Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 2, maio/ago. 2023

Marc Ferrez: a fotografia como experiência | Entrevista






Boris Kossoy é historiador da fotografia, professor, fotógrafo, museólogo e arquiteto. Graduou-se em Arquitetura pela Universidade Mackenzie (1965), fez mestrado e doutorado em Ciências pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1977-79). Foi professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e, a partir de 1988, passou a atuar na Universidade de São Paulo (USP), onde prestou concurso, em 2000, para livre-docência e, em 2002, para o cargo de professor titular. Atualmente dedica-se à docência e à pesquisa como professor de programas de pós-graduação da Escola de Comunicações e Artes da USP, além de seguir com seu trabalho como fotógrafo. Obras fotográficas de sua autoria encontram-se nas coleções permanentes do Museum of Modern Art (Nova Iorque), George Eastman House (Rochester), Smithsonian Institution (Washington), Bibliothèque Nationale de Paris, Museu de Arte de São Paulo, Museu de Arte Contemporânea da USP, Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Centro de la Imagen (México), entre outras instituições. Kossoy é autor de Viagem pelo fantástico; Hercule Florence, a descoberta isolada da fotografia no Brasil (com edições em espanhol, alemão, francês e inglês); Origens e expansão da fotografia no Brasil: século XIX; Album de photographias do estado de São Paulo 1892: estudo crítico; São Paulo, 1900; Dicionário histórico-fotográfico brasileiro; Fotografia e história; Realidades e ficções na trama fotográfica; Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpétuo; Um olhar sobre o Brasil: a fotografia na construção da imagem da nação (coordenador); Lo efímero y lo perpetuo en la imagen fotográfica. É também coautor, com Maria Luiza Tucci Carneiro, de O olhar europeu: o negro na iconografia brasileira do século XIX e A imprensa confiscada pelo Deops-SP (1924-1954), entre outros livros.

Nessa entrevista, Boris Kossoy nos apresenta suas motivações pessoais e o ambiente cultural em que desenvolveu suas pesquisas e reflexões sobre as imagens, em especial, as fotográficas; discute as relações entre o seu trabalho como fotógrafo e sua atuação como pesquisador e contextualiza o momento em que a fotografia ganhou reconhecimento e espaço nas políticas públicas, com destaque para a conservação e preservação das coleções fotográficas.





[Ana Maria Mauad e Maria do Carmo Rainho] O seu trabalho Origens e expansão da fotografia no Brasil: século XIX (Funarte, Rio de Janeiro, 1980) fundamentou uma abordagem para a história da fotografia no Brasil. Como você avalia os desdobramentos da história da fotografia no país desde então?

[Boris Kossoy] Os livros Origens e expansão da fotografia no Brasil: século XIX (Funarte, Rio de Janeiro, 1980) e A fotografia como fonte histórica: introdução à pesquisa e interpretação das imagens do passado (Secretaria da Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia, São Paulo, 1980) derivam diretamente da minha tese de doutorado, intitulada Elementos para o estudo da fotografia no Brasil no século XIX, apresentada em 1979, junto à Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Na época em que foram publicados, à exceção do ensaio precursor de Gilberto Ferrez, “A fotografia no Brasil e um de seus mais dedicados servidores Marc Ferrez” (Separata da Revista do Instituto do Patrimônio Nacional, Rio de Janeiro, 1953), a história da fotografia no Brasil ainda era um tema que não havia despertado interesse por parte dos historiadores. Nesse sentido deve-se sublinhar que foram os colecionadores de imagens quem primeiro se interessaram pela história da fotografia, e entre eles alguns principiaram a sistematizar “categorias”, técnicas e estilos numa perspectiva positivista.

Nos primeiros anos da década de 1970 eu ainda andava num terreno pantanoso em busca de fundamentos teóricos e metodológicos para a compreensão aprofundada da fotografia enquanto fonte histórica e instrumento de apoio e análise (iconográfica) multidisciplinar. Questões teóricas dessa natureza esbarravam em disciplinas circunscritas que não atendiam às minhas indagações. Por tais razões, me dediquei a esse campo de estudos paralelamente às pesquisas históricas. A fotografia como fonte histórica assinala o estágio em que me encontrava naquele momento; seria o embrião das formulações que estavam longe, ainda, de responder às minhas dúvidas e confirmar as minhas certezas.

