Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 1, jan./abr. 2023

Espaços urbanos e metropolização no Brasil (1940-1970) | Dossiê temático

Historicizando a governança informal

Historicising informal governance / Historizando una gobernanza informal

Brodwyn Fischer

PhD em História pela Harvard University. Professora no Departamento de História da University of Chicago, Estados Unidos.

bmf@uchicago.edu

Resumo

Este artigo explora o significado histórico da informalidade urbana, entendida tanto como um modo de urbanização quanto como um elemento-chave em histórias mais amplas de desigualdade racial, governança e luta social. Analiza a relação entre a informalidade urbana e três importantes fios históricos: a evolução da governação racializada, a coexistência tensa do poder privado e do poder público, e o entrelaçamento contraditório da luta social e da desigualdade.

Palavras-chaves: favela; história urbana; desigualdade racial; informalidade.

Abstract

This article explores the historical significance of urban informality, understood both as a mode of urbanization and as a key element in broader histories of racial inequality, governance and social struggle. It analyzes the relationship between urban informality and three important historical threads: the evolution of racialized governance, the tense coexistence of private and public power, and the contradictory interweaving of social struggle and inequality.

Keywords: favela; urban history; racial inequality; informality.

Resumen

Este artículo explora el significado histórico de la informalidad urbana, entendida tanto como un modo de urbanización como un elemento clave en historias más amplias de desigualdad racial, gobernabilidad y lucha social. Analiza la relación entre la informalidad urbana y tres importantes hilos históricos: la evolución de la gobernanza racializada, la tensa coexistencia del poder público y privado, y el entretejido contradictorio de la lucha social y la desigualdad.

Palabras clave: favela; historia urbana; desigualdad racial; informalidad.

Desde suas origens conceituais no campo de estudos do trabalho não regulamentado nos anos 70, o termo “informalidade” foi ampliado para descrever uma gama enorme de fenômenos urbanos, muitos dos quais têm raízes históricas muito mais profundas do que a palavra em si. Mesmo que estreitemos a categoria ao urbanismo informal (o processo pelo qual as cidades são construídas e ocupadas fora da esfera do direito e da regulamentação estatal), o campo conceitual é complexo e contraditório. O urbanismo informal tem sido entendido como uma epistemologia, uma prática, uma categoria jurídica e uma forma de governança. Analistas e ativistas o representam como uma demanda insurgente pela cidadania, um esvaziamento clientelístico de formas democráticas, ou um modo de governança que integra uma variedade de práticas políticas.

Os teóricos questionam se a prática da informalidade urbana é a iniciativa criativa e resistente dos pobres, ou uma ferramenta do colonialismo e da dominação. A informalidade tem sido habitualmente identificada desta forma com interpretações aparentemente incompatíveis, podendo ser um estado de carência ou uma forma vernácula de valor, um triunfo dos mercados desregulamentados ou um desafio ao capitalismo, um modo de marginalização racializada ou um espaço de resistência negra. Em alguns contextos, os estudiosos associam iterações específicas de informalidade à governança criminal e vêem neles uma capacidade igualmente assustadora de simbiose com estruturas de poder existentes.1

Por mais caóticos que possam parecer, os longos debates sobre estas questões geraram um certo grau de consenso acadêmico entre os estudiosos da América Latina (Valladares, 2008; Fischer, 2014; Varley, 2013; Connolly, 2017). A informalidade urbana é tanto uma epistemologia quanto um conjunto de práticas que compartilham certas características em todos os lugares. A informalidade é heterogênea em sua geografia, composição de classes e política. Ela se desenvolve em simbiose com – e não apenas em oposição a – roteiros clássicos de modernização (desenvolvimento, democratização, cosmopolitismo, burocratização, capitalismo). A construção informal de cidades é uma norma em vez de uma exceção; a informalidade, em vez de planos urbanos idealizados e arranha-céus brilhantes, constitui o modo fundamental de urbanismo no mundo inteiro (Robinson, 2006).

Esse consenso convive, entretanto, com um influente universo paralelo de denúncia, alarmismo e prescrição. No âmbito da política, a informalidade continua sendo retratada principalmente como uma aberração, ligada a uma lista longa de conjunturas e crises contemporâneas, incluindo o neoliberalismo, o populismo, a criminalidade, a corrupção, o racismo e o desinvestimento do Estado. Esses pontos de vista influenciam muito a opinião pública e a política governamental, alimentando iniciativas que vão desde políticas de policiamento violento e remoções em massa até codificações dos direitos à cidade, programas de regularização fundiária, ou iniciativas habitacionais mistas, tais como Minha Casa Minha Vida (Cunha; Silva Mello, 2011; Cano, 2012; Machado da Silva; Menezes, 2019; Magalhães, 2013; Fernandes, 2013; Rolnik, 2013, 2015; Gonçalves, 2009; Kopper, 2016). Embora muitas vezes travadas em oposição ideológica, todas essas iniciativas compartilham a noção – antitética ao consenso acadêmico – de que no Brasil a construção informal de cidades é um “problema” discreto que pode ser resolvido por uma “solução” política adequada.

Essa disjunção entre os estudos acadêmicos e a percepção pública decorre parcialmente do fato de que a informalidade urbana não é geralmente entendida como um fenômeno histórico. Durante grande parte do século XX, a maioria dos cientistas sociais, planejadores e ativistas assumiram que a informalidade urbana ainda não tinha uma história: ela teria surgido apenas como um efeito colateral da urbanização do século XX e do desenvolvimento incompleto; a ideia da informalidade pode ter sido interessante como uma construção epistemológica ou uma ferramenta ideológica, mas a realidade da favela ou do mocambo era um desafio empírico para economistas, urbanistas ou políticos resolverem.

Mais importante ainda, os próprios historiadores – muitas vezes constrangidos pela falta de fontes de arquivo ou por roteiros históricos estreitos – não reconheceram que a informalidade é parte integral da história; que ela constitui um modo essencial de sobrevivência, governança e vida econômica, constitutivo da história urbana e das histórias da democracia, do liberalismo, do direito, da raça e da desigualdade. Se a informalidade não tivesse uma história antes de meados do século XX, e se não tivesse tido relação com processos históricos maiores, seria de fato lógico entendê-la como um problema discreto mais bem resolvido por políticas institucionais específicas.

