Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 2, maio/ago. 2023

Marc Ferrez: a fotografia como experiência | Dossiê temático

De Marc a Gilberto

a família Ferrez e a valorização da fotografia no Brasil

From Marc to Gilberto: the Ferrez family and the appreciation of photography in Brazil / De Marc a Gilberto: la familia Ferrez y la apreciación de la fotografía en Brasil

Maria Isabel Ribeiro Lenzi

Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do Museu Histórico Nacional (Ibram/MHN), Brasil.

maria.lenzi@museus.gov.br

Resumo

O colecionador Gilberto Ferrez desempenhou papel importante na história da fotografia no Brasil. Sua atuação por meio de livros, artigos e exposições revela como o esforço em prol da redescoberta da fotografia no país esteve ligado de forma indissociável à valorização do legado da sua família. A análise de um conjunto de fontes revela como este esforço contribuiu para a construção do reconhecimento do avô – Marc Ferrez – como personagem-chave de referência na história da fotografia no Brasil, levando ao mesmo tempo à valorização de sua própria coleção.

Palavras-chave: Família Ferrez; fotografia; coleção.

Abstract

The collector Gilberto Ferrez played an important role in the history of photography in Brazil. His work through books, articles and exhibitions reveals how the effort towards the rediscovery of photography in the country was inextricably linked to the appreciation of his family's legacy. The analysis of a set of sources reveals how this effort contributed to the construction of the recognition of the grandfather – Marc Ferrez – as a key reference character in the history of photography in Brazil, leading at the same time to the appreciation of his own collection.

Keywords: Ferrez Family; photography; collection.

Resumen

El coleccionista Gilberto Ferrez jugó un papel importante en la historia de la fotografía en Brasil. Su obra a través de libros, artículos y exposiciones revela cómo el esfuerzo por el redescubrimiento de la fotografía en el país estuvo indisolublemente ligado a la valoración del legado de su familia. El análisis de un conjunto de fuentes revela cómo este esfuerzo contribuyó a la construcción del reconocimiento del abuelo – Marc Ferrez – como un personaje de referencia clave en la historia de la fotografía en Brasil, conduciendo al mismo tiempo a la valorización de su propia colección.

Palabras clave: Familia Ferrez; fotografía; colección.

[...] meu pai, vendo o meu interesse, me disse: Olha, meu filho, aqui estão todas as chapas do teu avô. – Temos que copiar tudo, respondi. Pois vamos. [...]. Ainda era vivo um antigo empregado do meu avô, que fora aposentado quando vovô morreu. [...]. Fui buscá-lo [...] e ao final de dois anos, tínhamos copiado tudo. [...]. Mas daí surgiu um problema. Eu pegava uma foto e perguntava ao empregado: quando é que foi tirada? – Como é que eu vou saber, meu filho? Foi em 1870, 1880, não sei bem. Aí eu tive que conhecer o Rio de Janeiro a fundo, gravuras, tudo para conhecer a data em que os prédios haviam sido construídos etc. Todos lá em casa riam muito porque eu levei anos indagando quando é que surgiu a chaminé da City. Ninguém sabia dizer. [...]. Quem descobriu finalmente foi dom Clemente Maria da Silva-Nigra. Eu fiquei tão radiante que todo mundo ria do meu contentamento, porque aquela chaminé estava me atrapalhando para datar uma série de fotografias. Igrejas, prédios, tudo isso a gente podia saber, mas a chaminé da City! [...]. Os prédios de que dispúnhamos de dados eu fui estudando. Graças a isso hoje eu posso datar quase sem erro. Em tudo que eu dato circa, eu estou errando sim, mas estou dando uma margem de dez anos, cinco para cima, cinco para baixo. (Ferrez, 1982)

Em entrevista, Gilberto Ferrez nos conta sobre as estratégias adotadas para trilhar as imagens que seu avô havia deixado de legado para a família. Em sua rememoração, um conjunto de referências nos permite remontar os itinerários da presença da fotografia na família Ferrez. Logo na primeira frase, nos é transmitida a informação de que o fotógrafo Marc Ferrez havia deixado sua produção fotográfica organizada e que seus filhos cuidavam desse material. O fragmento aponta ainda para a entrada da terceira geração no cuidado com as fotografias de Marc Ferrez. Mais adiante constatamos a importância das chapas fotográficas passadas de pai para filho, para que o neto Gilberto, mais tarde, se aventurasse nas pesquisas sobre o desenvolvimento urbano e arquitetônico das cidades brasileiras, sobretudo o Rio de Janeiro.

O documento também nos permite reconstituir a rede de sociabilidade na qual a família Ferrez se inseria, com destaque para a ligação com intelectuais eruditos. D. Clemente Maria da Silva-Nigra, por exemplo, além de historiador da arte religiosa, era diretor do Museu de Arte Sacra da Bahia, funcionário do Iphan e membro do IHGB. Rememorações que nos permitem vislumbrar que Gilberto Ferrez cresceu em um ambiente que estimulou sua sensibilidade para apreciar imagens, tanto as fotográficas, como as demais, vocacionando-o para a investigação sobre iconografia.

