Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 1, jan./abr. 2023

Espaços urbanos e metropolização no Brasil (1940-1970) | Entrevista






Bianca Freire-Medeiros é professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), no Departamento de Sociologia e nos programas de pós-graduação em Sociologia (FFLCH/USP) e em Turismo (EACH/USP). Formada em Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutora em História e Teoria da Arte e Arquitetura na Binghamton University, tem como campos de pesquisa o espaço urbano, mobilidades transnacionais, turismo, lazer e consumo, liderando o grupo de pesquisa “Mobilidades: teorias, temas e métodos (MTTM)”.

Associada ao Centro de Estudos da Metrópole (CEM), Bianca coordena o UrbanData-Brasil/CEM – banco de dados bibliográfico que reúne informações publicadas, sob diferentes formatos editoriais, acerca das várias dimensões do urbano brasileiro. A equipe do UrbanData-Brasil também é responsável pelo projeto de extensão “Urbanidades: o podcast do urbano brasileiro”, que já produziu mais de setenta episódios. Na entrevista, ela aborda a sua experiência com o UrbanData na graduação e ao longo de sua carreira; recupera a formação do banco de dados a partir da visão pioneira de Licia Valladares, em fins da década de 1980; apresenta as mudanças e desafios do projeto ao longo dos anos 2000 e 2010, quando passou por significativa transformação em função da mudança de localização e de transformações tecnológicas; e comenta os desafios atuais.

Como parte do dossiê “Espaços urbanos e metropolização no Brasil (1940-1970)”, a revista Acervo apresenta uma conversa sobre a formação do banco de dados que marcou diferentes gerações de investigadores sociais e constituiu um ponto de inflexão para as pesquisas dos estudos urbanos, a partir da liderança e iniciativa de Licia Valladares. A entrevista foi concedida ainda sob o impacto das muitas homenagens póstumas à socióloga que criou o UrbanData e faleceu em 28 de novembro de 2021.1





[Samuel Oliveira] Gostaríamos de saber a sua trajetória da graduação até chegar ao UrbanData. O que esse banco de dados representava para uma estudante de ciências sociais naquele período? E como essa experiência impactou a sua carreira?

[Bianca Freire-Medeiros] Fiz vestibular para comunicação na ECO/UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e para ciências sociais na Uerj, que naquele momento não era uma universidade de pesquisa. Comecei a cursar as duas faculdades, e foi o estágio no UrbanData que me fez desistir da comunicação e ficar nas ciências sociais. Quando entrei no UrbanData, não sabia o que era o Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), não sabia da sua importância. Talvez, se soubesse, nem tivesse participado da seleção, ia pressupor que não teria chance. E a chamada era o seguinte: bolsa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) para participar de um banco de dados bibliográfico. Banco de dados também não era exatamente uma coisa corriqueira, ninguém sabia muito bem o que era. E aí, quando cheguei, me lembro muito disso: entrei na sala, tinha um quadro de cortiça com várias fotos. A que mais chamou minha atenção foi a de Licia Valladares em um camelo. Fiquei muito impressionada com aquilo. “Meu Deus, que mulher é essa?!” [risos]. As fotos eram testemunhos da vida de alguém que rodava o mundo, em uma época em que a mobilidade não era tão corriqueira, especialmente para as mulheres. Licia sempre foi uma pessoa extremamente cosmopolita e isso me impactou de imediato.

A minha tarefa principal era produzir resumos. Fazia muita tradução também, de trabalhos em inglês. De início era um trabalho, sobretudo, voltado para as teses e as dissertações, e que vai dar na primeira publicação: 1001 teses sobre o Brasil urbano. Eu tinha 19 anos, estava no segundo ano da graduação e, de repente, tive contato com uma literatura que absolutamente não teria passado por mim se não fosse essa experiência. Era um contato com a literatura e com pessoas, com autores, com as pessoas encarnadas. Um evento que me foi muito marcante: a reunião para discutir as áreas temáticas com um dos indexadores principais do UrbanData. Licia convidou vários especialistas: Maurício de Abreu, Lúcio Kowarick, Alba Zaluar, Machado da Silva, Pedro Geiger, Margareth Pereira... Uma bibliografia multidisciplinar encarnada! Se eu tivesse sido estagiária de Licia em outro projeto que fosse apenas de sociologia, a minha trajetória seria outra. Foi muito definidor para mim ter contato com essa bibliografia mais ampla, multidisciplinar. Tanto que acabei indo fazer o doutorado em outra área, e Licia me deu muita força, principalmente para estudar nos Estados Unidos. E me dizia isso com base na sua experiência pessoal. A mãe era judia, nascida nos Estados Unidos, de uma família do leste europeu; o pai era baiano. Então, para ela, era assim: “Tem que conhecer o mundo!”. Ela tinha estudado na França e na Inglaterra, mas falava sempre: “Não há nada como uma biblioteca nos Estados Unidos”. Eu, que nunca tinha morado em outro país, devo muito a Licia pela decisão de fazer o doutorado fora.