Um fluxo recente de estudos tem discordado da noção de que a informalidade urbana não tem uma história, separando de forma útil o uso do termo “informalidade” do conjunto muito mais antigo de práticas que a compõem. No Brasil, os estudiosos têm estudado a “favela” como um componente da sociologia das ideias e têm explorado a relação das favelas, subúrbios e periferias com o direito e a cidadania. Também já começaram a elaborar cronologias históricas mais profundas dos movimentos sociais e políticas públicas que moldaram a cidade informal (Abreu, 1994, Zaluar; Alvito, 1998, Gominho, 1998; Silva, 2005; Valladares, 2005; Holston, 2008; Fischer, 2008, 2014; Mello et al., 2012; Gonçalves, 2013; McCann, 2014). Este conjunto de pesquisas nos permite traçar elementos centrais da informalidade (racialização, autoconstrução, urbanização extralegal, uso da tolerância como ferramenta de poder, lutas subalternas pela permanência urbana e cidadania) ao longo do tempo histórico.

No entanto, os teóricos da informalidade contemporânea raramente têm contemplado essa pesquisa. Mais significativo ainda, a questão de como a informalidade faz parte da história, como os historiadores a entendem, permanece não apenas sem resposta, mas também sem ser reconhecida. Alguns teóricos situam iterações específicas da informalidade brasileira em trajetórias mais longas de capitalismo e de cidadania insurgente (Castells, 1983; Harvey, 2008; Holston, 2008). No entanto, poucos historiadores integram a história da informalidade em narrativas mais amplas de formação do Estado, desenvolvimento econômico, liberalismo, democracia ou gênero. Estudiosos que remontam ao início do século XX notaram as raízes afro-brasileiras e o caráter das favelas ou mocambos. No entanto, estamos apenas começando a entender seu papel nas histórias de abolição, governança racial, racismo, resistência e agência negra (Nascimento, 1989; Perry, 2013; Campos, 2005). Em importantes obras de síntese histórica, a informalidade aparece fugazmente, principalmente como parte da história do último meio século e com referência ao samba, clientelismo, migração, miséria, violência ou política habitacional (Schwarcz, 2018; Luna; Klein, 2014).

Ananya Roy defendeu que a informalidade é um “modo” ou um “idioma” de urbanização para a Índia (Roy, 2005, p. 148; 2009, p. 80), no qual o poder de determinar o que é formal ou informal se torna uma ferramenta-chave na política e na governança. Por mais poderosa que essa visão seja, ela requer historicização; devemos entender como a informalidade moldou as histórias mais amplas da construção do Estado, da cidadania, do direito e da desigualdade. As pesquisas reunidas neste volume são a prova de que os estudos avançaram significativamente, mas ainda estão em seus estágios iniciais.

Este artigo sugere caminhos para promover uma historicização ainda mais profunda, explorando a relação entre a informalidade urbana e três importantes fios históricos: a evolução da governação racializada, a coexistência tensa do poder privado e do poder público, e o entrelaçamento contraditório da luta social e da desigualdade. Embora os meus argumentos sintetizem os resultados de três décadas de investigação histórica em Recife e no Rio de Janeiro (Fischer, 2008; Fischer, 2014; Fischer, 2020), este artigo tem como principal objetivo reconceitualizar a informalidade de forma a estimular a investigação histórica futura.

Juntamente com Castells e Portes (1989, p. 15), defino a informalidade como qualquer processo urbano “de outra forma lícito” que “ocorre fora das proteções e exigências da lei estatal oficial”. Prestando especial atenção à forma como a linha entre urbanismo formal e informal tem sido historicamente traçada para produzir a informalidade em contextos cotidianos, defendo que o direito brasileiro, desde o seu início, naturalizou uma versão da urbanidade que era economicamente inviável e incompatível com as formas populares de habitar a cidade. Ao agravar a pobreza com o estigma da ilegalidade, e ao canalizar desproporcionalmente os afrodescendentes para sistemas de relações de poder urbano que lhes negavam tanto a cidadania como os recursos públicos, as práticas jurídicas e regulamentares urbanas perpetuaram a desigualdade racial, minaram a legitimidade da governança liberal, e canalizaram o ativismo social em direções que, embora muitas vezes emancipatórias, perpetuaram também profundas desigualdades.

A minha análise reforça o venerável argumento de que a informalidade é a “solução” mais eficaz ainda concebida para a injustiça urbana (Mangin, 1967). O urbanismo informal resolve necessidades urgentes, fornece uma incubadora de solidariedade comunitária e mobilidade social, e proporciona às pessoas marginalizadas um espaço de autonomia, agência e resistência. No entanto, também reforça práticas altamente injustas envolvendo direito, governação e distribuição de recursos públicos. Mais perversamente, a necessidade de proteger a urbanidade informal canaliza a energia política e social dos residentes para a defesa das próprias formas de governança urbana que impulsionam a sua marginalização cívica e econômica. A informalidade é, nesse sentido, uma “solução” eficaz tanto para os privilegiados como para os marginalizados.


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No Rio de Janeiro, as pessoas sempre viveram sem direitos de propriedade legal em casas e bairros autoconstruídos. Mas o fenômeno específico que eu anacronicamente denomino como “informalidade” surgiu na belle époque, quando os letrados começaram a excluir do imaginário urbano moderno as casas dos pobres e afrodescendentes e quando os tecnocratas começaram a conceber assentamentos autoconstruídos como espaços fora da esfera da regulação pública.

No outono de 1903, um cronista anônimo – talvez João do Rio – publicou o primeiro relato impresso do local que deu o nome às favelas brasileiras.2 O título deu o tom: “Na favela. Trecho inédito do Rio de Janeiro, a morada dos gatunos e desordeiros”.3 A partir daí, a fábula desdobrou-se no estilo clássico do flâneur. Chegando à base do morro da Providência – o morro da “favela”, uma das várias colinas que segmentavam o núcleo colonial do Rio – o autor encontra uma figura mística, um “prudente cavalheiro” que lhe dá uma dica sábia: “Se tens coragem, vai lá acima. Eu fico. Muito cuidadinho com a pele. Adeus!”.

A partir daí, o repórter entra numa “aldeia” que é “toda outra. Subindo caminhos íngremes, bordados de “águas empoçadas”, ele vê “uma porção de trabalhadores, de vagabundos por entre nuvens de poeira, cosendo-se às casas sórdidas e mal alinhadas. Faz um sol forte, um sol que parece mais quente derramado assim naquela poeira, naquelas pedras, naquela gente”. Em busca dos “mais terríveis malandros do mundo” e das suas “mulheres tremendas”, ele encontra “negras maltrapilhas, moleques desnudos, e tipos suspeitos”. Ele passa por “indescritíveis” habitações, casas “feitas de bambu entrelaçado com barro, tendo por teto pedaços de folha de flandres seguros com pedras”. O ar está cheio de súplicas e miasmas. “É impossível imaginar que ali, no centro da cidade, habite gente tão estranha, e com uma vida tão própria”.