O fato de Gilberto Ferrez ser oriundo de uma família ligada à fotografia orientou sua formação como intelectual e colecionador. Entretanto, se o legado do avô foi determinante para a atuação de Gilberto Ferrez, seu trabalho, em grande medida, foi importante para o reconhecimento nacional e internacional da obra de Marc Ferrez. O presente artigo, com base no processo de rememoração de Gilberto Ferrez, que sua entrevista nos proporciona, volta-se para averiguar a importância da família do fotógrafo, sobretudo de seu neto Gilberto, na consagração nacional e internacional de Marc Ferrez como um dos mais valorizados fotógrafos do século XIX.

Em 1839, a "descoberta" da fotografia foi anunciada por Arago, na Academia Francesa de Ciências. Os processos fotográficos, desde finais do século XVIII, já vinham se consolidando em diferentes lugares e por meio de distintas estratégias. A própria noção de descoberta da fotografia foi colocada em questão, sobretudo porque em cinquenta anos, o daguerreótipo, uma peça única, dá lugar ao rolo de filme Kodak (Mauad, 2019; Batchen, 2004). Portanto, de final dos anos 1830 aos últimos anos do século XX – quando aparece a imagem digital – a invenção de Daguerre e Florence foi muito aprimorada. Na década de 1890, o advento do instantâneo tornou possível o que nos primórdios da fotografia era impensável: a obtenção da imagem em frações de segundos. Porém, o essencial não mudara, era da luz o traço no suporte.

André Rouillé, no livro Fotografia, entre documento e arte contemporânea, nos apresenta o debate a respeito da fotografia no século XIX: apesar de a fotografia ter sido bastante difundida entre artistas e cientistas, havia uma discussão sobre se o que os fotógrafos produziam poderia ou não ser considerado arte. Como lembra o autor, no debate oitocentista encontramos o fotógrafo “tirando” a foto, e o pintor compondo a obra. Desse modo, a tela do artista seria uma totalidade, enquanto a fotografia, um fragmento. Assim, a oposição entre pintura e fotografia expressava, no campo das imagens, dois modos de ver, sentir e entender o mundo.

Afirma-se, no final do século XIX e início do XX, a perspectiva de que a fotografia seria um documento probatório por excelência: seria neutra – passiva, imparcial e retrataria o mundo visível tal como ele se apresentava diante da objetiva –, como se não existisse ninguém atrás da câmera. Em razão deste debate, Rouillé cunha o termo fotografia-expressão para argumentar que, por mais que a fotografia registre, ela nunca é só documento, pois toda fotografia compreende uma expressão, engloba um acontecimento, no qual ela está inserida. A forma, a autoria, o diálogo com o modelo são fundamentais numa imagem fotográfica.

O debate sobre o estatuto da fotografia entre arte e prova permeou a concepção de Gilberto Ferrez, para o qual a fotografia seria tanto um documento que atestava a existência das coisas, como, também, expressão do fotógrafo. Gilberto considerava a possibilidade de uma arte dos fotógrafos, por reconhecer que a produção de fotografias apoiava-se em uma estética visual. Ainda criança, o convívio com seu avô Marc Ferrez e com o pai Júlio levou-o a compreender o trabalho e a sensibilidade do fotógrafo.

Eu não tiro fotografia em qualquer lugar. Meu pai me ensinou a tirar fotografia exatamente como meu avô. – “Meu filho, você não pode tirar assim. Você estuda o que você quer, e procure os ângulos, vem pra cá, vai pra lá. Aqui não fica melhor? Aqui não tem mais luz?” Eu nunca tirei uma fotografia assim de estalo. A não ser que eu esteja com pressa, que tenha acontecido qualquer coisa, ou que eu saiba que não vou mais passar por aquele local. Aí eu tiro. Mas, quase sempre saem umas drogas. Via de regra, toda fotografia que eu faço, eu estudo antes. (Ferrez, 1982)

Em sua reflexão entendemos como o saber-fazer fotográfico foi sendo passado de geração em geração, consolidando um ideal estético que valorizava o estudo do que seria o objeto da fotografia, ao invés do flagrante. A fotografia deveria ter um sentido que fosse além do registro, é o que ele almejava, compartilhando com os seus antepassados o legado estético da imagem fotográfica. Em seu relato, por exemplo, nos damos conta das condições que Marc Ferrez considerava ideais para a fotografia ao ar livre:

Meu avô, quando ia fazer fotografia de coisas que ficavam longe – montanhas, por exemplo – esperava um sudoeste. O sudoeste são três dias de chuva forte, sul. No dia seguinte ao que cessava o sudoeste, amanhecia tudo lavadinho, o dia estava maravilhoso, sem uma nuvem. Aí, meu avô que já sabia a hora que tinha o sol bom para ele, ia lá e tirava a fotografia dele. Em todo lugar que ele ia, estudava primeiro as possibilidades atmosféricas. Caso contrário, ele não poderia nunca ter tirado fotografias como essa sequência de montanhas, por exemplo, que aparece tudo em foco. (Ferrez, 1982)

Ainda um menino de doze anos, Gilberto acompanhou Marc Ferrez à Gávea justamente depois de uma chuva com o vento sudoeste. Carregou as chapas do avô e lembrava-se do episódio aos 74 anos, quando foi entrevistado:

Foi naquele caso da neblina. Ele me disse assim: – “Olha, acabou o sudoeste e amanhã vai ser um dia limpo. Eu tenho que fotografar alguma coisa lá na Gávea”. E fomos de bonde até a ponte do Leblon, e dali, a pé pela Niemeyer afora, que era de terra, e tiramos a fotografia que ele queria: com aquelas palmeiras em primeiro plano. Mas era em cores. [...] Eu carregava a chapa. Era um negócio pesadíssimo. Eu era um garotinho, devia ter uns doze anos. (Ferrez, 1982)

A valorização de uma fotografia produzida de acordo com as premissas estéticas do século XIX – composição, nitidez, luz e sombra – por Gilberto Ferrez não reduzia o seu interesse sobre a dimensão documental da fotografia. Era por meio das imagens fotográficas que ele procurava compreender a evolução urbana no Brasil e concebia a fotografia como um instrumento didático fundamental para a compreensão da forma visual das cidades.

A mim, o que interessa é a parte evolutiva das cidades. Não há nada que bata melhor do que o documento fotográfico. Se você mostra a fotografia, não deixa dúvida, não é? Além do que, todo mundo decora muito mais depressa vendo uma fotografia ou um desenho do que lendo um texto. Você escreve, por exemplo, 20 páginas, para descrever o morro do Castelo para um garoto hoje. Se eu contar pra vocês como era o morro do Castelo, vocês não compreenderão jamais. No entanto, se eu lhes mostro fotografias, vocês vão compreender logo. O documento fotográfico é, pois, um negócio fabuloso. Principalmente no Brasil, porque quando acaba a pintura clássica, o que vale realmente é a fotografia. [...] Até 1880-1890, temos documentação iconográfica de desenhos, aquarelas. Daí para diante, não existe mais nada. O que se pinta hoje não representa quase nada do que a gente quer. Então o que salva é a fotografia. A gente tem que salvar a fotografia. (Ferrez, 1982)

Em seus trabalhos, Gilberto Ferrez, como veremos adiante, procurou complementar as imagens com informações, compartilhando com o leitor em suas introduções e, sobretudo, nas legendas das imagens escolhidas, o conhecimento por ele compilado no trato com as fotografias.

Além da paisagem urbana, Gilberto Ferrez concedeu bastante atenção aos fotógrafos e à prática fotográfica como temas fundamentais de seu estudo – afinal era colecionador, antes de tudo, de fotografia. Em 1953,1 foi publicado na Revista do Patrimônio n. 10, o texto “Fotografia no Brasil e um dos seus mais dedicados servidores: Marc Ferrez (1843-1923)”. Apesar de dar destaque a Marc Ferrez, Gilberto trata de diversos fotógrafos do século XIX no Brasil. Ele começa o artigo advertindo o leitor que vai pôr em evidência “as figuras mais representativas dos artistas fotógrafos do país, no século passado”. Deixa claro que o fotógrafo também faz arte, porém a sociedade não reconhece os trabalhos desses artistas, já que não lhes conferia o devido crédito. Dedicou, então, o ensaio aos “fotógrafos cujos trabalhos, ontem como hoje, foram copiados por litógrafos, desenhistas e pintores, sem que ninguém se desse ao trabalho de citar-lhes o nome” (Ferrez, 1946, p. 169).

Gilberto, em seu ensaio, ressalta a atividade de artistas fotógrafos como, por exemplo, Abade Combe [sic], Hercule Florence, Joaquim Insley Pacheco, Victor Frond ou Leuzinger. Ao seu avô Marc Ferrez, dedica um lugar de destaque na história da fotografia, pois “nenhum trabalhou tanto, com tamanho amor à arte e ao seu país, que palmilhou de norte a sul, quanto Marc Ferrez, como nenhum o igualou em gosto artístico e em técnica, nem deixou tamanho acervo” (Ferrez, 1946, p. 245).

A excelência do trabalho de Marc Ferrez foi, também, ressaltada:

Era antes de tudo, um artista. Basta ver suas fotografias para reconhecê-lo como tal. Ao escolher um assunto, mesmo quando puramente documental, procurava um ângulo visual novo, original e compunha um “quadro” com diversos planos, para dar a impressão de profundidade, de atmosfera: estudava a luz necessária ao conjunto. (Ferrez, 1946, p. 263)

É interessante notar que, no trecho destacado, Gilberto Ferrez não coloca Marc Ferrez tirando uma fotografia, mas compondo um quadro. Parece que, para Gilberto, as fotos de Marc Ferrez não fragmentam o objeto fotografado, mas o compõem através do olhar do artista-fotógrafo. Contudo, não é somente ao seu avô Marc que Gilberto dedica tanta admiração.