[Samuel Oliveira]Você fez uma opção por mudar de área e ir para os Estados Unidos. Queria que você desse um pouco de densidade para isso, que falasse sobre como foi essa opção pelo exterior. E no exterior, como foi a sua experiência? Como você viu o tratamento de dados na Universidade de Binghamton, em Nova Iorque, onde fez o doutorado? Havia algo semelhante ao UrbanData?

[Bianca Freire-Medeiros] Fui fazer o doutorado em história e teoria da arte e da arquitetura, mas o meu orientador, Anthony D. King, é sociólogo. Ele foi pioneiro da discussão sobre pós-colonialismo e globalização nos estudos urbanos. O livro The bungalow: the production of a global culture é fundamental para esse debate sobre globalização que ainda era muito incipiente nessa época. Fui fazer o doutorado com ele na intenção de desenvolver uma discussão mais teórica sobre colonialidade, pós-colonialismo, pós-modernidade (outra chave analítica em voga nos anos 1990). Depois o projeto se reconfigurou bastante.

Licia me deu a incumbência de fazer as pesquisas para o UrbanData nas bibliotecas de lá. Nunca deixei de fazer parte da equipe do UrbanData, mesmo à distância [risos]. Fazia coisas de maneira mais intermitente, mas segui trabalhando e mantendo o vínculo. É importante lembrar que era um momento de transição das tecnologias de comunicação. A novidade do momento era o fax. Eu me lembro que o primeiro fax que vi foi na sala do UrbanData. A equipe toda reunida para ver um fax chegar! Nos Estados Unidos, as bibliotecas já estavam informatizadas naquele momento, mas no Brasil tudo era novidade. Por isso faz todo sentido dizer que Licia foi muito visionária. Foi capaz de antecipar um monte de princípios de organização de banco de dados, de busca e organização de informação, que não estava posto, não estava dado. O UrbanData não era só pegar e juntar a informação. Tinha toda uma parte de classificação e análise, realmente uma coisa diferente, entendeu? Isso, antes de Google, de Scielo. Todas essas ferramentas de busca, sobretudo fora do Brasil, são privadas. São serviços pagos, a não ser que você esteja vinculado a uma universidade. O UrbanData sempre foi pensado como uma via de popularização, de acesso ao conhecimento. Licia acreditava que era preciso fazer chegar a informação, dar acesso ao conhecimento acumulado. E sempre valorizava muito o trabalho feito em equipe. Quando entrei, éramos eu e outra bolsista de iniciação científica, as demais eram de nível de mestrado e doutorado. Mas todo mundo tinha o mesmo status ali, a mesma importância. Se a pessoa tivesse interesse em crescer, se tivesse interesse em saber mais, ela dava todo o espaço. Foi uma lição muito importante que tento também reproduzir na equipe.

[Samuel Oliveira]Você falou que nunca deixou de estar no UrbanData. Isso é uma coisa muito surpreendente, porque os projetos mudam. Parece que a Licia e o UrbanData são transversais na sua trajetória de vida. Mas, depois que voltou para o Brasil, quando você assumiu uma posição no UrbanData diferente dessa de ser uma pesquisadora que alimentava o banco de dados?