Mas o espanto do flâneur cresce quando se dá conta de outro detalhe: o morro da favela é governado. Não é, claro, governado por autoridades devidamente estabelecidas. É gerido por “administradores” locais, que dividem o morro em quatro distritos e cobram “chão” aos moradores em troca de “proteção” e policiamento moral. Funciona, lhe assegura um senhor. Aqui “só há rolo em família, os homens que batem nas mulheres”.

No pico do morro, não é bem assim: aqui, ao lado de um cruzeiro colocado pela Santa Casa de Misericórdia, existe uma terra de ninguém, onde “não há polícia que não seja derrotada”. Essa parte do morro se chama “favela”, não – como a lenda posterior diria – por causa de uma planta do Nordeste, ou por conta de soldados que regressavam da Guerra de Canudos, mas em homenagem ao morro baiano que foi testemunha das batalhas mais sangrentas da Guerra de Canudos. Aqui tem “pardas amasiadas, negras velhas parteiras e curandeiras, duas mulheres da vida”. “As pândegas começam com violão e acabam à navalha”.

Aqui também tem “ordem,” que o flâneur mais uma vez descobre com assombro: em vez de prender os desordeiros, o delegado local contrata os “capoeiras” para “prestar serviços” ao público urbano.4 Para completar a inversão, os “desordeiros” do lugar mostram imenso orgulho da sua “cidade”: “Todos a que falamos respondem, apontando as fétidas baiucas, ‘temos a nossa casa!’”.

Quando o nosso flâneur sai do morro, se encontra novamente com o “cavalheiro prudente”. “Vivo?”. “Inteirinho”. “Foste feliz, homem”.

O que podemos aprender dessa primeira crônica do morro em que nasceu a favela? Lendo o texto na contramão da sua intenção, percebemos as possibilidades emancipatórias da cidade informal. A favela é um espaço negro – uma cidade negra – onde as práticas médicas e espirituais são afrodescendentes, a música é sincopada, e cada palavra falada é um duplo sentido (Chalhoub, 1990; Farias, 2006). É também um espaço multirracial, onde coexistem diversas cores e etnias. É uma esfera autorregulada, em que os residentes estão inseridos em regimes alternativos de propriedade, moralidade e disciplina. É um espaço de orgulho, que já encontrou as suas próprias formas de ligação e de acomodação à ordem urbana normativa.

No entanto, lido de forma diferente, esse artigo prefigura temas que se repetiriam ao longo de mais de um século de descrição negativa e sensacionalista (Valladares, 2005). O autor evoca um assentamento atávico e alheio ao mundo civilizado, que se assemelha ao Belo Monte de Euclides da Cunha não só porque resiste à civilização, mas também porque a corrói.5 No entanto, ali estava, a meros quarteirões da rua do Ouvidor. O flâneur reconhece que há moradores de todas as cores, mas ele racializa a favela como negra – capoeira, pândegas, curandeiras – e marginaliza a negritude como suspeita, retrógrada e degenerada. As mulheres e crianças estão doentes e abandonadas, os homens são abusivos, criminosos ou ausentes. A favela está isolada da cidade normativa – da sua economia, da sua língua, da sua política, do seu regime estético – e a pobreza da favela constitui uma “cultura” própria. Esse é, acima de tudo, um lugar que precisa de ajuda urgente, é uma emergência, é um sintoma de calamidade (Fischer, 2014; Roy, 2011).

Desde pelo menos os anos 1930, estes “mitos da marginalidade” têm levado uma vida dupla – sistematicamente desmascarados, racionalizados e contextualizados, mas também cada vez mais entrincheirados no imaginário público (Perlman, 1976; Fischer, 2014). Por baixo da sua superfície encontram-se dois pressupostos que requerem uma análise mais aprofundada. Primeiro, o nosso cronista retrata o morro da Favela como um lugar atávico, um fragmento retirado de uma fase anterior da evolução humana. Mas a favela não tem a sua própria história. É, nesse sentido, uma presença alheia no espaço histórico – uma invasão que rasga o tecido normativo da evolução urbana. Em segundo lugar, a favela é um espaço de alteridade histórica – um espaço “à parte”, saturado com “aquele” pó e “aquelas” pessoas – insignificante quer para as narrativas históricas brasileiras, quer para os roteiros “universais” do “moderno sociológico” (Adams et al., 2005; Chakrabarty, 2007). Esses são lugares sem história que não desempenham qualquer papel histórico. O que quer que aconteça ali é contrário – e não constitutivo – à ordem dominante.

Esses fios argumentativos, como os mitos da marginalidade, atravessam muito do que já foi escrito sobre as favelas. Mas, nas últimas décadas, têm-se tornado cada vez mais desgastados. Uma leitura diferente da história das favelas leva a cronologias e causalidades alternativas, e também a compreensões distintas de como a governação informal tem evoluído como parte essencial da história moderna.


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A ideia de que a urbanização informal constitui uma “invasão” é frequentemente repetida no cânone global do urbanismo. Encontramos histórias precoces de fugitivos, soldados e libertadores que lideraram as colinas do Rio; histórias épicas de migração rural-urbana de meados do século XX em toda a América Latina; e histórias globais de “invasão silenciosa” de finais do século XX (Bayat, 2004), periferização (Simone, 2010; Holston; Caldeira, 2008; Caldeira, 2016) e ocupação (Boulos, 2018). Embora sejam muito diferentes, essas histórias partilham um arco narrativo comum. Cronologicamente, propõem que a cidade “formal” – que é na verdade a cidade formalizada pelas elites adeptas à manipulação da lei – é a cidade normativa. A informalidade dos pobres pode surgir através de uma invasão insurgente, de negociações clientelistas, ou de uma ocupação de fato, mas ela representa uma corrupção de uma cidade que já foi estabelecida. Após um período de luta e negociação, os assentamentos informais podem ser erradicados ou gradualmente incorporados ao tecido formal da cidade, ou podem seguir num estado instável de tolerância ou “indulgência” (Holanda, 2017).

Desde meados do século XX, os historiadores têm questionado muitos aspectos dessa história. Estudiosos da arquitetura e do planeamento urbano argumentam que a cidade autoconstruída existia desde as origens do urbanismo ibero-americano (Connolly, 2017). A clássica grade quadrada no coração das cidades espanholas, ou mesmo a formação mais sinuosa típica do Brasil, foi sempre a “cidade” do europeu, o letrado, o abastado, o católico (Morse, 1962, 1984, 1992; Hardoy, 1975; Rama, 1984; Cope, 1994).