Os fotógrafos a que me refiro, sobre quem escrevo, são tão bons quanto o meu avô. Só não tiveram o espaço de vida que meu avô teve: sessenta anos fotografando e gostando. Meu avô sempre foi apaixonado, desde criança até a morte, pela fotografia. Nasceu fotografando e acabou fotografando. É uma coisa fora do comum. Os outros não tiveram esse prazo e não percorreram o Brasil. Meu avô percorreu o Brasil todo. E a Europa. Mas, por exemplo, Stahl era um fotógrafo fabuloso. Klumb é outra maravilha de fotógrafo. Vilela, em Pernambuco, é fantástico. Esse Coutinho um extraordinário fotógrafo em Alagoas. [...] A única coisa que conheço do Coutinho é esse álbum que eu tenho. [...] Era do Wanderley Pinho, ele me deu. Dr. W. Pinho, da Bahia, colecionava muita fotografia. Certa vez, discutindo junto o álbum da Bahia, sobre o sesquicentenário, ele me mostrou esse Coutinho. Achei uma maravilha, uma beleza. Então, no fim da vida, ele estava organizando as coisas e me deu o Coutinho. Presente régio! Me faz lembrar sempre dele. Mas existem outros fotógrafos. Em São Paulo, Guaensley e ... como se chama o outro?

(Militão?)

Não, Militão não é um bom fotógrafo. Ele é um fotógrafo de valor histórico fabuloso, mas não é bom. (Ferrez, 1982)

A declaração de Gilberto Ferrez estabelece uma hierarquia em que o valor da expressão autoral na fotografia passaria a definir o cânone da história da fotografia. Atribuía valor ao tema fotografado mas, sobretudo, à própria fotografia como objeto artístico digno de ser colecionado.

Gilberto Ferrez já havia publicado artigos sobre fotografia (Revista do Patrimônio, 1953 e Anuário do Museu Imperial, 1948 – “Um passeio a Petrópolis em companhia do fotógrafo Marc Ferrez”), quando chamou a atenção de um público maior para a fotografia oitocentista no Brasil com a mostra Pioneer Photographers of Brazil 1840-1920, organizada em 1976 em Nova York por ele e Weston J. Naef. A exposição foi, em seguida, para o Museu de Arte de São Paulo e para o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Vale observar que a quantidade de fotografias de Marc Ferrez no catálogo dessa exposição é muito maior do que a de qualquer outro nome: 24 fotos de Ferrez, seguido por Augusto Stahl, com dez fotografias. O texto sobre Marc Ferrez também se destaca, já que é três vezes maior do que os textos sobre os outros fotógrafos. Segundo Gilberto, esse evento é um divisor de águas para a história da fotografia no Brasil, pois foi a partir dele que o mundo tomou conhecimento da produção fotográfica brasileira anterior ao instantâneo. Segundo ele, “ninguém ligava para fotografia no Brasil até há pouco tempo, até eu começar a mexer nisso. [...] Eu teria sido o único se não viesse essa onda de repente e se não acontecesse a minha exposição para acordar, porque eu queria acordar as pessoas para o valor da fotografia” (Ferrez, 1982).

Em 1991, Gilberto Ferrez participou da IV Bienal de Fotografia em Turim, Itália, onde expôs trabalhos de Marc Ferrez, de sua coleção. No ano seguinte, ele foi a Houston, nos Estados Unidos, para participar da Fotofest’92 e fez palestras sobre os temas “Fotografia oitocentista Brasil” e “Marc Ferrez”. Em dezembro de 1993, a Pinacoteca do Estado de São Paulo exibiu a exposição A fotografia no Brasil do século XIX, 150 anos do fotógrafo Marc Ferrez – 1843-1993, sob curadoria de Gilberto Ferrez e Pedro Vasquez. Dois anos depois, em 1995, Pedro Vasquez organizou, no Centro Cultural Banco do Brasil (RJ), a mostra Mestres da fotografia no Brasil – Coleção Gilberto Ferrez. Mais uma vez, foi uma exposição de imagens obtidas das lentes dos artistas-fotógrafos do século XIX, privilegiando as paisagens urbanas e as fotografias de Marc Ferrez. A exposição do CCBB do Rio de Janeiro foi maior do que aquela da pinacoteca paulista – apresentou vinte fotógrafos – desta vez chegando ao século XX com Augusto Malta e iniciando com um fotógrafo que divulgou sua obra através da litografia: Victor Frond. Entretanto, foi Marc Ferrez o fotógrafo com o maior número de obras expostas: dez fotografias; outro fotógrafo com obras na exposição foi Augusto Malta, com sete fotos. Ademais, foi de Marc Ferrez o único panorama de folha dupla do catálogo.

Os livros-álbuns de fotografias organizados por Gilberto Ferrez a partir de sua coleção concentraram ao longo dos anos boa parte dos seus esforços como autor, pesquisador e colecionador. São, por isso, particularmente relevantes para refletirmos sobre a sua atuação.