[Bianca Freire-Medeiros] Quando o UrbanData foi para a sede da Ucam (Universidade Candido Mendes) no centro da cidade no início dos anos 2000, sugeri a Licia que a gente fizesse um boletim de notícias para ser distribuído por e-mail. Dessa ideia surgiu o InfoUrbanData. Ganhamos um dinheiro da Faperj, e eu fiquei responsável por coordenar os bolsistas. Mais ou menos nessa época, Licia se engajou em um projeto grande com a Universidade de Princeton e com a Universidade do Texas, em Austin, que era coordenado por Alejandro Portes e Brian Roberts, um estudo comparativo de cidades na América Latina. Licia convidou a mim e a Filippina Chinelli para compor a equipe que iria cobrir Rio e São Paulo. Toda parte do levantamento bibliográfico, da análise do estado da arte, foi feita a partir do UrbanData, mas tinha outra parte que era de caráter socioetnográfico que Pina e eu fizemos em duas favelas cariocas. Não lembro exatamente quando a Ucam rompeu o vínculo com o UrbanData, mas sei que foi super traumático para Licia. Foi quando Luiz Antônio Machado da Silva assumiu. Nesse período que o Machado ficou na coordenação, só colaborei de maneira muito pontual com o UrbanData, foi um momento em que o projeto ficou muito precarizado, o sistema (CDS/Isis) já estava totalmente obsoleto. Várias informações foram corrompidas, bem triste o processo. Então Machado teve a ideia de transferi-lo para a FGV (Fundação Getulio Vargas). Eu topei, mas confesso que não tinha ideia do quão terrível estava a situação do banco de dados. Naquele momento, a saída foi fazer um espelhamento do sistema de bibliotecas da FGV. Mas não era o ideal, havia vários problemas. Na verdade, o UrbanData, vamos dizer assim, na sua potência ou nos seus problemas, tem um caráter inovador que depende de tecnologias que estão em mutação. Agora estamos utilizando o Drupal, que a princípio é uma linguagem mais definitiva. Só recentemente, como vocês sabem, conseguimos colocar o site em funcionamento, graças ao CEM (Centro de Estudos da Metrópole). Devemos muito a Eduardo Marques, que conhecia bem Licia e é um dos grandes nomes dos estudos urbanos no Brasil e no exterior – ele é da diretoria do RC-21 (Research Committee on Urban and Regional Development) da ISA (International Sociological Association). Sem a equipe técnica do CEM, coordenada pela professora Mariana Giannotti, e a dedicação dos bolsistas e colaboradores, simplesmente não teria sido possível.

[Samuel Oliveira]Você não estava mais abastecendo o banco de dados como pesquisadora-colaboradora, agora estava numa posição de gestão, pensando o UrbanData, são esses seus dois momentos...

[Bianca Freire-Medeiros] Nunca me senti, como até hoje não me sinto, dona do UrbanData. O UrbanData será sempre dela (Licia Valladares)… Falando de forma muito franca: a grande motivação para não desistir, para seguir, para enfrentar os muitos entraves, foi o sentimento que tenho por Licia. Depois, a convicção de que o projeto é relevante, claro. A gente não pode competir jamais em termos de quantidade com o Google Scholar, por exemplo, mas continua valendo a pena, porque podemos oferecer informação qualificada, desde que haja um engajamento da comunidade mais ampla. Quando o UrbanData surgiu, havia poucos programas de pós-graduação, formando poucos mestres e doutores, uma coisa muito concentrada. Eram poucos periódicos. Era possível dar conta da produção. Havia a necessidade de ir fisicamente às bibliotecas e isso era terrível [risos]. Mas hoje o desafio é outro: são milhares de artigos publicados, milhares de teses sendo defendidas. Para lhes dar um exemplo concreto: nossa equipe está preparando o São Paulo em teses: uma bibliografia analítica (1940-2015). O volume de teses e dissertações sobre o urbano paulista (a capital e os municípios) entre 1940 e 2005 é menor do que o que foi produzido entre 2005 e 2015. Em dez anos, é um volume maior do que tudo que ficou para trás! Reflexo da expansão da pós-graduação, por um lado, e da diversificação dos estudos urbanos, por outro. Estamos cobrindo as ciências sociais, humanas e sociais aplicadas, buscando teses e dissertações que tratem de alguma dimensão do urbano. Nosso critério: “se eu ler essa tese da área de educação ou da linguística, eu aprendo algo sobre o urbano de/em São Paulo?”. É muito interessante ver como algumas disciplinas sem tradição no campo passam a colaborar com reflexões de grande qualidade.

