Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 3, set./dez. 2023

Artigos Livres

Trabalho escravo contemporâneo e visualidade

Fotografia e práticas do olhar

Contemporary slave labor and visuality: photography and gaze practices / Trabajo esclavo contemporáneo y visualidad: fotografía y prácticas de mirar

Geovanni Gomes Cabral

Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Professor da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), Brasil.
geocabral@unifesspa.edu.br

RESUMO

O artigo tem como objetivo problematizar, por meio das fotografias de Sérgio Carvalho e João Ripper, o trabalho escravo contemporâneo a partir de imagens do livro Retrato escravo (2010). Busca-se contextualizar a dimensão política e o engajamento ético e social diante da produção que foi encomendada pela Organização Internacional do Trabalho e patrocinada pela Fundação Vale. São fotografias documentais que assumem uma função pública, mediante seus circuitos de produção, agenciamento, circulação e experiências no campo visual.

Palavras-chave: trabalho escravo contemporâneo; fotografia pública; grupo especial de fiscalização móvel.

ABSTRACT

The article aims to problematize, through the photographs of Sérgio Carvalho and João Ripper, the contemporary slave labor based on images from the book Slave portrait (2010). It seeks to contextualize the political dimension and the ethical and social engagement before the production that was commissioned by the International Labor Organization and sponsored by the Vale Foundation. They are documentary photographs that assume a public function, through their circuits of production, agency, circulation and experiences in the visual field.

Keywords: contemporary slave labor; public photography; special mobile inspection group.

RESUMEN

El artículo pretende problematizar, a través de las fotografías de Sérgio Carvalho y João Ripper, el trabajo esclavo contemporáneo basado en imágenes del libro Retrato de esclavo (2010). Busca contextualizar la dimensión política y el compromiso ético y social en la producción que fue encargada por la Organización Internacional del Trabajo y patrocinada por la Fundación Vale. Se trata de fotografías documentales que asumen una función pública, a través de sus circuitos de producción, agencia, circulación y experiencias en el campo visual.

Palabras clave: trabajo esclavo contemporáneo; fotografía pública; grupo especial de vigilancia móvil.

Introdução

No relatório Conflitos no Campo (Motoki et al., 2022, p. 144), obtemos um dado que indica que “o país registrou o maior número de resgatados do trabalho escravo dos últimos 10 anos e o maior número de flagrantes em toda série histórica. No total, foram 2.516 trabalhadores libertados em 268 casos”. Essas informações são constatadas, também, quando passamos a ouvir, ler e visualizar uma série de denúncias sobre a prática do trabalho escravo contemporâneo.1 Os principais jornais em circulação no país passaram a veicular em suas redes sociais e a descrever um cenário de exploração, escravidão e violação aos direitos humanos.

Por exemplo, na página do Repórter Brasil, podemos encontrar as seguintes chamadas: “Noites em porões, almoço na caridade: violações se mantém na serra gaúcha após caso de trabalho escravo”; “Com 139 vítimas na cana, resgate de escravizados é o 3º maior em 5 anos”; “Com 2.500 vítimas em 2022, Brasil chega a 60 mil resgatados da escravidão”; “Maior operação de combate à escravidão do país resgata 337 em 15 estados” (Repórter Brasil, s.d.). Os números crescem a cada operação de enfrentamento e investigação; ampliam-se as estratégias no tocante às contratações, como o uso organizado e coordenado por indivíduos ou empresas, que são chamados de “empreiteiros” (Wenzel, 2023). Formas empregadas para atrair esse quantitativo de homens e mulheres que é conduzido para o trabalho escravo, somadas a promessas de bons salários e garantias trabalhistas. É importante destacar que esse volume expressivo não significa unicamente que aumentou o número de escravizados, mas que houve mais fiscalizações pelo país, inclusive envolvendo grandes empresas nacionais e internacionais, como ressalta Leonardo Sakamoto (2023).

Acessando a página da Organização Internacional do Trabalho (OIT),2 em números globais, no ano de 2021, foram registrados 49,6 milhões de pessoas que viviam em situação de escravidão moderna ou contemporânea; desse total, 28 milhões realizavam trabalhos forçados. Quando olhamos os dados do Brasil, entre os anos de 1995 e 2020, mais de 55 mil trabalhadores foram libertados em condições de escravidão, segundo o radar da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (STI). Um quantitativo alarmante, pelo qual percebemos que o trabalho escravo resiste ao tempo, diante dos “olhos” das autoridades e do grande capital produtivo. Não é uma atividade isolada, de uma região ou estado; está inserida em uma cadeia de produção global de exploração e produtividade. Outra informação desse levantamento é que grande parte desses trabalhadores são homens, na faixa etária entre 18 e 44 anos, e que, desse grupo, 33% são analfabetos. Em termos geográficos, conforme os dados, o território amazônico lidera o quantitativo de casos, ficando o estado do Pará com os maiores registros de violação e exploração, perfazendo um total de oito municípios nessa situação.