Nunca tinha visto um álbum de fotografias do meu avô. [...] Eu queria ter um álbum dos antigos. Hoje, tenho vários. Para isso, aonde ia, eu pedia para procurar. Para todo livreiro que via eu dizia: “Olha, eu sou comprador de qualquer coisa que aparecer de fotografia, especialmente de Marc Ferrez”. Todo mundo já sabia, e se aparecesse álbum de Marc Ferrez, vinham me oferecer. (Ferrez, 1982)

“Álbuns dos antigos”, de que se trata? Em meados do século XIX o objeto álbum de fotografia, que reunia um conjunto de imagens fotográficas sobre determinado tema ou retratos de celebridades e membros das famílias, passou a ser comercializado na capital do Império. O álbum de fotografia traduziu o desejo da modernidade ocidental em catalogar o mundo em imagens. A humanidade deveria ser “guardada” em álbuns – posteriormente, em arquivos fotográficos. Se a fotografia segmentava em quadro o contínuo do mundo visível, o álbum a reordenava. Os álbuns forneceram sentido, portanto, ao presente que se queria lembrado – que seria deixado como legado para o futuro. Nas palavras de André Rouillé:

Todos aqueles que, em suas respectivas áreas, quiseram seguir os movimentos do mundo, utilizaram-na [a fotografia] para confeccionar uma miríade de álbuns a respeito de monumentos longínquos ou nacionais, construções de pontes ou ferrovias, agitações urbanas, estudo das doenças de pele, observação de povoações indígenas, e evidentemente acerca de indivíduos próximos ou célebres. Essa profusão de álbuns teve o efeito e uma maneira moderna de ver e, dela, tornou-se o instrumento que organiza o mundo visível, fragmentando-o e relacionando-o em séries classificadas de clichês. (Rouillé, 2009, p. 38)

Prestigiosos álbuns, hoje raros, foram publicados sobre o Egito, a Palestina, a Síria, a Núbia, Jerusalém. Encontravam-se também álbuns sobre a guerra, a arqueologia, retratos de celebridades etc. (Roullé, 2009, p. 98-99). Por aqui não foi diferente. Não faltam casos no Brasil oitocentista, como, por exemplo, o álbum sobre Canudos, de autoria do fotógrafo Flávio de Barros, ou o álbum de Klumb, sobre Petrópolis, ou de Marc Ferrez, sobre a construção da Estrada de Ferro Rio-Minas.2 Temos clara a função do álbum de documentar ordenadamente um assunto ou um lugar através de imagens, classificando e redistribuindo-as de acordo com uma certa forma de ver e dar a ver o mundo social: “A fotografia-documento, associada ao álbum e ao arquivo, é encarregada de ordená-lo. Nesta vasta empreitada, a fotografia-documento e o álbum (ou arquivo) desempenham papéis opostos: a fotografia fragmenta, o álbum e o arquivo recompõem os conjuntos. Eles ordenam” (Rouillé, 2009, p. 98-101).

Em sintonia com a cultura visual dos oitocentos, Marc Ferrez, ressalta o seu neto,

fotografou muitas de nossas cidades, retratou construções de estradas de ferros, dando-nos visões de monumentos, pontes, costumes, fazendas, minas e trabalho nas mesmas, interiores de palácios e de igrejas, quadros de nossos artistas, serviços de abastecimento d’água, paisagens de florestas, cachoeiras, rios, portos, aparelhagens industriais, serras, índios, toda a esquadra da Marinha imperial, no longo período de 1865 a 1918. Muitas chapas estragaram com o uso, quebraram-se ou perderam-se, mas as que a família ainda conserva chegam fartamente para conhecermos o Brasil deste período. (Ferrez, 1985, p. 19)

Nos damos conta de que um dos objetivos de Marc Ferrez era catalogar e ordenar fotograficamente o mundo à sua volta. Gilberto Ferrez preservou as imagens obtidas da câmera de seu avô, fazendo cópias. Porém, queremos chamar a atenção aqui para a sua prática de edição de álbuns, o que também permitiu a ele elaborar uma certa narrativa de um passado possível de ser recriado pelas lentes de Marc Ferrez. Os álbuns fotográficos, então, desempenharam papel importante na produção intelectual de Gilberto Ferrez: além de evocarem um passado reorganizado por ele, esses álbuns permitiram que ele homenageasse os fotógrafos, sobretudo seu avô. Paralelamente, possibilitaram divulgar, agregar valor à sua coleção e perenizar aquelas imagens escolhidas por ele como emblemáticas de uma história da fotografia no Brasil.

Gilberto Ferrez tornou-se um importante editor de álbuns fotográficos, principalmente com imagens de sua coleção. Os álbuns valorizavam fotografias das cidades brasileiras no século XIX, entre os quais se destacam: Um passeio a Petrópolis em companhia do fotógrafo Marc Ferrez; Velhas fotografias pernambucanas, 1841-1900; O Rio antigo do fotógrafo Marc Ferrez, 1865-1918; Bahia, velhas fotografias 1858-1900.3 Tais publicações trazem esboços biográficos dos fotógrafos, com destaque para Marc Ferrez.