[Raphael Rajão]Bianca, queria voltar agora à origem do projeto, do UrbanData. Pensando aquele momento inicial da implantação, queria que você comentasse se houve alguma inspiração, de onde essa ideia veio e quais as referências que foram usadas naquele momento.

[Bianca Freire-Medeiros] Tem um certo mito de origem. Licia contava que foi por conta de um estágio que ela fez na biblioteca do Centro Latino-americano de Pesquisas em Ciências Sociais (CLAPCS). “Eu pensava que se aquelas fichinhas não fossem fichinhas físicas, se a gente pudesse consultá-las de qualquer lugar, tudo seria mais fácil”, ela dizia. Sempre muito antenada, quando chegaram os computadores, ela logo percebeu que ali estava a solução.

[Raphael Rajão]Considerando-se um banco de dados num momento em que a informatização era muito inicial, quais as expertises, quais os profissionais que se envolveram nisso? Como essa estrutura se viabilizou no primeiro momento, do ponto de vista dos financiamentos?

[Bianca Freire-Medeiros] Durante os primeiros anos do UrbanData, o grande financiador foi o CNPq, com recursos para infraestrutura e bolsas. A equipe contou durante muitos anos com um analista de sistemas. No Iuperj, a figura central era Ana Maria Caillaux, e foi ela quem desenhou todo o sistema e, inclusive, assina a coautoria da nossa primeira publicação (1001 teses sobre o Brasil urbano – disponível no site do UrbanData). A equipe contava com seu próprio analista de sistemas. É engraçado, porque Licia sempre foi reconhecida como uma pesquisadora qualitativa, do trabalho de campo, da etnografia. Mas foi também uma pessoa muito atenta a tudo que envolvia estatísticas, banco de dados, grandes números. Manteve interlocução estreita com o pessoal do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), por exemplo. Eu me lembro bastante dessas pessoas frequentando o UrbanData. E ela sempre usou muito os acervos históricos, claro. É impressionante, realmente, como era uma pesquisadora multifacetada e extremamente talentosa em tudo o que fazia. Voltando aos financiamentos, em meados dos anos 1990, Licia fez um projeto grande com o Guri, vinculado ao Banco Mundial. Até eu ir para os Estados Unidos, em 1995, Licia sempre teve a maior equipe, a maior sala do Iuperj, e isso era mérito da sua capacidade de articular redes. O UrbanData se beneficiou das suas redes. Qualquer projeto resultava em um novo computador para o UrbanData, ela ia conseguindo recursos para pagar pessoas. Mas foi tudo se precarizando, como a gente estava dizendo antes.

Atualmente, nossa maior dificuldade é conseguir manter o profissional que entende de banco de dados, porque essas pessoas são muito valorizadas no mercado. Por outro lado, a gente teve um barateamento grande dos equipamentos, é muito mais acessível hoje.

[Raphael Rajão]Voltando um pouco àquilo que talvez a gente possa chamar de fase heroica da criação do UrbanData, para vocês conseguirem ter acesso a esse material que seria inserido no banco de dados, pressupunha-se um acesso físico, não é mesmo? Nesse primeiro momento, como funcionava a circulação e o acesso a esse material? Como os pesquisadores tinham acesso ao banco de dados até que ele se tornasse disponível a distância?

[Bianca Freire-Medeiros] Havia um folderzinho que explicava como fazer a pesquisa, dava o número de telefone da sala do UrbanData. A pessoa telefonava, dizia qual era a demanda de pesquisa [risos]. Passavam-se dez dias, duas semanas, a pessoa recebia pelo correio, ou pelo fax, o resultado… Era assim, era tudo em outro tempo, outra velocidade, outra intermediação. Mas, desde então, não se era obrigado a ir fisicamente ao UrbanData. A pesquisa que alimentava o banco de dados, essa sim se fazia em idas à Biblioteca Nacional, biblioteca da PUC (Pontifícia Universidade Católica). Cheguei a ir aos principais eventos acadêmicos da área, que naquele momento eram o encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) e o Enanpur (Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional), e Licia me incumbia de ir atrás dos pesquisadores e pedir que nos mandassem o resumo de suas teses! [risos].