As informações anteriores são frutos de investigações e combate por parte de uma equipe de trabalho que busca apurar as denúncias e providenciar o resgate. Nesse contexto, entram em cena os membros da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho, da Polícia Federal ou da Polícia Rodoviária Federal, os procuradores do Ministério Público do Trabalho e os auditores-fiscais do trabalho, que, juntos, compõem o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, coordenado pelo Ministério do Trabalho.

Resgatar trabalhadores não é algo simples, pois exige todo um mapeamento, apurações minuciosas e detalhamento geográfico, que vão desde a denúncia até as ações judiciais finais. Toda essa mobilização exige um direcionamento para que tudo seja devidamente registrado, anotado, documentado, pois cada informação é fundamental aos autos processuais. Parte desses registros são as fotografias, que potencializam, por meio de seu campo visual, leituras dessa atividade compulsória (Brasil, 2011). Elas podem partir de agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), dos auditores-fiscais ou de outros membros da equipe que estão no comando da operação. É nesse contexto que são produzidas imagens fotográficas de homens, mulheres, alojamentos, restos de alimentos, cadernetas de dívidas, local da água para o consumo, espaço onde cozinham os alimentos, entre outros detalhes, com o objetivo, nesse caso específico, de serem somadas no ato do processo criminal e da investigação.

Diante do exposto, procuramos, aqui, analisar fotografias que integram o livro Retrato escravo (2020), de João Ripper e Sérgio Carvalho, para pensar sua dimensão pública e suas múltiplas temporalidades no campo visual, bem como refletir sobre de que forma essas imagens nos ajudam a combater a prática de trabalho compulsório. São fotografias que adquirem um caráter público, que estabelecem uma relação entre os circuitos de produção, circulação e agenciamento (Mauad, 2013, p. 9). Sua visualidade percorre diferentes circuitos e materialidades em livros, revistas, artigos e exposições, em museus ou galerias.

Nesse sentido, a fotografia é percebida como uma experiência social, um filtro cultural marcado pela historicidade construída por meio do/da olhar/produção do fotógrafo e sua recepção em diferentes circuitos sociais. Ela não é a verdade, não é o real, mas adquire uma segunda realidade, com suas camadas no tempo e espaço. Não há como problematizar uma fotografia sem levar em conta a temática, o fotógrafo, as intenções de produção, a tecnologia e a iluminação (Kossoy, 2014). Elementos que nos permitem pensar os respectivos enquadramentos, escolhas, objetivos e estéticas.

Pode-se perguntar: por que trazer as imagens do trabalho escravo contemporâneo para o debate em tela? Que fotografias estão sendo mobilizadas e quem são seus autores? O primeiro ponto a ser respondido tem a ver com as pesquisas que estamos desenvolvendo em torno do trabalho escravo no Laboratório de História Oral e Imagem (Labhori) da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Tal investigação tem como ponto de partida as imagens fotográficas produzidas por fotógrafos que testemunharam, com suas lentes, em diferentes espaços, registros de violação aos direitos humanos e à vida. No segundo ponto, as fotografias que estamos mobilizando encontram-se reunidas no álbum denominado Retrato escravo, que fez parte de um projeto encomendado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), com o apoio da Fundação Vale. A publicação buscou registrar a escravidão contemporânea em diferentes locais do Brasil. Para isso, foram convidados para participar da compilação e do mapeamento o fotógrafo e auditor-fiscal Sérgio Carvalho e o fotógrafo João Ripper.

Seguindo essas reflexões e inquietações, começamos a levar algumas dessas fotografias para a sala de aula, no curso de licenciatura em História da Unifesspa, na disciplina Práticas Curriculares Continuadas. A pretensão foi mostrar como trabalhar com essa fonte documental e explorar seus circuitos de produção. A provocação era poder instigar as/os estudantes para o potencial da fotografia, com uma temática que envolve política, direitos humanos, tráfico de pessoas, violações e justiça. Por outro lado, o fato de estarmos no sudeste paraense já tensionava, por ser uma região marcada por vários conflitos de terra e pela prática de trabalho escravo (Pereira, 2015; Guimarães Neto; Pereira, 2020).

O resultado foi muito significativo, pois percebíamos o envolvimento diante do olhar, as inquietações que a imagem provocava em cada um, histórias eram narradas e a fotografia, como centro, direcionava o debate. Surgiram várias questões e histórias que estavam atreladas ao poder imagético dessas fotografias e aos relatos das experiências de amigos ou famílias que, de certa forma, conviveram com algum tipo de violência atrelada ao trabalho escravo.

As fotografias de João Ripper e Sérgio Carvalho tanto possibilitaram a construção desse conhecimento histórico, por meio da visualidade em torno do trabalho escravo, como permitiram pensar no ato fotográfico — com seus enquadramentos, cores, formas e estéticas — e em toda a produção que norteia o trabalho dos fotógrafos e suas tomadas de decisão no tempo e no espaço. Nesse contexto, foi pertinente a leitura de Georges Didi-Huberman, que apresenta o estatuto da imagem como forma de resistência em seu livro Imagens apesar de tudo (2020), e de Boris Kossoy, em Fotografia e história (2014). E, precisamente na perspectiva de Walter Benjamin (2012, p. 249), quando menciona que “a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas o preenchido de ‘tempos de agora’”, pensar essas fotografias é mergulhar nesses “agoras”, instantes temporais do presente que nos perturbam e incomodam, que exigem leituras, engajamento e envolvimento diante do olhar. As fotografias são apresentadas nesse contexto como um ato político de denúncia, de repúdio a uma série de violações aos direitos de homens e mulheres no campo trabalhista.