Observa-se nos investimentos editorais de Gilberto Ferrez um movimento complementar ao do século XIX. Trata-se não somente de catalogar e organizar o mundo em que se vive, mas de esquadrinhar o vivido. As novas versões dos álbuns se colocaram, portanto, a serviço da organização de um passado. Gilberto não publicou todos os álbuns que desejava, pois também gostaria de ter preparado um com fotografias de Marc Ferrez referentes a Minas Gerais e outro dedicado a São Paulo, sobretudo a Santos.4 Sobre isso ele declara a seus entrevistadores:

Eu queria muito que esses álbuns fossem publicados. A fotografia de [inaudível] está pronta. Não é perfeita. Faltam os demais estados, mas outros completarão mais adiante, quando se encontrarem mais dados. O Rio de Janeiro de Marc Ferrez está pronto. Petrópolis está pronto; tem toda Petrópolis, duvido que se arranje mais. Pernambuco está pronto para a segunda edição. Posso fazer da Bahia, de Minas, de São Paulo. [inaudível] E posso fazer mais dois ou três álbuns do Rio de Janeiro. Mas o essencial são esses. Eu quero ver se no ano que vem, no máximo em dois anos, eu publico todos eles. (Ferrez, 1982)

O impulso de Gilberto vai ao encontro dos fotógrafos oitocentistas que tinham a ilusão de catalogar o mundo com fotografias. Entretanto, enquanto aqueles lidavam com imagens contemporâneas, Gilberto Ferrez vislumbrava esquadrinhar e organizar certo passado através de um Brasil fotograficamente ordenado.

Podemos considerar que o primeiro trabalho de Gilberto Ferrez, identificado como álbum, foi publicado no Anuário do Museu Imperial em 1948. “Um passeio por Petrópolis em companhia do fotógrafo Marc Ferrez” saiu como um artigo do anuário, porém tem todas as características do álbum. São oitenta fotografias selecionadas, com legendas de Gilberto Ferrez indicando como se deve observar a imagem. Apesar de o título do trabalho remeter a Marc Ferrez, dezoito fotografias não são de sua autoria: oito são anônimas, duas de Klumb, quatro de Pedro Hees e quatro do atelier Leuzinger. De fato, trata-se de um passeio em companhia de Gilberto Ferrez, pois ele ordenou as imagens, incluindo até mesmo outros fotógrafos.

O autor mostrou a Petrópolis dos veranistas, daqueles que iam para a cidade serrana passar a estação “calmosa” longe das epidemias que grassavam no Rio de Janeiro. Folheando o álbum, encontramos toda a viagem, desde as docas do Rio de Janeiro, onde se pegava o vapor para Mauá, passando por diversas ilhas da baía da Guanabara, pelo porto onde se fazia a baldeação do vapor para o trem da Estrada de Ferro Mauá até a Raiz da Serra. Vê-se também a estrada macadamizada que os veranistas subiam em diligências.

Gilberto Ferrez apresenta, no Anuário do Museu Imperial, como se chegava a Petrópolis e os encantos da cidade. Aponta também os locais frequentados pela família imperial, bem como pela elite carioca e petropolitana. O texto expõe a erudição, mas também o espírito ufanista do autor. Na legenda da fotografia do cais dos mineiros, ele diz: “Quase diríamos Veneza! Mas não é... é o nosso cais dos mineiros, em 1880. No tempo do Onça (governador Luís Vaía Monteiro), era dali que os viajantes, que iam ou vinham das Minas, embarcavam em faluas” (Ferrez, 1948, s.p.).

Gilberto não deixou de elogiar o fotógrafo, quando evocou, em legenda de fotografia de uma ilhota da Guanabara exibindo uma palmeira, o poema de Gonçalves Dias, para dizer que “nossa terra tem palmeiras onde canta o sabiá... Quadro perfeito tirado por fotógrafo artista” (Ferrez, 1948, s.p.).5 Foi o primeiro trabalho de Gilberto em que promoveu o seu avô.6 Em 1993, o Banco Boavista patrocinou a segunda edição deste trabalho, agora sim, em forma de álbum, porém apenas com sessenta imagens, todas elas de Marc Ferrez.

Uma das estratégias de Gilberto Ferrez para direcionar o olhar do seu leitor na observação das fotografias consistia na elaboração das legendas. Por meio delas, o autor instrui o leitor sobre aspectos que não podem ser apreendidos apenas pela observação das imagens, como, por exemplo, quem foi o engenheiro que construiu certa ponte ou o ano de sua inauguração. Apesar de reforçar o poder de expressão das imagens, Gilberto, como bom erudito, não prescindia de pesquisa sistemática em documentação variada para adensar suas legendas.

No início da década de 1950, Gilberto Ferrez começou a estudar a iconografia de Pernambuco com vistas às comemorações do tricentenário da restauração pernambucana. Fruto do contato de Ferrez com intelectuais de Pernambuco – Guilherme Auler, Jordão Emerenciano e José Antônio Gonsalves de Melo – e uma afeição pela cidade do Recife, que lembrava o Rio de Janeiro de sua infância, em 1956 veio à luz o Álbum de Pernambuco: velhas fotografias pernambucanas, 1841-1900. Na introdução, fica clara a importância dos fotógrafos:

Vamos neste trabalho reavivar alguns nomes de fotógrafos que nos deixaram aspectos da cidade, de edifícios, de monumentos de Recife e arredores. Queremos com isso valorizar e criar interesse em torno dessas velhas fotografias que se acham escondidas em álbuns, baús, gavetas esquecidas de seus possuidores, que não se aperceberam do enorme valor que possuem para os estudiosos do passado. (Ferrez, 1956, s.p.)