Há sempre vantagens e desvantagens comparativas entre “aquele tempo” e os “tempos atuais”. Havia poucos periódicos, por outro lado nem todos traziam o resumo do artigo, o que para o UrbanData é fundamental. Eu mesma produzi muitos resumos como bolsista. A gente continua tendo esse problema em relação aos livros e aos capítulos de livros, e esse é um trabalho dificílimo, porque envolve leitura e redação. A gente tem algumas pessoas que fazem isso na equipe, mas não é um trabalho que se consegue fazer com velocidade. Nós agilizamos de acordo com as demandas que vão surgindo. Um exemplo: fizemos uma parceria com a RBEUR (Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais), aí movemos a equipe nessa direção, para trabalhar especificamente com o conteúdo desse periódico. Uma coisa que também aprendi com a Licia foi a manter por perto os ex-bolsistas, pessoas que acumularam um saber-fazer que é fundamental nessas parcerias. Já não podem estar vinculados formalmente, mas seguem trabalhando e sendo remunerados de outra maneira, por essas parcerias. Isso a gente faz bastante. Não temos nenhuma pretensão, porque seria impossível, seria da ordem da frustração absoluta, de achar que vamos ter condições de estar up to date com a produção. Atualmente Rio de Janeiro e São Paulo são sobrerrepresentados na nossa base. Quanto mais engajamento dos usuários houver, mais diversificado o banco será e mais abrangentes serão as análises produzidas.

[Raphael Rajão] Considerando as reformulações nesse momento de retomada do UrbanData, o que foi mais significativo dessas transformações recentes?

[Bianca Freire-Medeiros] Acho que o grande “pulo do gato” é termos montado a interface que permite à própria autora, ao próprio autor, inserir sua produção. Fizemos o Tesauro de Áreas Temáticas, inserimos vários “tira-dúvida” para viabilizar esse processo. Alexandre Magalhães, que foi bolsista de iniciação do UrbanData e hoje é professor de sociologia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), um superparceiro, colocou de pé o Tesauro. Ele fez um trabalho enorme de consultar chamadas dos congressos, ementas de curso, linhas de pesquisa. Foram dois trabalhos paralelos: renomear algumas áreas temáticas que já existiam e criar outras. Havia uma área temática que se chamava Crescimento Populacional e Migrações e passou a se chamar Fluxos Populacionais e Migrações. É a mesma área temática, mas ela atualiza um pouco desse vocabulário.

Uma outra coisa que ficou muito legal no site: digitalizamos obras de Licia que estavam fora de catálogo. Aos poucos, o site vai se tornando esse lugar de confluência bibliográfica, do podcast Urbanidades, dos eventos. Uma referência para quem se interessa pelo campo dos estudos urbanos.

[Samuel Oliveira]Bianca, você entrou no UrbanData no final dos anos 1980, quando já havia uma grande discussão sobre quais eram as áreas temáticas do urbano. Já havia essa compreensão de que o urbano não é algo fechado, de que ele tem uma interdisciplinaridade, e há vários atores que o estudam. Você passou por esse debate como estudante, e agora, em 2019, com o Alexandre Magalhães, teve outro debate sobre essas áreas temáticas. Esses foram os dois grandes momentos de definição dessas áreas temáticas, na sua percepção, nessa trajetória?

[Bianca Freire-Medeiros] Sim. As áreas temáticas vão informar a classificação, assim como há outros indexadores, da referência temporal, da referência espacial etc., o que permite fazer os cruzamentos. E uma coisa que a gente inseriu, que não existia, foi o sexo do autor. Claro que é um critério nominal, a gente não tem nenhuma discussão sobre questões de gênero e identidades cis e trans. A gente parte do nome; se é um nome dúbio, a gente olha o currículo Lattes e tenta situar a pessoa. É um indexador que nos permite ver coisas muito escandalosas! [risos]. Há temas que ainda são majoritariamente masculinos. Em geral, em tudo que é da escala macro, das grandes questões, os homens serão maioria. De tudo que é do campo do cuidado, da esfera do cotidiano, da escala micro, as mulheres se ocupam mais.