Os volumes clássicos das “histórias da fotografia” de Helmut Gernsheim, Beaumont Newhall, entre outros contemporâneos ‒ embora úteis pelo manancial de informações que traziam ‒ não me convenciam, pelo tênue vínculo que apresentavam em relação à realidade social, política, econômica e cultural. Prevaleciam, nestes volumes, as mesmas imagens, os mesmos temas, os mesmos fotógrafos e, naturalmente, uma ênfase especial em relação à tecnologia fotográfica, e, quanto a esse aspecto, o exemplo maior é o de Josef Maria Eder, com sua obra de notória importância para a história da técnica fotográfica. Curiosamente, as “histórias da fotografia” sempre se referiram à história desse meio nos grandes centros europeus e nos Estados Unidos. As abordagens clássicas mantiveram a tradição de uma sucessão de fatos, temas e abordagens consagradas numa perspectiva eurocêntrica. Esse foi o modelo estabelecido, o paradigma, que acabou sendo seguido por várias gerações a partir dos anos 40 do século XX. Investigações históricas e reflexões teóricas sobre o meio eram raras; exceções à regra são os textos de Walter Benjamin, que se constituíram em referências definitivas aos estudiosos das imagens, como sua Pequena história da fotografia e A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Por fim, uma perspectiva sociológica para o estudo da história da fotografia, que ia na contramão dos modelos clássicos, é devida a Gisèle Freund (1908-2000), com seu pioneiro ensaio La photographie en France au dix-neuvième siècle, publicado muito mais tarde, em 1974, numa edição revista e ampliada sob o título Photographie et societé. A presença de Gisèle, enquanto fotógrafa e intelectual, no I Colóquio Latino-Americano de Fotografia, realizado na Cidade do México em 1978, encantou todos os participantes daquele evento.

Gostaria de pontuar algumas abordagens metodológicas e temáticas de Origens e expansão da fotografia no Brasil que, acredito, tenham contribuído para essa área do conhecimento, apesar de que, hoje, considero esse livro irreconhecível em muitos de seus aspectos. Uma de minhas preocupações fundamentais era a de buscar compreender em que medida as especificidades políticas, econômicas e socioculturais de determinado momento histórico regeram a evolução da fotografia. Ao contrário dos clássicos modelos da história da fotografia elaborados nos grandes centros, marcados pela tradição episódica, em Origens e expansão da fotografia no Brasil eu reiterava a necessidade de conectar a cena registrada na imagem com o fato que representava, tendo como pano de fundo o momento histórico em que transcorria a ação. Isso significava uma postura conceitual contrária às abordagens estetizantes que sempre marcaram a história desse meio de comunicação e expressão.

Outro aspecto que devo destacar, e que me chamou a atenção nos meus primeiros trabalhos, dizia respeito aos fotógrafos que exerceram o ofício fotográfico no país, assim como suas origens europeias, conforme foi possível determinar pelas pesquisas. Trazer à luz aqueles fotógrafos anônimos da história foi uma meta que me propus a investigar. Isso reforçou minha motivação em estudar em profundidade os manuscritos do francês Hercule Florence (1804-1879), desenhista e inventor que, desde 1833, desenvolvia experiências com materiais fotossensíveis, fato que o levou a uma descoberta independente da fotografia no Brasil e nas Américas, contemporânea às realizações que tinham lugar na Europa na mesma época. A primeira edição de Hercule Florence, a descoberta isolada da fotografia no Brasil data de 1977.

Uma ampliação dos estudos sobre a história da fotografia no Brasil começa a ser observada a partir dos anos 80, principalmente no âmbito acadêmico. Autores como Pedro Karp Vasquez, Ana Maria Mauad, Maria Inês Turazzi, Charles Monteiro, Ricardo Mendes, Sandra Machado Koutsoukos, Claudia Beatriz Heynemann, Solange Ferraz de Lima, Vania Carneiro Carvalho, Ivo Canabarro, Paulo Knauss, Helouise Costa, Maria do Carmo Rainho, Maria Ciavatta, George Ermakoff, apenas para citar alguns, trouxeram notáveis contribuições para esse campo de estudos.

Nas duas últimas décadas, verifica-se uma crescente continuidade desse movimento por parte de jovens pesquisadores que ampliam o espectro de investigações, como se comprova pelos trabalhos acadêmicos que têm sido realizados em nível nacional. A história da fotografia no Brasil nos séculos XIX e XX, assim como a aplicação da iconografia fotográfica como fonte e instrumento de análise em áreas diversas das ciências humanas e sociais, e da arte, ganharam definitivamente seu merecido espaço, seja do ponto de vista historiográfico, seja em sua complexidade teórica e metodológica.