Tanto no Brasil como na América espanhola, esse “sonho de ordem” (Rama, 1984) foi cercado por periferias mestiças e interrompido por aldeias indígenas ou mocambos habitados por escravos fugidos e afrodescendentes livres, espaços que podemos agora interpretar como extensões do quilombo, uma geografia de resistência que é aparente apesar do seu apagamento nos arquivos oficiais (Campos, 2005; Carril, 2006; Poets, 2016). Os europeus dependiam desses espaços autoconstruídos para trabalho e tributo, mesmo quando os excluíam da cidade letrada;6 nesse sentido, a sua “marginalidade” era tanto um mito na época colonial como seria no século XX (Perlman, 1976). No entanto, “o urbanismo colonial espanhol baseava-se num duplo critério em que disposições legais muito precisas sobre quem deveria viver onde, e como, existiam mais em representação do que na realidade, legitimando ao mesmo tempo a segregação da periferia desordenada do centro formal de elite” (Connolly, 2017, p. 28). A função da lei era a de tornar normativa uma ordem exclusiva que as elites não podiam impor no mundo real.

O urbanismo informal nunca foi uma relíquia do passado colonial; continuou no ápice do planeamento eurocêntrico na belle époque (Abreu, 1994; Vaz, 2002; Gonçalves, 2013; Fischer, 2008, 2021, 2020; McDonald, 2019; Holston, 1987; Pereira Francisco, 2013; Gominho, 1998).

No Rio, existiam casebres na maioria das colinas centrais no final do século XIX e os cortiços e zungus eram muitas vezes autoconstruídos e praticamente indistinguíveis das favelas (Santos, 2006). Escravizados, dependentes e inquilinos construíam habitações nos quintais dos seus senhores, e as casas rústicas abundavam nas áreas suburbanas. Em 1933 – mais de uma década antes das migrações maciças de meados do século que trouxeram as favelas ao centro do palco nacional e internacional – um quarto das casas do Rio eram “rústicas”, pois a grande maioria não tinha acesso a ruas pavimentadas ou a serviços urbanos básicos, e todos os bairros continham barracões (Brasil, 1935).

No Recife, os mocambos e casas de taipa eram contados nos censos e mapeados informalmente pelos engenheiros municipais; eles compreendiam a maioria dos domicílios até meados do século XX. Em Belo Horizonte, a informalidade nasceu com a cidade planejada na belle époque. Longe de constituir um legado colonial em declínio ou uma resposta de emergência à migração massiva de meados do século XX, a informalidade era um modo essencial de urbanismo. Não invadiu a cidade; era a cidade, desde o início.

Contudo, a informalidade tem um significado específico em relação à governança e aos direitos à cidade, um significado que tem pouco a ver com a autoconstrução em si. O nosso flâneur do Rio foi impressionado pelas cabanas rústicas do morro da Favela. Mas o que tornou as favelas “informais” não foi o fato de terem sido construídas pelos seus moradores na contramão dos planos urbanos ou normas arquitetônicas. Foi antes o fato de que, tal como o flâneur colocou o morro fora da cidade letrada, as normas que governavam a habitação, a saúde, os serviços e a propriedade no Rio colocavam as habitações pobres e autoconstruídas que já existiam fora da esfera legal da cidade.

Nos últimos anos do Império e nas primeiras décadas da República, os direitos e privilégios associados à cidade expandiram-se rapidamente; ser urbano era desfrutar de ruas pavimentadas, água canalizada, esgotos, gás, eletricidade, policiamento. Implicava também o acesso seguro aos direitos de propriedade (Abreu, 1988). Mas, simultaneamente, as restrições legais que impediam o pleno acesso à cidadania urbana foram reforçadas (Melo, 1985; Benchimol, 1990; Meade, 1997; Fischer, 2008, 2021, 2020; Gonçalves, 2013).

Os direitos de propriedade exigem títulos de propriedade, garantidos por herança ou transação pública. As casas só poderiam ser legitimamente possuídas e ocupadas quando estivessem em conformidade com códigos de construção e de saúde cada vez mais rigorosos. Apenas habitações legalmente sancionadas poderiam reclamar serviços públicos, e a falta de tal habite-se poderia constituir motivo de remoção. As casas “insalubres” foram proibidas, primeiro na cidade central e eventualmente em qualquer lugar. O policiamento protegeu os bens legalmente possuídos e os cidadãos “honrados”, mas reprimiu as formas de vida e culturas populares e afrodescendentes e raramente proporcionou proteção adequada àqueles que as autoridades consideraram indignos (Holloway, 1994; Cunha, 2002; Caulfield, 2000; Fischer, 2008). Com o tempo, quase todas as metrópoles brasileiras criaram uma densa teia de regulamentos de propriedade, saúde, construção e segurança que tornou ilegal grande parte da cidade. A novidade histórica – a invasão – não veio da cidade autoconstruída. Foi produzida pelas leis que tornaram informal a habitação que albergava uma parte significativa da população.7


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Assim como a cidade letrada colonial, as cidades formalizadas nunca funcionaram como tal. Em meados do século XX, quando as grandes migrações rurais atingiram o seu auge, as cidades eram governadas por estatutos de saúde pública, regulamentos de construção e códigos penais que a maioria dos habitantes urbanos não cumpriam. Planejadores urbanos apresentavam planos diretores impraticáveis; plantas da cidade mapeavam a cidade formal como se estivesse rodeada de espaço vazio; cartórios apenas reconheciam direitos sobre propriedades com títulos, deixando enormes áreas de ocupação informal numa zona cinzenta. Os censos enumeravam meticulosamente as pessoas, casas, ruas e empresas que se encontravam na esfera formal, mas a cidade informal permanecia uma caixa preta (Fischer, 2021). Ao produzir um espaço jurídico fictício e homogêneo, as autoridades municipais apagaram elementos essenciais das cidades que habitavam.

Por muito pouco excepcional que isto possa parecer – não só para os brasileiros, mas para todos os residentes urbanos ao redor do mundo que normalizaram estados de exceção no que diz respeito às leis que regulam o trânsito, a imigração, o comércio de rua, e os sem-abrigo – ainda vale a pena perguntar: Por quê? A maioria dos belle époque brasileiros teria reconhecido os casebres do morro da Favela; eles eram onipresentes em pequenas cidades, subúrbios e interstícios urbanos em todo o Brasil, parte do tecido residencial. Por que a pretensão de que eram estranhos a ponto de constituírem uma emergência social? Quem poderia se beneficiar de um regime jurídico tão distante da realidade da vida urbana, e porque é que o estado liminar da informalidade se revelou tão duradouro através de conjunturas históricas e econômicas tão díspares?

