espaço intelectual de produção de sentido do patrimônio de forma plural. Salgado Guimarães (2021) ressaltou, ali, uma produção de noções de historicidade que atravessam o conhecimento histórico.

7 Paulo Berger levantou 350 postais feitos por Marc Ferrez com sua marca (Berger; Belchior, 1983).

8 Ver: Société d’Excursion des Amateurs de Photographie (s.d.). Contém estatutos, listas de seus membros, concursos entre 1894 e 1914. A associação existia desde 1887 e publicava um bulletin regularmente. BNF. Catalogue général. Disponível em: https://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb44308033f. Acesso em: 5 out. 2022.

9 Nesse aspecto, o acervo Ferrez pertencente ao Arquivo Nacional, a biblioteca de Gilberto negociada no Rio de Janeiro e suas anotações mantidas no IMS revelam-se fontes preciosas.

10 Moema Alves detém-se nas práticas colecionistas de Djalma da Fonseca Hermes (1884-1978), Guilherme Guinle (1882-1960) e Tobias de Rego Monteiro (1866-1952).

11 De acordo com Marize Malta (2020, p. 11), o senador Miguel Calmon du Pin e Almeida (1879-1935), a família Guinle e a viscondessa de Cavalcanti (1852-1946) estavam entre os principais particulares que contribuíram para a constituição do acervo seminal do MHN. Ela indica que essa prática do colecionismo privado fez parte da afirmação do mundo da arte no Brasil.

12 Nas lidas diárias, o colecionador desenhava para si uma compreensão de história, no caso do Brasil, segundo Moema Alves (2017, p. 191), que recompunha as relações entre certas noções de passado e presente.

13 O museu foi criado em 1940. O Anuário do Museu Imperial, publicado a partir daí com patrocínio do Ministério da Educação e Saúde, fazia uma recuperação letrada consciente da “grandeza” do Império. Os artigos do primeiro número explicitam o compromisso com uma política de memória e de história: Alcindo Sodré, seu primeiro diretor, escreveu sobre d. Pedro II e Petrópolis; Américo Jacobina Lacombe, sobre a nobreza brasileira; e Francisco Marques dos Santos abordou o leilão do Paço de S. Cristóvão.

14 Entre eles, destaco: Francisco Marques dos Santos, Afonso Taunay, Hélio Vianna, Américo Lacombe, José Mariano Filho, José Wasth Rodrigues, Morales de los Rios, Luís Edmundo, Wanderley de Pinho, Gustavo Barroso, Pedro Calmon e o próprio Gilberto Ferrez.

15 O catálogo Pioneer photographers of Brazil, de 1976, foi publicado quando da realização da exposição de igual título no Center for Inter-American Relations. Essa exposição itinerou por Estados Unidos, Canadá, Equador e Peru. Depois, foi montada no Museu de Arte de São Paulo (Masp) e no Museu Nacional de Belas Artes (MNBA). A coleção de Gilberto recebeu aqui uma chancela internacional relevante, e ele mostrou que conhecia acervos internacionais, tais como: Hispanic Society of America (NY), Academia de Viena, Victoria & Albert Museum e Real Sociedade de Geografia de Londres.

16 Criado em 1937 com o nome de Sphan, por Rodrigo Mello Franco de Andrade e por intelectuais modernistas que valorizaram a arte e a arquitetura colonial. Adoto ao longo da pesquisa sua atual nomenclatura.

17 Arquivo Família Ferrez, AN – FF – GF. 2.0.4 Cat 20. Entrevista em 1982, concedida à Solange Zúñiga, Paulo Estelita, Marcio Doctors e João Leite.

18 Nessa arena intelectual, vários desses homens pensaram assim as imagens: Francisco Marques dos Santos, por exemplo, escreveu sobre arte plumária no país; Rodrigo Melo Franco de Andrade publicou sobre a arte colonial e dirigiu o Iphan; Hélio Vianna estudou cartões-postais de fortalezas no Brasil, a fim de entender a ocupação geográfica e militar dos portugueses no período colonial.

19 Na época, havia uma guinada rumo à noção de autor perpassada pela entrada de fotógrafos nos museus, a estruturação das agências de fotojornalismo e um circuito mais parrudo de galerias e exposições.

20 Segundo Márcia Chuva (2009, p. 254), a produção impressa do patrimônio teve um papel articulador em um debate que envolvia intelectuais e propagandistas da ação institucional desse órgão. Daí o caráter estruturante dessa publicação.

21 No processo de recuperação do antigo Paço Imperial, Gilberto Ferrez é o historiador que avaliza e interfere no programa das obras, como membro consultivo do Iphan, por possuir valioso material iconográfico e bibliográfico. Preparo um estudo específico sobre a categoria iconografia na arena cultural do Rio de Janeiro, entre 1900-1980, no qual atento melhor ao caso do Paço Imperial.

22 Respectivamente: IMoreiraSalles. “Marc Ferrez: território e imagem”, por Ynaê Santos Lopes. YouTube, 19 ago. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KDYoMTcduXc. Acesso em: abr. 2023; IMoreiraSalles. Marc Ferrez por Hélio Menezes. Conversa na Galeria. YouTube, 19 jun. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EJxn2yycNYc. Acesso em: abr. 2023.

23 Criada em 1881, essa associação congregou cafeicultores brasileiros, comerciantes, financistas e consumidores internacionais. Desde sua fundação, encontrou na exposição um mecanismo comercial e um modo de dar a ver a cafeicultura e a escravidão no Rio de Janeiro e em países euro-americanos. Ocorriam conferências e expunham-se vistas das fazendas de café do artista Nicola Antonio Facchinetti.

24 Diário de Pernambuco, 25 de novembro de 1875, p. 8; Diário do Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1875, p. 1.

25 Ver o vídeo: IMS. Novas vistas. Videoensaio a partir de “Moderna pelo avesso”. YouTube, 27 jan. de 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=alG8IyJfivs. Acesso em: 2 abr. 2023.

26 Boucher de Perthes, Jacques (1788-1868). De l’homme antédiluvien et de ses oeuvres, par M. Boucher de Perthes. BNF. Gallica. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k58466607. Acesso em: set. 2022. Iniciei essa pesquisa no Jardin des Plantes em 2018.

27 Os estudos de Freitas (2001, 2002) e Agostinho (2020) e a pesquisa de IC/Pibic/CNPQ de Laura Manganote, atrelada a minha pesquisa sobre a coleção da Família Ferrez, me são fundamentais para a compreensão dessa história intelectual centrada no Museu Nacional.

28 Acervo BNDigital. Album de vues du Brésil. J. M. da Silva – Paranhos. Barão de Rio Branco. Paris [França]: Imprimerie A. Lahure, 1889. Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/icon243311/icon243311.pdf. Acesso em: jan. 2021.



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