Este texto está dividido em dois momentos: no primeiro, faremos alguns apontamentos acerca da importância do livro Retrato escravo, do qual escolhemos as fotografias; no segundo, vamos trazer dez imagens, ampliando nosso leque de reflexões diante desse campo visual. Queremos deixar registrado que as escolhas dessas imagens fotográficas dialogam com as especificações que caracterizam o trabalho escravo, conforme o Código Penal Brasileiro.

Retrato escravo

Composto por 82 fotografias em preto e branco, distribuídas em 140 páginas, medindo 30 cm de largura e 40 cm de altura, o livro Retrato escravo (2010) é um álbum que reúne um conjunto de fotografias de diferentes regiões do Brasil sobre o trabalho escravo contemporâneo. É um trabalho político, ético, artístico e de cunho documental, com os cuidados e a montagem de João Ripper e Sérgio Carvalho. Olhares que nutrem um grito de justiça, de engajamento e de denúncia. Histórias de vidas enquadradas que impulsionam o olhar e seus movimentos, que tensionam o presente e que instigam o passado e suas camadas de tempo. O convite para sua realização partiu da Organização Internacional do Trabalho, como já mencionado, na pessoa da Patrícia Audi, coordenadora do projeto de combate ao trabalho escravo. João Ripper era conhecido pelo trabalho de repórter fotográfico em vários jornais do Rio de Janeiro e por sua atuação junto à Comissão Pastoral da Terra durante a década de 1980. Chegou a registrar movimentos de camponeses, ordens de despejo e trabalho escravo. Já Sérgio Carvalho tinha todo um envolvimento com a temática, pois, desde 1996, integrava o Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, como auditor-fiscal. Foi a partir desse projeto que passaram a estabelecer um diálogo; até então eles tinham se encontrado apenas uma vez. A ideia era produzir um livro comemorativo dos dez anos de combate ao trabalho escravo (1995-2005), mas ele acabou saindo anos depois, em 2010. O ano de 1995, nesse caso, foi escolhido por ser o momento em que o governo brasileiro reconheceu oficialmente a existência de trabalho análogo à escravidão e começou a tomar medidas para seu enfrentamento. Na sua composição, podemos encontrar textos de Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil e de Laís Abramo, diretora da OIT no Brasil na época (Figura 1). Ambos foram convidados com o intuito de escrever, pontuando algumas passagens fotográficas.



Figura 1 ‒ Capa do livro Retrato escravo. Resgate de trabalhadores no Pará, 1999. Fonte: João Ripper. Retrato escravo (2010, p. 73)

Seu lançamento, ocorrido no dia 9 de setembro de 2010, contou com a presença dos fotógrafos, no prédio do Tribunal Superior do Trabalho (TST), com distribuição gratuita para entidades envolvidas com a temática, como jornalistas, estudantes, ONGs e membros dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Muitas dessas fotografias ficaram expostas até 15 de outubro do mesmo ano, seguindo, posteriormente, para o prédio do Ministério do Trabalho (Figura 2). Sua tiragem ficou na casa dos 5 mil exemplares; atualmente, encontra-se esgotado, mas disponível em pdf.3



Figura 2 ‒ Cartaz de lançamento do livro Retrato escravo. Fonte: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_norm/---declaration/documents/event/wcms_145767.pdf


O livro apresenta uma intertextualidade forte, marcada por fotografias que cruzam os horizontes de expectativas e vidas desses autores no campo da palavra ou do visual, como ressalta Leonardo Sakamoto (2010) em um destaque. Ele convida o leitor a tomar uma posição diante dos registros apresentados ― que faz lembrar Georges Didi-Huberman (2017, p. 15). “Para saber é preciso tomar posição”, ou seja, situar-se no presente, tomar decisões políticas, romper barreiras, combater de frente essas ações. Para o autor só há dois caminhos: enfrentar esse tipo de prática escravista ou fazer como muitos, esquecer, deixando a “boiada passar”. Assim, ressalta:

As fotografias aqui mostradas não são imagens, mas uma chamada à ação. Alguns dos olhares perfuram e ficam dentro da gente por um bom tempo. Diante disso, há duas alternativas: tentar esquecê-los, como tem feito a maior parte da sociedade nos últimos séculos. Ou encará-los de frente e ajudar a erradicar de vez essa vergonha. (Sakamoto, 2010, p. 21)