[Ana Maria Mauad e Maria do Carmo Rainho] O historiador da fotografia Michel Frizot reflete sobre os continentes da fotografia, referindo-se às múltiplas “descobertas” da fotografia. Você incluiu o Brasil nessa cartografia de descobertas ao publicar seu livro sobre Hercule Florence nos anos 1980, uma obra reeditada em vários idiomas. Como você analisa o florescimento da atividade fotográfica no Brasil Oitocentista? Seria possível identificar algumas condições específicas para esse fenômeno?

[Boris Kossoy] Antes de entrarmos especificamente na questão, cabe uma palavra inicial sobre as “múltiplas descobertas” da fotografia. Diante do pensamento eurocentrista, uma descoberta dessa importância jamais poderia ocorrer além das zonas centrais da “civilização”, e, além disso, perguntava-se qual a razão de não ser mencionada por cerca de 140 anos?

Uma concepção arejada segundo a qual a fotografia teve “múltiplas paternidades” foi o tema central do colóquio Les Multiples Inventions de la Photographie, realizado em 1988 em Cerisy-la Salle, França, promovido pela Mission du Patrimoine Photographique, sob o patrocínio do Ministère de la Culture et de la Communication da França. Participaram daquele encontro autores de nome como Michel Frizot, autor de Nouvelle histoire de la photographie, em cuja obra dedica cinco linhas e uma nota de rodapé a Hercule Florence e sua descoberta. Isso exemplifica como o eurocentrismo cultural era voltado unicamente ao que ocorria dentro dos limites da “civilização”: ninguém mais além de Nièpce, Daguerre, Fox Talbot e Bayard poderia realizar tal façanha. Para além do continente europeu prevalecia, sim, a curiosidade etnográfica, direcionada do ponto de vista temático ao atraso dos seres inferiores, à selva mágica e ao exotismo de costumes e ritos de povos que habitavam as regiões primitivas do planeta. Anos depois, o sr. Frizot, que não teve a oportunidade de realizar a pesquisa e a comprovação da descoberta de Florence, assistiria, imagino que com certo pasmo, às várias edições do meu livro sobre Florence na França, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos, Espanha e México, primeiro país latino-americano a publicar a obra.

No tocante ao florescimento da atividade fotográfica no século XIX, devo me referir novamente a Origens e expansão da fotografia no Brasil, cuja análise do fenômeno na época (42 anos atrás) ainda me parece consistente.

Nesse livro procurei estabelecer as bases para a compreensão da gradual irradiação que teve a fotografia no Brasil, a partir da conexão desse fenômeno com a estrutura urbana do país, configurada de forma peculiar em função do tradicional sistema colonial de produção. Nessa linha, demonstramos em que medida uma estrutura socioeconômica de características coloniais, calcada na força de trabalho escravo, condicionou um tipo também peculiar de expansão da atividade fotográfica. Essa expansão teve como principal cenário as maiores cidades da costa, Recife, Salvador e naturalmente o Rio de Janeiro, tradicionais portos de exportação de matérias-primas tropicais para o mercado internacional e de importação de manufaturados. Nessa linha foi demonstrada a modesta expansão da atividade no período da daguerreotipia, o carácter itinerante dos “professores” e “artistas” que exerciam o ofício, estrangeiros na sua quase totalidade. Desde os princípios da década de 1840, mas, principalmente, da década de 1860 em diante, é frequente a passagem de fotógrafos itinerantes europeus e norte-americanos por países latino-americanos. Os clientes dos retratistas dos primeiros tempos eram basicamente os representantes da nobreza oficial e da elite agrária, fenômeno que se constituiu num padrão na América Latina.

Na segunda metade do século assiste-se a um desenvolvimento que tem conexões diretas com as transformações econômicas e sociais que tiveram lugar no Brasil naquela época: o processo de urbanização das cidades, o surto da imigração europeia, a forte economia cafeeira e o surgimento gradual de uma classe média urbana. No que tange à tecnologia, a adoção do sistema negativo/positivo e a moda internacional representada pela fotografia no formato carte-de-visite impulsionam fortemente a indústria do retrato fotográfico que, com preços acessíveis, populariza a imagem do indivíduo. A clientela aumentaria sensivelmente em número e há um aumento significativo de estabelecimentos fotográficos por todo o país. Tal ficou amplamente demonstrado em meu Dicionário histórico-fotográfico brasileiro: fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910), publicado em 2002.