[Samuel Oliveira]Fiquei muito surpreso de saber disso, esse cadastramento de gênero, ele não estava posto antes. Estou em um programa que estuda relações étnico-raciais, uma categoria que não estava colocada como área temática e foi introduzida, não é?

[Bianca Freire-Medeiros] Exato! Na origem havia 25 áreas temáticas, a gente precisou revê-las. Há temas clássicos, que atravessam as décadas, mas percebemos que algumas áreas estavam muito congestionadas, por assim dizer. Modo de Vida, Cotidiano e Imaginário Social talvez seja o melhor exemplo. Trabalhos que tratavam de arte, estética, comunicação, tudo tinha de ser classificado nessa área. Decidimos, depois da consulta aos especialistas, desmembrá-la. Então hoje temos a área temática Arte e Estética, que agrega muita coisa interessante e de muitas disciplinas. Em torno das áreas temáticas Gênero e Sexualidade e Relações Étnico-Raciais houve muito debate. Tínhamos dúvida se constituíam propriamente áreas temáticas ou se deveriam ser tratadas como transversais a qualquer outra. Depois de muito debate, muita conversa, decidimos que fazia sentido. Isso nos permite ver as alterações no tempo (lembrando que tivemos de voltar e reclassificar o banco todo). As pesquisas sobre trabalhadoras domésticas, por exemplo. A gente classifica como gênero. Não necessariamente o autor faz uma discussão de fato sobre gênero, mas é possível visualizar que há, mais e mais, discussões sobre mercado de trabalho e gênero no contexto urbano. O mesmo se dá com relações étnico-raciais, que passam a ser também um tema muito mais presente do que já foi. Quem estiver trabalhando com juventude, por exemplo, dificilmente vai escapar dessa discussão, porque somos interpelados por nossos interlocutores. Não é uma imposição conceitual, analítica, ela vem do empírico mesmo. Então a gente tentou, com essas dez novas áreas temáticas, atualizar o debate. A gente sabe que as pessoas escolhem palavras-chaves muito aleatórias e inúteis muitas vezes [risos]. As disciplinas, por sua vez, tendem a ser muito rígidas. Então as áreas temáticas atravessam as disciplinas e organizam o campo.

[Samuel Oliveira]Mas dentro do marcador relativo à autoidentificação, não existe a categoria por raça ainda, não é?

[Bianca Freire-Medeiros] Não. Debatemos intensamente sobre isso. Mas como a gente faria para atualizar tudo que está no banco? Uma coisa é a pesquisadora colocar sua autodeclaração, mas como classificaríamos os autores e autoras sob esse critério? Pelo currículo Lattes é muito fácil identificar o gênero, que pronome a pessoa utiliza, mas poucos fazem a identificação por raça. Então, seria um trabalho grande demais. A gente não pode introduzir variáveis classificatórias que tornem incompatível a comparação entre o que já existe no banco e o que está sendo inserido. O tempo todo temos que nos preocupar com essa medida, com essa afinação. E por isso é tão legal quando há outras pessoas colaborando com o banco, com a inserção de informações. O professor Mauro Amoroso, por exemplo, que é historiador, nos ajudou muito na definição da referência temporal. Tem algo de vocês, historiadores, de organização da linha do tempo, que é uma coisa diferente. Quando estamos diante do resumo de uma tese ou de um artigo da área de história, é evidente a preocupação em situar temporalmente o trabalho. Fora dessa área, a coisa fica mais complicada, mais nebulosa. Mas a gente vai vendo a consolidação de certos marcos históricos que produzem certos picos de produção, como é o caso das Jornadas de 2013 ou do ciclo dos megaeventos.

[Samuel Oliveira]Pensando neste dossiê, eu olho as 35 áreas temáticas do UrbanData e percebo que o debate sobre espaço urbano e metropolização atravessa um monte delas, mas tem uma área específica, que é Estrutura Regional e Metropolitana. Queria que você falasse um pouco sobre como foi construída essa categoria. Ela existia antes? Que tipo de produção ela abarca?