A capa (Figura 1) é ilustrada por uma fotografia de João Ripper, de 1999 ― um resgate de trabalhadores no sul do estado do Pará ―, que também é encontrada no interior do livro. Percebe-se que não se trata de uma simples operação pelo número de homens em fila para regularização dos dados trabalhistas, visando, posteriormente, ao pagamento pelo tempo de serviço em que estiveram na fazenda. Também é possível observar que são homens com idades variadas e que a cena foi registrada no local onde ocorreu, possivelmente, a atuação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel. Notam-se, ao fundo da imagem, algumas árvores, o que sinaliza um local de desmatamento, de agressão ao meio ambiente. O fotógrafo se posiciona de tal forma que os olhares dos trabalhadores se dividem entre o instante do registro e a chamada pelos fiscais do trabalho. Um outro detalhe curioso que o fotógrafo fez questão de destacar é o conjunto de fotografias 3x4, aquelas que geralmente usamos nos documentos oficiais. Em relatos acerca desse registro fotográfico, Sérgio Carvalho ressalta o quanto era importante ter esse tipo de fotografia, para ser anexada à carteira de trabalho. Em seu relato, podemos perceber que esse momento era significativo para o trabalhador.

A foto da capa retrata um momento muito peculiar, nos primeiros anos de combate ao trabalho escravo, em que a evolução da fotografia digital estava no início e a gente não tinha ainda a carteira digital ‒ a carteira de trabalho ‒ a CTPS era física. A foto é de Ripper, no sul do Pará. Quando a fiscalização encontrava trabalhadores em situação análoga ao trabalho escravo era exigido que esses trabalhadores tivessem a carteira de trabalho. O empregador providenciava que viesse um fotógrafo da cidade mais próxima fazer as fotografias deles para a emissão da carteira de trabalho, que era feita pela equipe durante a operação. Então era muito usual vir um fotógrafo da cidade fazer as fotografias na própria fazenda onde os trabalhadores tinham sido resgatados, para que pudessem ter esses retratos 3x4 e para que os auditores pudessem emitir a CTPS, que vinha a ser, muitas vezes, o primeiro documento do trabalhador; era quase um nascimento da cidadania desses trabalhadores que nunca tiveram nenhum tipo de documento. E essa fotografia foi escolhida para fazer um link com o próprio título do livro Retrato escravo, ficou muito bem apropriada pela escolha do título e da foto, foi um casamento. Agora não me lembro se o título partiu da foto, ou a foto foi escolhida pelo título. (Carvalho, 2023)

João Ripper e Sérgio Carvalho, com essa experiência fotográfica e documental, enquadram em suas lentes um olhar humano, mas também político, diante das várias imagens registradas que envolvem o trabalho escravo. Suas vidas e atividades se conectam com essa produção, cada um tem uma ligação com a temática que o direciona para esse engajamento. João Roberto Ripper é fotógrafo autodidata do Rio de Janeiro. Trabalhou em vários jornais, como Luta Democrática, Última Hora e O Globo. Chegou a fundar a Agência F4, em 1985, pela qual registrou vários momentos de violência e conflitos agrários no Brasil. Em 1990, criou, sem fins lucrativos, a Imagem da Terra, uma agência especializada em fotografia documental de denúncia e luta social.

Por sua vez, Sérgio Carvalho é fotógrafo autodidata do Piauí. Auditor-fiscal do Ministério do Trabalho, começou documentando trabalhadores escravizados no Pará e no Centro-Oeste, em 1996. Desde então, vem atuando em diferentes projetos de combate ao trabalho escravo como forma de denúncia e transformação social. Integra o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, o que o permite ter propriedade para falar e combater, na medida do possível, o trabalho escravo. Em entrevista, menciona que “conhecia o trabalho do Ripper. Tivemos um breve contato em 2002, mas foi com esse projeto que passamos a dialogar e estabelecer contatos” (Carvalho, 2023). Muitas das fotografias inseridas nesse livro circularam em diferentes suportes, como capas de livros, revistas, jornais e exposições, assumindo uma dimensão pública.

A combinação desses dois fotógrafos para a realização desse projeto testemunhou violência, lágrimas e sofrimento. Encontraram, também, registros de beleza e esperança nos olhos dos fotografados. Como mediadores desse cenário, produziram fotografias que atestaram múltiplas realidades, silêncios, enquadramentos interpretativos, formas de ver e perceber o outro. As fotos de Sérgio e Ripper são dispostas para mostrar possíveis “realidades” muitas vezes não percebidas, não imaginadas nas diversas fronteiras deste país. Com isso, não estamos deixando de lado os circuitos sociais das fotografias aqui elencadas, e sua dimensão pública para compor esse livro, mas buscando problematizar sua visualidade, seu campo documental.

O livro reúne em suas imagens fotográficas uma realidade que muitos desconhecem, silenciam ou naturalizam como normal. Fala-se em trabalho escravo, no meio rural ou nos centros urbanos, como uma notícia qualquer, sem considerar que esses espaços são permeados de violência e exploração no tocante à vida humana. As fotografias desses registros permitem o encontro com esse presente/passado que se mostra em suas cores, dimensões e materialidade. São fotografias que evocam justiça em sua dimensão política, em sua forma de apresentar e tomar posição. São recortes de realidades que assumem os mais diversos campos interpretativos, mediante seus circuitos de produção e apropriação. Nesse campo investigativo, a fotografia documental, seguindo Margarita Ledo (1998), nos conduz a essa credibilidade estabelecida entre a relação com a tecnologia e a experiência no ato fotografado. São intenções, funções, significados, categorias e suportes tecidos entre o relato, o autor e o espectador.