É esse o momento da modernização das cidades, em especial o Rio de Janeiro, seguido por São Paulo, e a respectiva difusão internacional de suas novas imagens à semelhança da paisagem urbana europeia. As fotografias de Marc Ferrez, Augusto Cesar de Malta Campos e Guilherme Gaensly serviram notavelmente como veículos de propaganda do projeto republicano de progresso.

[Ana Maria Mauad e Maria do Carmo Rainho] Nas décadas de 1980 e 1990, você foi diretor do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (1980-1983) e da Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo ‒ Idart (1995-1997), em um momento que o debate sobre memória e patrimônio ganharia espaço nas políticas públicas, com destaque para a conservação e a preservação das coleções fotográficas. Quais os desafios que, desde então, temos enfrentado aqui no Brasil?

[Boris Kossoy] A Constituição Federal de 1988 ampliou a noção de patrimônio cultural ao reconhecer a existência de bens culturais de natureza material e imaterial. Insere-se nesse contexto uma valorização da memória fotográfica e cultural, assim como a preocupação com a proteção e com a difusão do patrimônio fotodocumental do Brasil, especialmente no âmbito das instituições públicas. Participam desse movimento arquivistas, historiadores, museólogos, fotógrafos, arquitetos, entre outros profissionais e estudiosos. Não se pode perder de vista, porém, que o desafio da preservação e da conservação do patrimônio fotográfico era apenas um dos desdobramentos de um amplo movimento que ocorria em torno da fotografia.

Os anos 1970 e 1980 demarcam gradativamente o reconhecimento da fotografia como meio de conhecimento e forma de expressão artística. A fotografia ganha espaço e esse fenômeno tem repercussão mundial, a partir dos Estados Unidos e dos principais centros europeus.

Amplia-se notavelmente o número de exposições e surgem as primeiras galerias especializadas, palestras de fotógrafos são solicitadas, matérias críticas sobre a atividade fotográfica na grande imprensa despertam o interesse do público, as revistas de fotografia passam a ser editadas com um novo visual. Os livros ganham espaço, em grande parte voltados à iconografia das cidades. Empresas estatais e privadas percebem que o apoio e patrocínio de obras fotográficas poderiam se constituir num interessante recurso promocional. O ensino ‒ de início timidamente oferecido nas poucas escolas de fotografia ‒ se torna obrigatório nas faculdades de comunicação, jornalismo, arquitetura, design, artes visuais, entre outras, em que as imagens eram objeto de criação e reflexão, em especial no fotojornalismo.

Desde meados do século XX a fotografia vinha ampliando sua presença nos museus. As coleções permanentes de museus como o Museu de Arte Moderna (Nova Iorque) enriquecem seus acervos com obras de importante fotógrafos.

No Brasil, criam-se, na década de 1970, coleções especialmente voltadas ao desenvolvimento da fotografia como manifestação artística e cultural, em particular o Museu de Arte Moderna ‒ MAM (RJ), Museu da Imagem e do Som ‒ MIS (SP), Museu de Arte Contemporânea ‒ MAC (USP), e, naturalmente, o Museu de Arte de São Paulo (Masp), que desde o início dos anos de 1950 promovia a fotografia em suas dependências. Instituições como o Núcleo (depois Instituto) Nacional da Fotografia da Funarte, Photogaleria, Agência F-4, entre outras, além de festivais, colóquios e encontros impulsionaram a manifestação fotográfica em várias regiões do país. Não podemos esquecer da atividade dos movimentos associativos, os fotoclubes que, até a década de 1960, tiveram forte presença entre os fotógrafos amadores.

Pesquisas tendo a fotografia como objeto passaram a ter apoio de agências de fomento e o número de trabalhos acadêmicos foi ampliado consideravelmente em todo o Brasil. Dissertações e teses com a fotografia como objeto da pesquisa ou fonte de informação em diferentes áreas do conhecimento multiplicaram-se a partir desse período e continuaram nesse ritmo através das décadas, até o presente.