[Bianca Freire-Medeiros] Sim, existia antes. Há muita produção a respeito dela nos anos 1980. Está incluído nessa área temática todo o debate sobre a própria definição jurídica, como elas foram se construindo ao longo da história. Pode ser leviano o que vou dizer, mas a impressão que tenho é que a “região metropolitana” é muito mais uma categoria descritiva, uma referência a um contexto, do que uma categoria de análise. Vários trabalhos, ao falar sobre São Bernardo ou Nova Iguaçu, por exemplo, assumem que falarão sobre as regiões metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente, mas há pouca reflexão sobre o porquê de Nova Iguaçu ser região metropolitana. E, talvez, essa seja uma reflexão que o próprio dossiê possa inspirar. Inspirar uma reflexão sobre o processo de construção dessa categoria. Desnaturalizar, historicizar, portanto, as regiões metropolitanas. Dá para pensar muita coisa interessante a partir daí, não é?

[Samuel Oliveira]Ainda olhando as 35 áreas temáticas, falando do espaço, desse debate sobre metropolização: tem alguma área que não é óbvia e que seria superinteressante para debater essa questão da metropolização?

[Bianca Freire-Medeiros] Acho que um debate transversal à discussão sobre “espaço urbano e metropolização” é aquele que está contido na área temática Mobilidade Urbana. Ao falar de metropolização, estamos falando de um espraiamento que demanda intensificação da mobilidade urbana em vários sentidos. Ao pensar esse cruzamento, essas distâncias socioespaciais que as regiões metropolitanas expressam tão bem, nos vemos obrigados a pensar as desigualdades em outros termos. A ideia de “acesso” passa a ser fundamental para entender como as relações são hierarquizadas, como as desigualdades são reproduzidas e reforçadas, nesse vai e vem que estrutura a vida da maior parte das pessoas que moram nas tais regiões metropolitanas.

[Raphael Rajão] Como vocês entendem os desafios do UrbanData em dois pontos: tornar-se um banco mais colaborativo e lidar com esses outros referenciais de sistemas de busca que se colocam na contemporaneidade?

[Bianca Freire-Medeiros] A gente fez muitas experimentações com as interfaces, para tornar o nosso site o mais acessível e convidativo possível. Há todo um trabalho de comunicação meio invisível, mas absolutamente essencial para “convencer” as pessoas – autores e autoras – a participar. E participar, nesse caso, significa inserir suas próprias produções – suas teses, artigos, livros – na nossa base. Essa produção passa a fazer parte da base depois da validação de alguém da nossa equipe. Mas é muito mais fácil validar do que ter de localizar a informação, fazer toda a classificação do material. Se a autora ou autor fizer isso, inserir a sua própria produção na base, o banco se multiplicará rapidamente! Então, o UrbanData é colaborativo, mas não é aleatório, há um sistema de validação que garante a qualidade da informação inserida. Nosso site, por um lado, tem características que o aproximam de bases de dados como Scielo, OJS (Open Journal Systems), então nos baseamos na interface desses sites, como eles dispõem as informações, como apresentam as ferramentas de busca. A gente não queria fazer algo que fosse muito diferente, que deixasse as pessoas confusas, então a gente se espelhou bastante no próprio site da biblioteca da USP. Até mesmo nos termos, nas categorias. Algumas coisas, às vezes, soam um pouco estranhas, em termos de nomeação dos documentos. Mas a gente preferiu fazer assim, sabendo que é classificado desse jeito em uma biblioteca, a criar categorias que nos parecessem mais familiares, mas que não fossem corretas. É um trabalho muito, muito grande de bastidor que fica invisível. Sorte nossa que pudemos contar com muito apoio no processo, pessoas que foram nos ajudando: “ah, isso aqui não está tão claro, tentei fazer assim, mas não deu muito certo”. A gente se beneficiou dessas conversas e do feedback dos primeiros usuários.

[Raphael Rajão]Como você citou, o universo dos acervos passa a compor o UrbanData na transição para sua nova fase. Como essa frente de atuação está sendo pensada na atual configuração do site?