Um século de investigação acadêmica oferece-nos algumas respostas. O espírito eurófilo das classes profissionais desempenhou um papel importante: advogados, engenheiros, funcionários da saúde pública e arquitetos seguiram a “ciência” mais avançada das suas disciplinas, quer esses preceitos fossem ditados pelo sanitarismo do século XIX, quer pelo modernismo do século XX (Chalhoub, 1996; Benchimol, 1990; Lima; Hochman, 1996; Holston, 1987). Esses imperativos ganharam força devido à posicionalidade global do Brasil: as cidades eram postais para o mundo, essenciais para atrair migrantes, investimento e capital cultural. Mesmo que a “cidade legal” fosse uma ficção, ela serviu como um cartão de visita e um alvo aspiracional, prova de que o Brasil pertencia à rede global do urbanismo civilizado. Ao mesmo tempo, dado que as cidades brasileiras não tinham recursos públicos abundantes e queriam investir capital escasso no desenvolvimento econômico, a informalidade oferecia uma saída política e econômica. Sem legitimar as favelas ou investir recursos públicos em comunidades informais, os políticos poderiam aproveitar a sua existência para evitar os custos da legalidade, baixar o custo da mão de obra, e aliviar as múltiplas pressões para soluções mais abrangentes (Fischer, 2021).

A informalidade também beneficiou os políticos de forma mais direta. Podiam ganhar votos concedendo “favores” clientelistas, favores que continuavam a ser o único recurso disponível para aqueles que não tinham direitos à cidade. Podiam também parecer heroicos por defenderem os ocupantes informais da remoção, sem pagar os recursos públicos e as proteções a que os cidadãos tinham direito (Machado da Silva, 1967; Perlman, 1976; Leeds; Leeds, 1977; Portes, 1979; Conniff, 1981; Fischer, 2008, 2019). Em todas essas formas, a informalidade coevoluiu com o neocolonialismo, o desenvolvimentismo e o oportunismo político.

No entanto, por muito que essas histórias expliquem, deixam muitas perguntas sem resposta. A informalidade ainda pode ser lida como um fenômeno que existe fora das temporalidades históricas, como se fosse uma adaptação circunstancial ou uma infeliz externalidade de processos históricos que ocorreram fora do lugar. Nessa perspectiva, o urbanismo informal é o que aconteceu enquanto o Brasil se desenvolvia, enquanto acumulava recursos para a redistribuição social, enquanto evoluía para uma democracia mais verdadeira. O urbanismo informal não fazia parte de uma forma duradoura de governança, não era um elemento constitutivo da desigualdade sociorracial, tinha pouco a contribuir no longo arco da história.

O que acontece quando se aprofunda a análise histórica, examinando a intersecção da informalidade com as histórias da desigualdade racial, do poder privado, do liberalismo e da luta social?


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Comecemos pela forma como o urbanismo informal se enquadra na longa trajetória da governação racial indireta, que raramente marginaliza a negritude através de métodos grosseiros como a cidadania racial explícita, o linchamento, ou a segregação, confiando antes em formas exageradas de impacto díspar e exclusão silenciosa (Cottrol, 2013; Fischer; Grinberg; Mattos, 2018).

A construção informal de cidades no Brasil nunca foi uma prática exclusivamente negra. No Rio, a única cidade para a qual temos dados raciais, cerca de um terço da população favelada era “branca” ao longo do século XX (Fischer, 2008). No entanto, pelo menos nos primeiros anos, os assentamentos informais eram quase universalmente entendidos como espaços negros (Rolnik, 1989; Fischer, 2020). Tal como o nosso flâneur de 1903, os primeiros cronistas ou analistas das favelas do Rio ou dos mocambos do Recife sempre destacaram os habitantes negros, a música negra, a religião negra ou as práticas de cura negras. Ligaram a arquitetura dos mocambos e casebres à África, e caracterizaram as favelas como um atavismo africano. Os comportamentos que eram criminalizados nos assentamentos informais derivavam frequentemente de práticas afrodescendentes de resistência, política, família e sexualidade.

Algumas das primeiras favelas tiveram origem em quilombos; mais tarde, foram habitadas por pessoas livres que podem ter preferido a autonomia de um barracão “com uma porta e uma janela” a uma existência dependente e monitorizada dentro das grandes casas urbanas (Freyre, 2004). A música popular brasileira, e especialmente o samba, exalta a negritude das favelas e periferias, criticando a brancura mesmo quando apela superficialmente à ideologia da mestiçagem. Embora a retórica em torno da informalidade se tenha tornado menos racializada com a ascensão do marxismo e das ideologias da “democracia racial”, nas últimas décadas a política da negritude ressurgiu com força nas favelas, como fonte de solidariedade dentro das comunidades e como justificação para a violência e discriminação praticada por estranhos.

Dada a associação da informalidade à negritude, vale a pena ponderar o fato de que a informalidade surgiu – ou foi problematizada – na época precisa em que o Brasil aboliu a escravidão. Que fique claro, não havia nenhum feiticeiro por detrás da cortina, não há indicação de que aquilo a que agora chamamos informalidade tenha sido inventado explicitamente para perpetuar a discriminação racial. Pelo contrário, pode-se argumentar que os espaços informais eram berços significativos da cultura e política afro-brasileira. Na medida em que a informalidade permitiu às pessoas libertadas estabelecerem-se em espaços urbanos onde teriam maior acesso a oportunidades educativas e econômicas, o urbanismo informal facilitou o acesso à cidadania e à mobilidade. No entanto, essa oportunidade foi circunscrita, e a informalidade também perpetuou pressupostos profundamente racializados sobre a distribuição natural da cidadania urbana e dos recursos públicos.

Por um lado, as percepções racializadas da cidade informal justificavam a sua suspensão fora das temporalidades históricas: segundo o dogma racista, os afrodescendentes eram antimodernos, antiurbanos e psicologicamente brutalizados pela escravatura; era natural – de acordo com essa mentalidade – que ocupassem um espaço urbano liminar e fungível (Backheuser, 1906; Brasil, 1949; Lira, 1999; Fischer, 2020). Ao mesmo tempo, a decisão de negar aos construtores informais de cidades qualquer dos benefícios concretos do investimento público e da proteção (a capacidade de acumular capital com base na propriedade e na valorização dos serviços urbanos; o direito à saúde através do saneamento público; as oportunidades comerciais que surgiram com a pavimentação, a eletricidade e os transportes; o avanço educacional proporcionado pelas escolas públicas) canalizou os recursos públicos para os setores mais brancos da população e praticamente assegurou o agravamento da desigualdade urbana ao longo do tempo. Para fechar o círculo, o estigma dado à informalidade pela ficção da cidade legal também causou danos desproporcionais aos afro-brasileiros, acabando por justificar a sua exclusão e marginalização (Nascimento, 1989; Alves, 2018).