As fotografias produzidas para compor esse livro tiveram a pretensão de “sensibilizar” pelo olhar, mediante seu caráter de denúncia e engajamento social. Sérgio Carvalho, em entrevista à ONG Repórter Brasil (2010) durante o lançamento do livro, declara: “Acredito que a fotografia, como qualquer forma de expressão, pode e deve servir como instrumento de politização, de questionamentos, de mudança social e de denúncia”. João Ripper, nessa mesma coletiva, ressalta: “Acredito que a imagem ajuda a inverter uma condição que é inaceitável e que é preciso se ver para poder mudar. E é muito bom ver as pessoas sendo libertadas”. Percebe-se, nas palavras dos fotógrafos, a importância que ambos sinalizam para o teor documental que essas imagens representam diante do trabalho executado. Reunir essas fotografias não foi algo fácil, diante das tensões, escolhas e situações de uma realidade pautada pela vulnerabilidade e pelo descarte dos corpos. Corpos que também são políticos, que se mostram para o fotógrafo, para a câmera, que têm gestos, sombras e movimentos. Retrato escravo rompe com o lugar comum, permite deslocar o olhar e ver o outro em uma nova dimensão. Mas, afinal, o que caracteriza o trabalho escravo contemporâneo com o qual estamos dialogando?

De acordo com o Código Penal, artigo 149, essa prática é caracterizada como uma violação ao trabalhador. Quando alguém passa a ser reduzido à condição análoga à de escravo, isto envolve o cerceamento da liberdade (quando o trabalhador tem seus documentos retidos pelo empregador e é proibido de se deslocar a outro lugar); a servidão por dívida (na prática do cativeiro, o trabalhador passa a trabalhar e pagar por uma dívida que não tem fim); e as condições degradantes de trabalho, moradia, vida e alimentação (Cavalcanti, 2020).

Nesse caso, vê-se a degradação da condição humana e a jornada de trabalho acima do permitido. Esses elementos caracterizam o que muitas fazendas espalhadas pelo Brasil, principalmente aquelas ligadas ao agronegócio, fazem quando recrutam trabalhadores, homens e mulheres que estão em busca de uma nova condição de vida e emprego. Pessoas que se veem em condições de vulnerabilidade, fome e desemprego. Os empregadores criam suas estratégias, estabelecem promessas, brincam com sonhos e destroem vidas (Sakamoto, 2020). A sensibilidade e o olhar de Sérgio e Ripper registram essas violações, encontram nos gestos, no cenário do resgate e nos corpos essa representação, esse sintoma social que insiste em existir em nome do grande capital. Essas vidas importam; elas existem e precisam de dignidade, respeito e cidadania.

Práticas do olhar: diante da imagem

As fotografias selecionadas e apresentadas a seguir são alguns exemplos de registros visuais contidos no livro Retrato escravo (2010). Elas são o produto de um filtro cultural, capturado por lentes, ações e intenções desses fotógrafos, que encontraram nesses registros, nessa criação, uma memória, um lugar social de homens e mulheres que se viam em condições de violação de seus direitos humanos. Sua produção está associada a um momento bem específico de combate a essa prática, quando, em 1995, o Estado brasileiro reconhece a existência do trabalho escravo e cria o Grupo Especial de Fiscalização Móvel. Nesse contexto, Sérgio e Ripper percorreram fronteiras das cinco regiões geográficas do Brasil. O resultado foi essa seleção. Importante mencionar que Ripper atuava de forma independente com projetos de cunho humanista; Sérgio, a partir de 1996, passou a integrar o Grupo de Fiscalização, estando atrelado a outros direcionamentos e exigências que não o impediram de mobilizar suas fotografias para múltiplas possibilidades.

A fotografia tem uma história (Kossoy, 2014; 2016; Berger, 2017) e essa história dispõe de um campo investigativo, de uma experiência social e histórica, que se faz presente em seu enquadramento e suas representações. Por meio dessa história, tem-se a representação de uma realidade, um registro fragmentário concebido e materializado, pelo qual os fotógrafos rompem fronteiras e enfrentam desafios, para mostrar um Brasil que carrega um passado/presente ainda pautado por práticas escravagistas.

As fotografias elencadas nesse ensaio apresentam-se como parte integrante de uma cultura visual, que Ulpiano Meneses (2002) denomina de visualidade, por conter “um conjunto de discursos e práticas que constituem distintas formas de experiência visual em circunstâncias historicamente específicas”. Essa produção fotográfica passou a ser um marco nesse tipo de atividade do Grupo Móvel, que capturava as imagens para as comprovações trabalhistas, seguindo as diretrizes do Manual de combate ao trabalho em condições análogas às de escravo (Brasil, 2011). Estávamos diante de uma outra economia visual, a circulação dessas fotografias era restrita às páginas dos jornais, algumas revistas e bancos de dados. O fotojornalismo ditava as regras, com sua independência de produção e circulação de imagens em diferentes suportes.