Da minha parte, participei de várias etapas desse processo. Menciono algumas instituições em que o foco de minhas gestões foi direcionado para as questões da memória, do patrimônio, da preservação de acervos fotográficos, de exposições e publicações: Departamento de Fotografia do Masp, Comissão de Fotografia e Artes Aplicadas da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, MIS (SP) e a Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo (CCSP), órgão da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Essas instituições valorizaram o emprego da fotografia em diferentes áreas das ciências humanas e sociais. Além dessas vertentes, pesquisas sobre a história da fotografia e mostras fotográficas de expressão pessoal foram igualmente privilegiadas. Devo ainda mencionar que no MIS, não apenas a imagem fotográfica, mas também outras atividades promovidas pelo setor de história oral muito contribuíram para a memória cultural brasileira. Participaram das entrevistas, entre outubro de 1980 e março de 1983, personalidades como Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Gilberto Freyre, Antonio Candido de Mello e Souza, Ruy Mesquita, Adoniran Barbosa, Rubens Borba de Moraes, Benedito Junqueira Duarte, Hans Gunter Flieg, além de cerca de duzentos outros personagens de importante atuação na vida cultural do país como historiadores, sociólogos, cineastas, músicos, artistas plásticos, fotógrafos, esportistas, entre muitos outros. Após quarenta anos, esses depoimentos, gravados segundo uma metodologia de história oral desenvolvida no próprio museu, seguem sendo consultados pela comunidade acadêmica e artística, constituindo-se em fontes primárias para a elaboração de pesquisas em distintas áreas do conhecimento. Espaços climatizados projetados segundo as indicações técnicas necessárias para o armazenamento de acervos fotográficos começaram a ser edificados, sendo o Arquivo Multimeios do CCSP uma instituição pioneira na construção e na instalação de dependências com tais características, isso em 1995.

Acerca de muitas dessas questões sobre memória e patrimônio, é de se mencionar o pioneiro I Encontro de Fotografia e Memória Nacional, que teve lugar no MIS (SP), em 1981, com a presença de instituições envolvidas com a tarefa de preservação do patrimônio nacional. Participaram do encontro a Fundação Getulio Vargas (RJ), a Fundação Joaquim Nabuco (Recife), a Fundação Nacional Pró-Memória (Brasília), o Museu de Porto Alegre, a Secretaria da Indústria e Comércio do Estado da Bahia, a Secretaria Municipal de Cultura (SP), o Museu da Imagem e do Som (SP).

[Ana Maria Mauad e Maria do Carmo Rainho] Dentre os seus trabalhos atuais, encontra-se o projeto Travessias: Enciclopédia de artes, literatura e ciências, que busca inventariar a trajetória de vida e a obra de artistas, intelectuais e cientistas refugiados do nazifascismo no Brasil. Você poderia comentar sobre as pesquisas que vem realizando para o projeto e, mais especificamente, sobre os fotógrafos biografados?

[Boris Kossoy] O projeto Travessias: Enciclopédia de artes, literatura e ciências foi idealizado pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, coordenadora do Laboratório de Estudos de Etnicidade, Racismo e Discriminação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (LEER-USP) e tem como objetivo a construção de uma plataforma digital educacional que favoreça a pesquisa e o ensino a distância com recursos audiovisuais. Travessias terá também uma versão impressa, a ser publicada em volumes temáticos pela Edusp. Trata-se de dois eixos de difusão, cuja proposta é identificar e promover o legado dos artistas, intelectuais e cientistas (judeus e não judeus) que, fugindo das violências praticadas pelo nazifascismo na Europa, encontraram refúgio no Brasil a partir de 1933. A maioria dos refugiados optou por se fixar em São Paulo e no Rio de Janeiro, os principais centros urbanos aglutinadores de imigrantes e irradiadores de cultura e ciência. É obvio que outros refugiados, em menor número, recomeçaram suas vidas em outras localidades como Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba e Recife.

Nossas pesquisas estão direcionadas para a identificação e para o resgate da vida e da obra dos jovens refugiados, futuros fotógrafos e fotógrafas que chegaram ao Brasil após temerárias rotas de fuga, conforme seus países de origem. Essas famílias partiram, em grande parte, da Alemanha, Áustria, França, Hungria, Polônia, Tchecoslováquia e Romênia.