Gilberto Ferrez discorreu sobre a produção fotográfica no Recife: relata como, logo após a descoberta da fotografia na Europa, a imagem do Recife já estava sendo fixada em daguerreótipo, e um pouco depois, em 1853, Augusto Stahl aportava na cidade para ali permanecer por sete anos e produzir muitas vistas fotográficas, sobretudo entre 1854 e 1859. Além de Stahl, Gilberto arrola outros fotógrafos importantes em Pernambuco. É claro, não esqueceu Marc Ferrez. Sobre ele, escreveu: “Em 1874, como fotógrafo oficial da Comissão Geopolítica do Império do Brasil, de Charles F. Hartt, [...] Marc Ferrez, exímio e um dos maiores fotógrafos que teve o país, tirou vários aspectos de Pernambuco que foram expostos no Rio de Janeiro, na Exposição de Obras Públicas do Ministério da Agricultura” (Ferrez, 1956, s.p.).7

Gilberto em seguida relacionou (no texto) as 57 fotografias que Marc Ferrez fez de Pernambuco. Em 1988, foi publicada outra edição um pouco modificada. Entre outras mudanças, o texto sobre Marc Ferrez não mais arrola as 57 fotografias e afirma: “Weston Naef comparou a obra de Marc Ferrez à do célebre americano Carleton E. Watkins, afirmando que no século XIX pouquíssimos foram os fotógrafos profissionais que dominavam os segredos da arte fotográfica em mais de uma década, sendo que Marc Ferrez conseguiu” (Ferrez, 1988, p. 17). Vale destacar que em boa parte da obra de Gilberto Ferrez – com exceção daquelas sobre um pintor ou desenhista específico – encontramos referências e elogios a Marc Ferrez.

Em 1984, foi publicado pela editora Ex-Libris Rio antigo de Marc Ferrez – paisagens e tipos humanos do Rio de Janeiro, 1865-1918. O álbum é uma homenagem a Marc Ferrez e a um Rio de Janeiro que Gilberto Ferrez ainda trazia nas lembranças de sua infância. O memorialista Pedro Nava fez o prefácio do livro, recordando um tempo da cidade que já se fora. O texto de Nava “Uma cidade antiga que não existe mais” evoca o mesmo Rio que Gilberto Ferrez descreve para seus entrevistadores, com um olhar sentimental e idealizado:

O Rio de Janeiro tinha realizado a corajosa obra do Passos, com todas aquelas ruas... Muita coisa se escangalhou, porque o pessoal estava cansado de ver aquelas casinhas pobrecas e derrubou tudo. A chegada do arranha-céu no Rio de Janeiro é de 1935 é uma coisa! Até aí é o período áureo do Rio de Janeiro. A cidade é perfeita. É a cidade mais bonita do mundo. Vivia-se confortavelmente, todo mundo estava contente. Havia bonde, onde não se podia viajar em pé, havia condução a torto e a direito, não tinha muito automóvel, o automóvel não dominava nada, todo mundo estava contente de viajar de ônibus ou bonde. (Ferrez, 1982)

Além da cidade do Rio de Janeiro, outro grande homenageado do álbum é Marc Ferrez, pois a ele é inteiramente dedicado o texto de introdução da obra, assinado por Gilberto Ferrez. Este já havia publicado na Revista do Patrimônio algumas notas sobre seu avô, entretanto, em uma publicação bem cuidada, acompanhada de um texto longo, com impressão acurada das imagens, fornece ao leitor uma ideia mais elaborada das fotografias e do perfil de Marc Ferrez.

Nesta publicação, todas as imagens são legendadas por Gilberto Ferrez, que descreve os locais fotografados. O livro começa com fotos da entrada da baía do Rio de Janeiro, destacando o Pão de Açúcar. Em seguida, o porto: imagens das docas, do mercado, dos trapiches, do Arsenal da Marinha, enfim da vida à beira-mar. Entramos em seguida no coração da cidade e contemplamos o panorama de cima dos morros do Castelo e Santo Antônio. As imagens vão passeando pelos bairros mais afastados, chegando ao Flamengo, Tijuca, Gávea, Lagoa e mesmo Copacabana. Gilberto destaca o passeio ao Corcovado com fotografia da Estrada de Ferro Corcovado, o mirante em forma de chapéu e, sobretudo, a vista – são duas fotos panorâmicas tomadas do alto do Corcovado na década de 1880. As instituições e igrejas não são esquecidas, bem como os tipos da rua, que Marc Ferrez fotografou parecendo prever o seu desaparecimento. O final do livro traz a cidade depois da reforma de Rodrigues Alves e Pereira Passos, incluindo imagens da Exposição Nacional de 1908, e o autor sugere uma comparação com as fotografias tiradas antes da reforma. Como se vê, um passado da cidade organizado, ordenado neste álbum de fotografias, no qual Gilberto Ferrez apresenta um Rio de Janeiro do final do século XIX ao início do XX, captado pelas lentes de seu avô.