Os decisores políticos sabiam disso; em Recife, os engenheiros chegaram mesmo a descrever os mocambos como “cabanas de negros” quando os rabiscavam nos mapas de planeamento oficiais (Pereira Francisco, 2013). É quase irrelevante se alguém se propôs explicitamente a circunscrever a mobilidade e riqueza afrodescendente através da informalidade: ao longo do tempo, esse foi o efeito real. Nesse sentido, a informalidade deve ser entendida não só como um espaço de mobilização e oportunidade para os afrodescendentes – embora fosse isso –, mas também como uma afterlife urbana de escravatura, um mecanismo de subinvestimento e privação de direitos que teve um impacto intencionalmente desproporcionado sobre os afrodescendentes, perpetuando assim as desigualdades da servidão.


***

O fim da escravatura não foi a única transformação histórica que coincidiu com a emergência da informalidade. Muitas vezes pensamos na escravatura em termos formais, como a mercantilização legalizada dos seres humanos. Mas no Brasil, centenas de milhares de indivíduos foram ilegalmente escravizados após uma lei de 1831, que proibiu o comércio de escravos que, no entanto, continuou (Chalhoub, 2012; Mamigonian, 2017). Faz assim sentido compreender a escravatura brasileira menos em termos de lei do que em termos de soberania: como uma condição em que os indivíduos estavam sujeitos à autoridade privada, privados do recurso à autoridade institucional ou à esfera dos direitos. A abolição, assim vista, foi uma enorme expansão da jurisdição pública; um avanço fundamental na profunda luta histórica sobre as fronteiras entre autoridade pública e poder privado na vida nacional brasileira (Buarque de Holanda, 1936; Freyre, 2004; Leal, 1949; Matta, 1985; Carvalho, 1997).

Podemos também compreender essa luta em parte como uma disputa em torno das condições prévias de acesso à cidadania plena. Tal como em tantas novas nações, muitas das questões fundamentais da vida política brasileira do século XIX giram em torno de quem seria justamente considerado sujeito e agente da governação liberal (Viotti da Costa, 2000; Carvalho, 1987). As Constituições tanto do Império como da República concediam direitos iguais a todos os que se enquadravam na esfera da cidadania política. Mas quem eram essas pessoas, exatamente? E o que asseguraria uma agência igual e independente para todos os cidadãos? Enquanto a raça em si mesma era notavelmente excluída como condição prévia de cidadania política, a escravização, a posse ou não de propriedade, o local de nascimento, a condição de dependência, o sexo, a idade, e a alfabetização foram consagrados como princípios de exclusão. E tais debates formais apenas arranharam a superfície.

Num país largamente rural, em que o Estado nacional não dispunha de recursos adequados e as redes privadas de poder habitavam e dominavam as instituições locais, a governança raramente era “pública”, mesmo nas formas circunscritas ditadas pelo direito constitucional. É agora um verdadeiro truísmo compreender a longa história da governação no Brasil como um constante e violento cabo de guerra entre um modelo de poder essencialmente patrimonial e relacional – uma extensão do tipo de autoridade exercida pelos proprietários de plantações sobre a sua extensa teia de mulheres, escravizados, dependentes e inquilinos – e um modelo de autoridade pública que sujeitaria todos a um Estado de direito expansivo e igualitário.

A tensão entre o poder público e o poder privado era especialmente acentuada nas zonas urbanas. Nas cidades, mesmo as pessoas sem direitos políticos poderiam ter um acesso surpreendentemente amplo ao poder estatal. A existência de uma esfera pública expansiva e a rivalidade amarga entre redes concorrentes abriram espaço para a agência popular e mesmo para a cidadania, e o acesso mais amplo à educação diminuiu o impacto excludente dos critérios de alfabetização para o voto. Para os mestres das casas grandes (literais e figurativas), a perpetuação do domínio patriarcal e patrimonial – das pessoas, dos recursos, ou dos mecanismos de governação – tornou-se cada vez mais difícil com a rápida urbanização após o final do século XIX.

É útil compreendermos a informalidade nesse contexto. A construção da cidade legal delineou a geografia do poder público. A cidadania urbana – o direito à cidade – existiria apenas dentro dos limites da lei. Fora dessa esfera, a cidade informal não era apenas um terreno de luta, mas também uma “zona de graça”, uma esfera em que a lei podia ou não ser aplicada, de acordo com critérios relacionais e conjunturais.8

As zonas de graça perpetuam o poder patrimonial; os seus residentes estão sujeitos a regras arbitrárias e privadas, sem recurso direto às proteções da lei ou da cidadania. Tais imposições poderiam ser quase comicamente literais, como num bairro do Recife, onde um “dono” local chamado Mostardinha impôs a sua própria “Constituição” a todos os residentes dos “seus” terrenos na década de 1930 (Fischer, 2020). Mas as zonas de graça também incubavam uma forma precoce de governação por exceção (Agamben, 2004), que era fundamental para manter e expandir o poder público num contexto em que a sua legitimidade era amargamente contestada. Assim, as zonas de graça fragmentam silenciosamente a autoridade do Estado, a fim de a manter. O papel dos agentes do Estado nem sempre era o de governar diretamente, mas sim o de negociar constantemente os limites do poder público, que pode expandir-se e retrair-se com flexibilidade, de acordo com o equilíbrio da força política e econômica e com o objetivo de manter o domínio público.

Assim entendida, a construção da cidade legal e o nascimento da informalidade tornam-se mais legíveis. A informalidade permitiu (e continua a permitir) que as autoridades urbanas retratassem as cidades brasileiras como esferas de governação pública, apropriando-se simultaneamente do poder de conceder graça (sob a forma de isenção das proteções e exigências da lei), facilitando assim a especulação imobiliária e evitando conflitos diretos sobre a jurisdição do poder público. Tal entendimento permite-nos historicizar a governação informal como uma possível resolução das tensões entre o poder público e o poder privado, que tanto fizeram para moldar a história do Brasil. Concede-nos também uma compreensão mais profunda da lógica pela qual as cidades definiram e mantiveram a informalidade.


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A informalidade brilha mais na história dos movimentos sociais brasileiros do que nas histórias das dinâmicas raciais e do liberalismo. Os mocambos do Recife constituíam uma resistência urbana à escravatura e à vigilância branca (Freyre, 2004) e algumas favelas modernas podem traçar as suas raízes diretamente aos quilombos do século XIX (Poets, 2016). As favelas do Rio adquiriram o seu nome devido à sua feroz resistência à vigilância oficial; no século XX, faveladas e favelados defenderam vigorosamente as suas reivindicações territoriais e as suas lutas inspiraram sonhos e receios revolucionários (Trindade Lima, 1989; Silva, 2005; Fischer, 2008, 2014b; Amoroso, 2015).