Diante desse fato, podemos pensar nas mudanças que a tecnologia proporcionou a esse campo visual, como destacam Ana Mauad, Silvana Louzada e Luciano Júnior (2021, p. 224- 225) acerca dos circuitos sociais da fotografia e sua dimensão pública: “A fotografia pública é produzida por agências de produção da imagem que desempenham um papel na elaboração de uma opinião pública (meios de comunicação, Estado etc.)”. Por isso, é preciso ver para mudar, tomar posição, transformar, perceber seus circuitos de produção e circulação. Não é apenas olhar, mas encontrar formas no engajamento político, dialogar com a imagem retratada, acessar suas camadas, perceber o que está dentro e fora do enquadramento (Butler, 2018).

As fotografias dispostas a seguir são exemplos de registros em diferentes atividades do trabalho escravo contemporâneo. São imagens que se conectam entre o olhar e as intenções de produção, narram vidas, sentimentos e emoções. Para cada enquadramento, percebe-se um movimento, uma disposição de luz, cores e liberdade na ação. Vidas que se deixam ser fotografadas, que estabelecem contratos sociais, que se permitem também como corpos políticos. Nessa relação, segundo Ariella Azoulay (apud Oliveira, 2021, p. 3), “a fotografia é o resultado de uma relação social que passa tanto pelo fotógrafo e pelo fotografado, como também entre a câmera e o espectador”. O trabalhador escravo está se permitindo registrar, ele também participa desse ato fotográfico, imprime suas digitais, tempo e experiência. Tem-se uma dimensão de responsabilidade, ética, social e política. Eles, nesse ato, compartilham desejos, silêncios, discursos, narrativas que se tecem em múltiplas intepretações. Sérgio Carvalho e João Ripper nos direcionam para perceber as dimensões desses instantes contínuos, sua mediação entre o suporte e a recepção imagética.

As fotografias relacionadas a seguir sinalizam esse Brasil que retratamos ao longo do texto, marcado pelo trabalho escravo, que se manisfesta em diferentes espaços e estratégias administrativas. Como já mencionado, seu campo visual permite perceber elementos que tipificam o trabalho escravo. No primeiro bloco (Figura 3 A-C), temos um conjunto de três fotografias de João Ripper, de 1999. Uma sequência imagética que está associada a um resgate no sul do estado do Pará, região marcada por conflitos agrários e fazendas com trabalho escravo. Importante destacar que na Figura 3A eles estão em fila, possivelmente para alguma identificação; na Figura 3B, alguns sentados, outros em pé, formam um círculo. Uma mulher sentada a uma mesa improvisada, que, ao que tudo indica, está registrando a carteira de trabalho, por isso as fotografias 3x4 em destaque na Figura 3A. Já a Figura 3C pode sinalizar a saída da fazenda para casa, bem como o momento em que pegaram as roupas no alojamento para se juntar aos fiscais do trabalho. Como eixo investigativo, percebe-se, pelo quantitativo de trabalhadores, que talvez muitos não vissem suas famílias há anos, meses ou semanas, um ponto que pode ser caracterizado como cerceamento de liberdade, item definido no Código Penal, artigo 149.



Figura 3 A-C ‒ Imagens do resgate no sul do Pará, em 1999: conjunto de ações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel. Fonte: João Ripper. Retrato escravo (2010, p. 135)

No próximo bloco, apesar de estarem separadas (Figuras 4, 5 e 6), as imagens sinalizam uma das atividades que mais violam os direitos humanos, que são as carvoarias. Ripper, ao escolher esses registros, estava indo além da captura da imagem; queria mostrar que, além dos adultos, crianças também eram submetidas ao trabalho escravo, negando-se seu direito de infância. Muitas são postas para trabalhar para ajudar a família, sem pespectivas, sem escola; apenas mais um corpo que trabalha, que executa. Na Figura 4, temos o retrato de Sidney Pereira dos Reis, um jovem que sonhava ser jogador; uma imagem forte diante da expressividade de seus olhos e da forma como segura a ferramenta de trabalho. Sem campo de futebol, sem brinquedos ou escola, com o corpo sujo, marcado pelos riscos do carvão. Assim como ele, tantos outros são encontrados em diferentes situações.

Na Figura 5, temos a representação de uma família, o destaque é o olhar do filho para o pai, segurando seu dedo, passando uma espécie de confiança, segurança, cumplicidade diante do fotógrafo. Encerrando esse conjunto, temos na Figura 6 um registro de uma carvoaria, ambiente inóspito, sinalizando alta temperatura, com vários fornos para a queima da madeira, em uma região já totalmente desmatada. O homem ao centro, de bermuda e sem camisa, mostra a vunerabilidade e o descaso com a vida por parte do empregador. São perceptíveis as condições degradantes de trabalho e as jornadas exaustivas ― a fotografia dialoga com essas questões.