O objetivo da enciclopédia é trazer à tona, por meio dos verbetes biográficos, suas trajetórias, com vistas a proporcionar um amplo campo de pesquisas a ser estudado por pesquisadores interessados no tema. Entre os vários fotógrafos e fotógrafas que serão incluídos nessa obra de referência, citamos: Alice Brill, Hildegard Rosenthal, Claudia Andujar, Hans Günter Flieg, Heinz Joseph (Hejo), Peter Scheier, Gertrudes Altschul, Fredi Kleemann, Ed Keffel, Curt Schulze e Kurt Klagsbrunn.

Os aportes desse grupo de fotógrafos ‒ conforme enfatizamos em várias publicações e junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da USP ‒ foram fundamentais para a consolidação de uma visualidade moderna no Brasil. Isso se reflete nas suas produções fotográficas nas áreas de arquitetura, design, comércio, indústria, retrato, jornalismo, entre outras. Vários deles tiveram como referência a moderna fotografia em curso na Europa.

Quanto ao desenvolvimento dos trabalhos, estamos, neste momento, indicando os pesquisadores, em especial aqueles que já tenham levantamentos sobre determinados fotógrafos e fotógrafas, para assumirem os verbetes biográficos. Acreditamos que Travessias será uma forma de consolidar e divulgar esse legado como patrimônio da arte, cultura e ciência brasileiras.

[Ana Maria Mauad e Maria do Carmo Rainho] Recentemente foi inaugurada mostra retrospectiva de cinquenta anos de sua carreira como fotógrafo. Até que ponto e em que medida o título da exposição, Estranhamento, sintetiza a sua atuação como fotógrafo e a sua forma de examinar as fotografias como historiador e teórico da imagem?

[Boris Kossoy] Devo, de início, fazer um breve reparo quanto à vossa colocação inicial dessa questão. Houve, de fato, uma mostra comemorativa dos meus cinquenta anos de carreira como fotógrafo, mas foi em 2015, a convite da Brasileia Foundation, em Basel, Suíça. Aquela mostra não foi uma retrospectiva, e sim uma revisita às imagens nucleares que predominaram naquele largo período, com o objetivo de ressaltar uma série de grupos temáticos que se repetiam ao longo das décadas, sob diferentes abordagens estéticas. Um livro-catálogo acompanhou a mostra, Imago: entre o aparente e o oculto, de curadoria conjunta com Daniel Faust.

Quanto à exposição Estranhamento (Ostranenie, como conceituou Shklovsky): fotografias de Boris Kossoy, inaugurada em agosto de 2022, e que ainda se encontra em cartaz,1 foi montada no Museu da Fotografia de Fortaleza, com curadoria de Diógenes Moura. O estranhamento ocorre naturalmente na minha obra. Me vejo sempre buscando o mistério nos detalhes aparentemente banais ao observador pouco atento: o olhar triste de manequins que pretendem se humanizar, os parques vazios, as janelas entreabertas de onde nos observam, dentre outros infindáveis temas que podem ocorrer tanto nas ruas como na intimidade do interior das casas, onde o inanimado das paredes, do mobiliário e dos adornos guardam memórias. Busco registrar fatos e cenários das ruas e parques, edifícios e bosques, trazendo à tona detalhes aparentemente sem importância ao olhar comum. Interessa-me interferir na enfadonha normalidade do cotidiano banal. A partir desse ponto, nossa imaginação nos transporta para o terreno da ficção. Sob uma perspectiva teórica, essas imagens podem ser consideradas “documentais”, em função do seu realismo fotográfico. No entanto, o termo documental é ambíguo, pois leva o observador, geralmente, a assumir ou confundir o documental ou o documento com a “verdade”. De que verdade, entretanto, estamos falando? Essa é, talvez, sua primeira e maior ficção.

É necessário compreender a abrangência do termo “documental” quando empregado nos domínios do fotojornalismo e nas ciências humanas e sociais. Devemos ressaltar que o documento fotográfico se refere à aparência ou ao aparente e nossa interpretação é, em geral, direcionada pelo título, legenda e textos que o acompanham. A chamada “fotografia documental” pode ser submetida a tratamentos que dramatizem ou atenuem seus conteúdos, assim como qualquer outro gênero de fotografia. Dos retratos de outrora às selfies de hoje, nos vemos diante de cenários, poses e atitudes criadas. Falamos de realidades construídas que flertam com a ficção. Trata-se de ficções de diferentes naturezas que podem ser encenadas ou impostas ao próprio objeto, como também, habitualmente, o são às imagens. Disso resultam ficções documentais, uma afirmação paradoxal, porém inerente à imagem fotográfica, posto que elas são obtidas por meio de um sistema de representação visual, uma descoberta renascentista que provoca no observador a ilusão de presença do objeto, do personagem, da paisagem. Estamos nos referindo a representações do objeto real, que têm suas realidades próprias. Isso não significa que as fotografias mentem, significa, entretanto, que elas resultam de processos de criação/construção de realidades, razão por que devem ser submetidas a um rigoroso exame técnico-iconográfico e a cuidadosas interpretações multidisciplinares. Desse modo, poderão ser aproveitadas como fontes fidedignas e instrumentos confiáveis para a pesquisa e a reflexão históricas.