Os loteamentos informais de São Paulo incubaram a “cidadania insurgente”, e as periferias do século XXI afirmam a sua própria lógica moral e econômica contra a hegemonia da cidade global neoliberal (Holston, 2008; Feltran, 2019). A reforma agrária, que já era uma exigência negra importante na era da abolição, continua a ser um sonho não realizado. Mas as conquistas territoriais da informalidade urbana são notáveis: uma invasão não tão silenciosa que tem resguardado o acesso urbano durante gerações.

No entanto, a associação da informalidade à resistência pode ser enganadora (Varley, 2014). Quando Manuel Castells estudou os movimentos sociais urbanos da América Latina na década de 1970, estava originalmente à procura de revolução, mas em vez disso encontrou a “cidade dependente”, caracterizada pela “submissão forçada à boa vontade do Estado”, “uma cidade sem cidadãos” (Castells, 1983, p. 212). As suas conclusões fizeram eco a uma geração de sociólogos, cientistas políticos e ativistas que tinha notado não só a mentalidade aspiracional e assimiladora de muitos residentes informais, mas também a sua integração a sistemas de poder e favor que sistematicamente restringiam o seu potencial revolucionário (Stokes, 1962; Turner, 1968; Mangin, 1967; Machado da Silva, 1967; Cornelius, 1975; Portes, 1971, 1972; Perlman, 1976; Leeds; Leeds, 1977).

Se desviarmos o nosso olhar do potencial revolucionário do urbanismo informal e nos concentrarmos antes nos processos políticos e econômicos que têm assegurado a sobrevivência da informalidade ao longo do tempo, o significado dessas descobertas torna-se evidente. O Brasil tem a legislação mais avançada do mundo em matéria de direitos à cidade e os residentes informais têm exigido o reconhecimento oficial dos seus direitos de propriedade desde pelo menos os anos 1920 (Fischer, 2008, 2020; Silva, 2005). Mas poucas dessas exigências e garantias foram concretizadas, em grande parte devido ao enorme abismo entre a lei e a sua atualização. Mesmo quando as comunidades informais são produtos de uma invasão coletiva ou são defendidas por coalizões politicamente progressistas, e quando existem esquemas de “regularização”, a legalização continua a ser a exceção, a igualdade de direitos perante a lei é ainda mais rara, e mesmo as comunidades criadas dentro da esfera da lei muitas vezes acabam em novos estados de informalidade (Fernandes, 2010; Gonçalves, 2009).

Os residentes constroem informalmente as suas casas porque não podem se dar ao luxo de se conformarem com a urbanidade formal, ou porque não faz sentido fazê-lo; o estatuto legal é demasiado caro ou demasiado tênue, e a segurança residencial é muitas vezes mais bem assegurada por negociações privadas, conduzidas fora da esfera jurídica, mesmo quando as pessoas envolvidas são agentes públicos. Esse tipo de segurança depende de alguém dar permissão, de alguém desviar o olhar, de alguém aceitar subornos, de alguém defender a informalidade das exigências da lei.

O que podemos aprender dessa história é que as favelas e outros bairros informais sobreviveram através do engenhoso assemblage de interesses contraditórios (Richmond, 2018), que se unem não para alcançar direitos, mas sim para perpetuar zonas de graça. A família que não pode pagar aluguel formal, o grileiro que procura lucrar com terras das quais não é dono, o político que procura comprar votos sem gastar dinheiro, o morador que economiza recursos preciosos por não pagar impostos ou taxas de serviço municipais, até mesmo o líder comunitário que consegue acumular mais propriedades informais do que um esquema de legalização lhe concederia: todos esses atores estão unidos não em um desejo de adquirir status legal, mas no desejo de perpetuar a informalidade. Longe de constituir (só) uma forma de resistência ao poder, a prática da informalidade tem historicamente fortalecido uma forma sui generis de integração hierárquica, exigindo a participação comum dos poderosos e dos marginalizados em redes de negociação privadas que esvaziam a lei.

Também nesse aspecto, o urbanismo informal faz parte de uma história mais profunda. A persistência tenaz das desigualdades raciais e sociais no Brasil deve-se muito ao fato de que muitos dos mais potentes avanços emancipatórios na história do país foram alcançados por meios que – contraditoriamente – também perpetuaram a arquitetura da hierarquia e da desigualdade. A história da escravidão e das dinâmicas raciais fornece, mais uma vez, um modelo útil. Ao contrário dos sistemas escravocratas nos Estados Unidos, que endureceram a subjugação racial no século XIX, proibindo a manumissão e traçando rígidas linhas de cor, os escravizadores brasileiros abriram propositalmente espaços de flexibilidade dentro do sistema escravo (Chalhoub, 2012). A manumissão não era de forma alguma assegurada, mas era um sonho realizável, geralmente através de grande sacrifício e luta, a uma porcentagem minúscula dos escravos que conseguia chegar a acordos privados com seus senhores.

Em meados do século XIX – décadas antes da abolição – a maioria da população afrodescendente já era livre. Da mesma forma, enquanto as elites brasileiras mantiveram violentas hierarquias racistas, elas também deixaram espaço para laços afetivos e profissionais entre pessoas de diferentes raças e permitiam a alguns indivíduos afrodescendentes uma precária isenção do estigma da cor ao subir a escada socioeconômica (Grinberg, 2002; Guimarães, 2019; Alberto, 2018; Andrews, 2018). Como resultado, embora a liberdade e a ascensão condicional fossem sempre raras, sua possibilidade existia – realizável, crucialmente, não só através de resistência, mas também por meio de conexão fictícia e da negociação privada. Ainda assim, muitos brasileiros enfrentaram abertamente o racismo e a escravidão, e muitos mais continuaram a se opor ao domínio senhorial mesmo quando se valiam dos mecanismos relacionais (Hanchard, 1994; Machado, 1994; Butler, 1998; Gomes, 2006; Alberto, 2018; Castilho, 2016; Grinberg, 2002). Essa espécie híbrida de resistência produziu ganhos reais: a grande maioria dos escravizados conquistou ou ganhou sua liberdade antes da abolição, e muitas pessoas de cor tinham mais oportunidades no início do século XX no Brasil do que nos Estados Unidos. No entanto, o preço dessas conquistas foi uma resistência menos tenaz às estruturas de poder patriarcais e às hierarquias raciais. A abolição podia ser ficticiamente reconstruída pelas elites como um ato de graça, não uma conquista, e a ideologia da brancura permaneceu intacta, mesmo quando alguns afrodescendentes puderam – tênue e condicionalmente – se beneficiar de uma ética de silêncio racial (Mattos, 2006).