Figura 4 ‒ Carvoaria, Mato Grosso do Sul, 1988. Fonte: João Ripper. Retrato Escravo (2010, p. 113)

Figura 5 ‒ Carvoaria, norte de Minas, 1985. Fonte: João Ripper. Retrato Escravo (2010, p. 17)

As fotografias desse livro direcionam nosso olhar para entedermos e problematizarmos o desmatamento, a ação predatória e destrutiva de muitos espaços do território amazônico. A monocultura de grãos lidera e modifica imensas paisagens de florestas, dando lugar a um vazio, alterando o bioma existente. Na Figura 7, Sérgio Carvalho registra dois homens que foram resgatados na prática de desmatamento; podemos observar, em seu entorno, a floresta destruída, com seus galhos e troncos retorcidos, cortados e queimados. Sérgio procurou, nessa imagem que circulou em livros e artigos, destacar o local onde eles bebiam água, ponto bastante fotografado nos registros e observações do Grupo Móvel. É comum, nesses locais, não haver água potável; muitos bebem água do riacho mais próximo, no mesmo local onde os animais tomam banho e são cuidados.



Figura 6 ‒ Carvoaria, Mato Grosso do Sul, 1998. Fonte: João Ripper. Retrato Escravo (2010, p. 55)

Figura 7 ‒ Desmatamento, Maranhão, 1998. Fonte: Sérgio Carvalho. Retrato Escravo (2010, p. 70)

Nas fotografias abaixo (Figura 8 A-B), podemos visualizar as condições de moradia desses trabalhadores resgatados. Locais degradantes, sem a menor possibilidade de sobrevivência. Muitos desses barracões são cobertos por lona, plástico ou palhas de coqueiros, abrigam vários trabalhadores, dormindo no chão, em pedaços de colchões, sujeitos a picadas de insetos e toda sorte de agravos. Cada resgate tem sua particularidade, mas esse tipo de alojamento é muito comum na maior parte das operações, principalmente quando ocorre em fazendas distantes. Seduzidos pela promessa de um bom trabalho, com esperança de ajudar a família, muitos homens se deixam levar e acabam nas mãos de fazendeiros, gatos (aliciadores) e pistoleiros. Com a vida ameaçada, os documentos confiscados e recebendo ameaças, a saída, nessa situação, em muitos casos é fechar os olhos e seguir. Esperar que em algum momento algo aconteça, alguém consiga escapar, fazer a denúncia e, quem sabe, ser libertado. Acerca das denúncias, o professor Ricardo Rezende Figueira (2021) organizou um livro que corresponde a quatro décadas de depoimentos de fugitivos e libertos. São relatos de abusos, violências, descrições de assassinatos e abusos psicológicos. Muitos dos registros e violências eram praticados em propriedades rurais, que recebiam financiamento da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Trata-se de uma pesquisa primorosa, contendo 839 depoimentos de 1.262 pessoas. Tais informações fornecem elementos para entendermos muitas dessas imagens fotográficas que estamos analisando.



Figura 8 A-B ‒ Alojamentos de trabalhadores em condições degradantes. Pecuária, Pará (A) e Extração de madeira, Paraná (B). Fonte: Sérgio Carvalho. Retrato Escravo (2010, p. 86; 103)

Conhecer o livro e problematizar suas imagens fotográficas é procurar analisar sua produção e recepção, e sua forma de agenciamento, o que Ulpiano Meneses (2002) chama de “biografia da imagem”. Uma espécie de cartografia da imagem, em suas diversas formas de circulação e recepção. Elas nos contam, sinalizam indícios, apontam fios diante de seu tecido imagético (Kossoy, 2016). Nessa análise, é importante estranhar o que se olha, o que não está dito e o que se faz presente nas cores, intenções e vidas precárias. Não estamos apenas visualizando uma fotografia qualquer, mas corpos, rostos, vidas que foram submetidas a condições de trabalho forçado e que se viram impedidas de romper as relações de poder estabelecidas.

João Ripper e Sérgio Carvalho permitem ir além desses enquadramentos imagéticos e trazem um problema para ser enfrentado diante de uma exploração e da acumulação de capital voltado para práticas de exploração da força de trabalho escrava, principalmente nas fronteiras da Amazônia. As fotografias dispostas no livro representam um estatuto documental singular, dotado de informações e códigos, que se conectam em múltiplas representações políticas e culturais. Dialogam, nesse sentido, com Imagens apesar de tudo (2020) de Georges Didi-Huberman, que analisa quatro imagens fotográficas do horror nazista, capturadas pelo “comando especial”, formado por judeus, no campo de concentração Auschwitz-Birkenau, em momentos de desespero, tensão e medo. Em suas argumentações, o autor mostra que essas fotografias representam uma resistência de cunho político contra o extermínio judaico. Menciona que são “imagens apesar de tudo: apesar de nossa própria incapacidade de sabermos olhar pra elas como mereceriam, apesar do nosso próprio mundo repleto, quase sufocado, de mercadorias imaginárias” (Didi-Huberman, 2020, p. 11).