Em síntese, toda imagem fotográfica é produzida num dado momento histórico, segundo um processo de criação/construção de realidades, o qual é embasado em intenções, repertório cultural, postura ideológica e preocupação estética de seus autores. Um processo, pois, inerente à construção da representação, desde a concepção do registro e ao longo de sua elaboração posterior. Poderíamos dizer que esse é o paradigma da fotografia.

Retornando ao que tratava antes, o estranhamento e o realismo fantástico, tendências que, não raro, se complementam, marcaram meu caminho, que teve como ponto de partida meus desenhos dos anos 1960, e que prosseguiu por meio da fotografia, através das décadas seguintes.

Minha inspiração para a criação de imagens, assim como para a reflexão sobre as imagens, especialmente no domínio das ciências humanas, se fez através da literatura, do cinema, da arte, da arquitetura e, naturalmente, da história. Em ambas as vertentes de investigação existe uma conexão persistente e não palpável entre o aparente e o oculto, que nos desafia e motiva. Ainda outra conexão a que tenho me referido em diferentes oportunidades, diz respeito aos distintos mundos que envolvem o fato (efêmero), no passado, e a representação (perpétua), sempre no presente; trata-se de uma sobreposição de realidades, raiz de ambiguidades, que ocorrem na imagem fotográfica. Mistérios e histórias habitam as imagens. Nas conexões que existem entre esses elementos reside, para mim, o fascínio pela fotografia. Uma porta comum que se abre para os caminhos da ciência e da arte.

[Ana Maria Mauad e Maria do Carmo Rainho] Por fim, em homenagem ao tema do nosso dossiê, como você avalia a trajetória e o trabalho fotográfico de Marc Ferrez na história da fotografia?

[Boris Kossoy] Marc Ferrez (1843-1923) é, sem dúvida, o grande nome da fotografia brasileira do século XIX e princípios do século XX. A natureza e a paisagem urbana do Rio de Janeiro e de algumas das principais cidades do país, assim como a documentação fotográfica a serviço da Comissão Geológica do Império e da Marinha Imperial, a construção de estradas de ferro, as obras públicas de urbanização no contexto do processo de modernização da capital federal, dentre um amplo leque de temas, foram registradas por esse mestre da fotografia mundial.

As milhares de fotografias produzidas por diversas técnicas fotográficas foram, ao longo de muitos anos, cuidadosamente preservadas e divulgadas pelo neto Gilberto Ferrez. Após a aquisição dessa farta documentação fotográfica pelo Instituto Moreira Salles, a obra de Marc Ferrez ganhou notável repercussão. Exposições, artigos e livros, encontros e debates sobre o conteúdo e a relevância desse material contribuíram para a difusão da obra do mais importante fotógrafo do Brasil. Importa, nessa altura, pesquisarmos por novos dados para o estudo de sua extensa obra, de forma a engrandecermos a dimensão do seu legado.

Menciono aqui minha modesta contribuição ao nome de Marc Ferrez e sua obra num panorama da fotografia no Brasil, publicada no suplemento do centenário do jornal O Estado de S. Paulo, em 1975, momento em que a obra de Ferrez ainda não era amplamente conhecida. Lembro aqui, também, um verbete sobre o fotógrafo na International Encyclopedia of Photography (International Center of Photography, Nova York, 1984).

Entrevista realizada pelas editoras do dossiê “Marc Ferrez: a fotografia como experiência”, Ana Maria Mauad, doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professora titular do Departamento de História da UFF e pesquisadora do Laboratório de História Oral e Imagem (Labhoi/UFF) e Maria do Carmo Rainho, doutora em História Social pela UFF e pesquisadora do Arquivo Nacional.



Nota

1     A exposição esteve em cartaz até fevereiro de 2023.




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