[Bianca Freire-Medeiros] Houve uma época, nos tempos áureos de Iuperj, que o UrbanData recebia muitas publicações: as pessoas lançavam um livro e davam um exemplar para o projeto. Nesse momento, o UrbanData tinha uma biblioteca física, que era, claro, muito localizada e direcionada, que correspondia ao universo das redes de Licia. Mas era um acervo muito interessante. Nos dias de hoje, a grande conquista é ter o documento em PDF. No caso das teses, inserimos sempre o link que leva ao PDF na própria referência. Muita coisa que faz parte do nosso banco de dados é pré-digitalização e isso dificulta bastante. Estamos digitalizando algumas coisas, como disse antes, mas é um trabalho de formiguinha perto da imensidão dos estudos urbanos. Aliás, se tem uma coisa que o UrbanData deixa evidente é o quanto trabalhamos na academia brasileira! A despeito de tudo isso que a gente já sabe, das condições materiais adversas, a produção do conhecimento no Brasil é incrivelmente volumosa. É muito impressionante como trabalhamos. Ao mesmo tempo, porém, essa produção ainda é muito concentrada. No caso dos estudos urbanos, tem-se uma concentração forte nas instituições do Sudeste, mas trabalha-se muito em todas as universidades!

[Raphael Rajão] Para fecharmos, o que você espera em relação ao UrbanData?

[Bianca Freire-Medeiros] O que a gente mais sonha é que todas as pesquisadoras reconheçam no UrbanData uma ferramenta, um recurso, que é delas também. Se elas colocarem na base as suas próprias produções, isso faz a roda girar e acaba beneficiando todo mundo que faz pesquisa. Quando estivemos no Enanpur, vimos toda uma geração de pesquisadores formada pelo UrbanData, que se beneficiou muito dele nos anos 1990, nos anos 2000. Pessoas da minha idade e mais velhas, que se emocionam ao dizer que não teriam feito suas teses não fosse o acervo do UrbanData-Brasil. E tem o pessoal mais novo, que ainda não nos conhece, que precisa saber que o projeto existe. Procuramos chegar a essas pessoas com os projetos de extensão, especialmente com o podcast Urbanidades. Atualmente há muito podcast acadêmico, mas quando começamos não tinha. A gente chegou a trinta mil streamings, é muita coisa. Fazemos um podcast multidisciplinar, que recebe quem é o big name do campo, mas também quem acabou de defender a sua dissertação. É interessante, porque os programas em que entrevistamos pessoas que acabaram de defender o mestrado são muito bem-recebidos. Em geral, a pessoa fala sobre a pesquisa com entusiasmo, com paixão. É uma coisa muito viva, muito legal. A gente fica muito feliz, porque tanto o UrbanData-Brasil quanto o Urbanidades são projetos da universidade, mas vão muito além. Acho que o UrbanData sempre vai ter esse papel: é ferramenta de pesquisa, mas também uma curadoria, acervo bibliográfico disponível a qualquer pessoa. A gente, obviamente, não faz o controle de qualidade no sentido de “ah, não, esse trabalho não é bom, não vamos inserir na base”. Isso não existe. Mas a gente tem critérios: só entram trabalhos com referências que foram publicadas, que passaram pelo aval dos pares. Se é uma tese ou dissertação, houve o critério da aprovação pela banca. Se é um artigo publicado em uma revista, aquela revista científica tem os seus critérios. A gente quer que essa informação qualificada seja acessível a todo mundo, a um estudante do ensino médio, a organizações da sociedade civil, qualquer pessoa que esteja interessada sem ser necessariamente acadêmica. Agora o trabalho é esse, de fazer divulgação, divulgação, divulgação! Quando fizemos o lançamento do site, fizemos também a homenagem à Licia. Foi muito incrível, sabe? O tanto de gente, as principais referências dos estudos urbanos estavam presentes. E todo mundo celebrando Licia e a preservação do projeto.

Entrevista concedida de maneira virtual a Samuel Oliveira e Raphael Rajão, editores do dossiê "Espaços urbanos e metropolização no Brasil (1940-1970)", em 7 de junho de 2022. Samuel Oliveira é doutor em História, Política e Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (Cpdoc/FGV), professor e pesquisador no Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LEHMT/UFRJ) e no Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (PPRER/Cefet/RJ). Raphael Rajão é doutor em História, Política e Bens Culturais pelo Cpdoc/FGV e professor no Instituto Federal do Ceará (IFCE).



Nota

1     A realização e transcrição da entrevista contaram com recursos da Bolsa de Produtividade do CNPq (processo n. 307069/2021-4) e do programa Jovem Cientista de Nosso Estado pela Faperj (processo n. E-26/201.264/2022).



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