Apropriando-se dessa interpretação, as fotografias do Retrato escravo seguem nessa direção, no olhar que converge para a denúncia e a resistência contra uma atividade ilegal de violação das leis trabalhistas. As fotografias de João Ripper e Sérgio Carvalho carregam em sua materialidade esse potencial político, esse engajamento social, que nos convidam não apenas para olhar, mas para perceber seus sentidos, seus posicionamentos sociais, seu valor histórico. A fotografia vem como um “grito de alerta”, para que possamos olhar “além das dores e das injustiças sociais”.

Segundo Ana Maria Mauad (2018a), esse conjunto fotográfico assume uma função pública, em um espaço público de debate e formação. Argumenta que sua função não é pública porque as imagens foram publicizadas ‒ nesse caso reunidas em um livro ‒, mas por terem no espaço público e social seu lugar de registro. Nesse sentido, utiliza a categoria de fotografia pública para problematizar os circuitos sociais dessa fotografia, sua propagação, circulação, consumo e exposição, envoltos na cena pública e em recursos técnicos. A fotografia da obra Retrato escravo torna-se pública para assumir essa postura política, para circular, dar visibilidade às experiências dos sujeitos históricos nela representados. São imagens que possibilitam pensar nesse Brasil, marcado por tantas contradições no enfrentamento ao trabalho escravo. Para cada olhar, uma intepretação, uma forma de pensar nas condições desses trabalhadores escravizados.

Considerações finais

Neste artigo, procuramos apresentar o potencial imagético das fotografias de João Ripper e Sérgio Carvalho, reunidas no livro Retrato escravo. A obra é fruto de um trabalho encomendado pela Organização Internacional do Trabalho, com o objetivo de comemorar os dez anos de combate ao trabalho escravo. Não era uma comemoração de festas e fogos, mas se deu por meio do campo visual, com retratos do trabalho escravo e suas múltiplas representações. Dois fotógrafos com experiências distintas, mas com olhares humanistas e foco na fotografia documental. Sérgio, auditor-fiscal membro do Grupo Especial de Fiscalização Móvel; Ripper, fotógrafo com larga experiência no fotojornalismo e com um trabalho investigativo ligado à Comissão Pastoral da Terra. Seus olhares e intenções no ato fotográfico permitiram esse conjunto de fotografias, todas em preto e branco, mostrando diversas formas de violência e conflitos no tocante à escravidão contemporânea. Percorrendo muitos estados brasileiros, em várias operações de resgate, conseguiram mostrar violações nos campos da agropecuária, extração da madeira, carvoaria, cultivo da cana-de-açúcar e desmatamento, além de revelar o lado sensível e humano de homens e mulheres vítimas da exploração.

São imagens de vidas roubadas, silenciadas, negligenciadas, de homens e mulheres que, levados por gatos (aliciadores) ou por promessas de trabalho, conheceram o lado perverso da exploração humana. Uma cadeia produtiva em larga escala, ocupando grandes áreas de terras, em uma lógica capitalista de produção. O livro foi indicado como um dos melhores de 2010 pelo Internacional Photobook Festival e recebeu menção honrosa, em 2023, no festival latino-americano de fotojornalismo Poy Latam; por essas informações já percebemos o teor de compromisso e engajamento em cada registro e enquadramento. Trazer para o debate essas imagens fotográficas não teve o intuito de exaltar a qualidade desses dois fotógrafos ― isso já está claro ―, mas de problematizar os circuitos sociais que elas permitem pensar. São fotografias de cunho documental, de um engajamento ético e político, que nos possibilitam pensar em múltiplas realidades que se apresentam no campo da escravidão contemporânea. Podemos visualizar a escravidão doméstica, a degradação nas carvoarias, a violência do trabalho infantil, o registro de um olhar cheio de esperança, o trabalho forçado do desmatamento, a vulnerabilidade dos corpos que se deixaram fotografar e se comunicar por cada gesto e intenção. A câmera fotográfica foi o elo dessa comunicação.

A fotografia do livro Retrato escravo é a “fotografia desse Brasil que escraviza”, e sua linguagem está tecida por práticas, intenções, denúncias, gritos, digitais, marcas no olhar: tão presentes em cada resgate, em cada liberdade. Não é uma fotografia para apenas olhar. Ela nos convida a ir além de sua materialidade, de seu campo visual. Portanto, a obra é uma forma de resistência, de denúncia; é um apelo às autoridades frente às diversas formas de exploração humana que ainda persistem em várias regiões do país. Trazer para a sala de aula essas imagens e problematizá-las é permitir uma educação histórica de enfretamento, engajamento e posicionamento ético e político.

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Recebido em 6/12/2022

Aprovado em 6/7/2023


Notas

1 No tocante a esse campo de estudo e investigação, tem-se uma vasta bibliografia que congrega pesquisadoras e pesquisadores de diferentes instituições, que se mantêm na luta contra esse tipo de exploração laboral. Ver: Sakamoto (2020), Guimarães Neto e Gomes (2018), Figueira, Prado e Galvão (2019) e Figueira (2004).

2 Organização Internacional do Trabalho. Trabalho forçado. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-escravo/lang--pt/index.htm. Acesso em: 10 nov. 2022.


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