Os paralelos com a informalidade devem ser claros. Para os moradores, o urbanismo informal é uma vitória; pessoas que nunca poderiam ter se dado ao luxo de urbanismo legal reivindicaram e ocuparam enormes e valiosas faixas de terra urbana, criando comunidades duradouras, criativas e resilientes. Como as manumissões do século XIX, esses ganhos devem ser reconhecidos em seu pleno valor. No entanto, como a liberdade incompleta que emergiu da abolição, a informalidade, paradoxalmente, tem fortalecido redes de graça e favor que minam a possibilidade de governança democrática a longo prazo, e a posse territorial assim conquistada ainda é desprovida de igual acesso aos recursos e proteções públicas. Mesmo no melhor dos casos, essa é uma luta social na qual as vitórias consistem em tolerância e incorporação desigual – o “direito” precário de viver em uma zona de graça ou em um gueto legal, sem acesso pleno aos recursos públicos que beneficiam o asfalto.


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O urbanismo informal na maior parte do Brasil é como uma maré; ele flui e reflui, uma das muitas modalidades possíveis de urbanidade, encorajado, tolerado ou suprimido em função do ativismo político, dos ciclos econômicos, e do capital imobiliário. No entanto, embora maleável, a informalidade não é estranha à ordem urbana, e não funciona em oposição à hierarquia ou ao poder. Entendida historicamente, a informalidade é um componente essencial de formas sinuosas de governança, dominação racial e acomodação social, que condicionou o surgimento de formas liberais e democráticas à tolerância do poder privado e tornou a cidadania condizente com uma hierarquia duradoura.

O urbanismo informal é essencial para os negros, pobres e marginalizados porque permite a sobrevivência material, a agência urbana e algum grau de autonomia. A informalidade é essencial ao urbanismo brasileiro em sua adaptabilidade, sustentabilidade ambiental e capacidade de cultivar e canalizar criatividade, ambição, engenhosidade e solidariedade. Um século de movimentos sociais, meio século de “urbanização” e quatro décadas de inovações legais – da usucapião à concessão de uso especial para fins de moradia (Cuem), das zonas especiais de interesse social (Zeis) ao Estatuto da Cidade de 2001 – entrincheiraram características nascidas no urbanismo informal como uma solução para muitos desafios inquietantes.

Mas se concebemos a informalidade como uma dinâmica de poder, sua natureza problemática ressurge. A construção informal da cidade naturaliza um sistema pelo qual as autoridades governam através da usurpação do poder de traçar a linha entre autoridade pública e autoridade privada, transformando assim a legitimidade pública e os recursos públicos – o próprio direito de fazer parte da esfera pública democrática – em bens políticos, a serem distribuídos com base em lógicas personalistas e patrimoniais.

Parece essencial, num momento em que o radicalismo institucional da democratização pós-1988 está sob tal ameaça, examinar criticamente uma forma de insurgência que se entrelaça tão facilmente com a história da desigualdade no Brasil. Os assentamentos informais, em sua essência, são uma solução. Mas a informalidade – como forma de alteridade legal – permanece como um problema, cujo remédio não está nas novas leis, mas no desmantelamento de um sistema de governança que depende da perpetuação da legalidade como uma forma de privilégio privado.

Este artigo foi originalmente publicado em Contemporary Social Science: Journal of the Academy of Social Sciences, v. 17, issue 3, 2022, com o título “Historicising informal governance in 20th century Brazil”. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/21582041.2021.1919748. Acesso em: 19 dez. 2022.

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Notas

1    A pesquisa internacional sobre informalidade é muito vasta para ser reconhecida aqui, mas as ideias neste parágrafo se baseiam diretamente em Araujo (2019), Brillembourg (2005), Cardoso (2016), Castells; Portes (1989), De Soto (1986), Feltran (2011, 2019), Gilbert (2002, 2012), Grubbauer (2019), Harvey (2012), Holston (2007), Machado da Silva (1967), Mehrotra (2008), Mitchell (2005), Nascimento (1989), Perry (2013), Robinson (2006), Roy (2009, 2011), Roy; AlSayyad (2004), Turner (1968), Varley (2013) e Willis (2017).

2    João do Rio (Paulo Barreto) começou a escrever para a Gazeta de Notícias em maio de 1903, no mesmo mês em que este artigo foi escrito, e existem semelhanças estilísticas com trabalhos subsequentes, principalmente “Os livres acampamentos da miséria” (Barreto, 1911). Rafael Cardoso (2021) tem mais dúvidas sobre a autoria de Barreto.

3    Gazeta de Notícias, 21 de maio de 1903.

4    O repórter liga explicitamente as capoeiras à monarquia, reavivando a retórica antinegra que era comum nas últimas décadas do século XIX, após a revolução republicana. Ver Soares (1994).

5    Os sertões (1902) impactou as percepções da favela e das reformas urbanas que ajudaram a criá-la (Valladares, 2005).

6     Esse padrão não se limita de forma alguma à América Latina ou ao mundo colonizado: da “La Zone” e dos bidonvilles de Paris aos chabolas de Madri, passando pelos parques de trailers e cidades de barracas dos Estados Unidos, a construção informal de cidades é uma característica persistente do urbanismo global, mais distintiva como ausência do que como presença (Beauchez; Zeneidi, 2019; Fourcaut, 2000; Barros; Cohen, 2019; Vorms, 2019; Gómez, 2018). A geografia informal da América Latina também é altamente variável; enquanto o modelo “anel” de urbanização às vezes se aplica, a construção informal de cidades brasileiras preencheu os interstícios do urbanismo colonial e muitas vezes seguiu muito mais de perto a topografia e as geografias relacionais do que a demarcação urbanística (Abreu, 1994; Silva, 2005; Fischer, 2008, 2021, 2020).

7     Essa concepção é semelhante à noção de “desregulamentação” discutida por Ananya Roy (2009). Não uso a palavra “desregulamentação”, no entanto, porque implica que a regulamentação veio primeiro; minha ênfase aqui é a simultaneidade histórica da legislação e da exclusão legal.

8     Uso este termo em conversas com as “zonas de exceção” de Ong (2006) e com o conceito de “espaços cinzas”, de Yiftachel (2009). A terminologia distinta pretende enfatizar uma relação de poder na qual os detentores de poder legal e institucional distribuem graça – ou “tolerância”, como Alisha Holland a chama – como moeda política.



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