No livro Bahia, velhas fotografias, como nos outros álbuns, é nas legendas das imagens que Ferrez tece seus comentários sobre a cidade que, muitas vezes, vão além da identificação dos logradouros. Como no caso desta legenda para foto de B. Mulock:

Palácio da Associação Comercial da Bahia, antiga praça do Comércio da Bahia, construída no local do forte de São Fernando, demolido para lhe dar lugar. Foi o primeiro prédio em perfeito estilo neoclássico construído no país. Também identificado como Consulado, é obra do arquiteto Cosme Damião da Cunha Fidié. Construção autorizada quando da estada de d. João VI no Brasil, foi inaugurada a 28 de janeiro de 1817 pelo conde dos Arcos, com suntuosa festa, descrita por Tollenare em suas "Notas dominicais tomadas durante uma viagem em Portugal e no Brasil". (Ferrez, 1988, p. 46)

Ou ainda, a legenda para foto de Camilo Vedani: “Porto de Nazaré, onde os saveiros carregavam mercadorias, especialmente farinha de mandioca e louça vermelha de barro, para abastecer a cidade de Salvador. Notar os guindastes protegidos por pequenos telheiros individuais e o casario da cidade” (Ferrez, 1988, p. 87). Os pequenos textos das legendas revelavam a minuciosidade das pesquisas do autor. Compartilhava, assim, o conhecimento que compilava em suas pesquisas, ao mesmo tempo em que orientava o olhar do leitor a considerar aspectos que achava relevantes na valorização das imagens.

Gilberto Ferrez passou um período sem publicar álbuns de fotografia. Depois de Velhas fotografias do Recife, publicado em 1956, se dedicou às gravuras, aquarelas, telas, desenhos – imagens anteriores à fotografia. Segundo ele, cada vez que tentava fazer alguma coisa com a fotografia, saía tão mal impressa que concluiu que, ao invés de ajudar, ele estava prejudicando o avô (Ferrez, 1982). Realmente, na década de 1950 a indústria gráfica não tinha a mesma qualidade que a partir dos anos 1980.8 Quando comparamos as duas edições tanto do álbum Velhas fotografias de Pernambuco como de Um passeio a Petrópolis em companhia do fotógrafo Marc Ferrez, compreendemos Gilberto Ferrez. Somente depois que esteve nos Estados Unidos e conheceu W. Naef, do Metropolitan Museum, é que se dispôs a retomar as publicações dos álbuns de fotografias, podendo, segundo ele, finalmente fazer justiça ao trabalho de seu avô. É interessante notar que a partir desse contato com os profissionais americanos, Gilberto Ferrez passou a incluir informações técnicas nas legendas das imagens. Nos livros publicados a partir da década de 1980, as legendas informam sobre o processo fotográfico, as dimensões, a data, o acervo. É provável que Gilberto Ferrez não somente tenha sido alertado da importância dos processos fotográficos quando da sua viagem para os Estados Unidos, como também tenha se inteirado dos protocolos arquivísticos de referência do objeto fotográfico em publicações. Isso porque, nos artigos de Ferrez sobre fotografia anteriores à sua viagem para os Estados Unidos, ele não aportava uma informação técnica qualificada na legenda.

A atuação de Gilberto Ferrez na divulgação da trajetória da fotografia no país merece algumas considerações complementares: em primeiro lugar, vale ressaltar o seu papel de mediador entre tempos e práticas fotográficas. Nathalie Heinich, em seu livro Sociologia da arte, considera o mediador como aquele ou aquilo que intervém entre uma obra e sua recepção. A autora observa que os mediadores podem ser pessoas, instituições, palavras, coisas e que essas categorias estão intimamente ligadas (Heinich, 2004, p. 88). Assim, tanto a coleção quanto as exposições e os livros organizados por Gilberto Ferrez podem ser considerados mediadores de artistas e fotógrafos oitocentistas. O reconhecimento e, em grande medida, a sacralização da maioria desses artistas se deve, em parte, ao trabalho de Gilberto Ferrez.

O fotógrafo Marc Ferrez, sem dúvida, foi o que mais mereceu a mediação de Gilberto. O investimento do neto do fotógrafo em pesquisar e consolidar um perfil para o artista contribuiu para a construção do lugar que Marc Ferrez ocupa na história da fotografia oitocentista brasileira. Trata-se, entretanto, de uma empresa familiar de construção de memória, isso porque não se pode esquecer que o próprio fotógrafo deixou seu arquivo fotográfico organizado. Tampouco esquecemos que a qualidade do seu trabalho foi reconhecida em seu tempo. Todavia, como garantir essa memória décadas depois de seu falecimento? A leitura atenta do conjunto das publicações de Gilberto Ferrez, bem como o acesso às suas memórias pela entrevista de 1982, nos permitem observar tal investimento na construção de Marc Ferrez como o melhor fotógrafo do século XIX. Não cabe dúvida de que ele ocupa lugar de destaque na história da fotografia, mas boa parte deste reconhecimento se deve à forma como Gilberto geriu o seu legado, ao não poupar esforços para, nas suas próprias palavras, fazer justiça ao avô.

As imagens de Marc Ferrez foram como um catalisador para a apreensão do Rio de Janeiro por Gilberto. A vontade de conhecer as fotografias fez com que ele vivenciasse aquela cidade em que o avô perambulava com sua câmera, a cidade selecionada pelo avô-artista-fotógrafo. A afeição pela fotografia e pelo Rio de Janeiro se confunde com a ligação com seu antepassado, que é uma espécie de paradigma para a análise de Gilberto Ferrez da produção fotográfica oitocentista, afinal “os fotógrafos a que me refiro, sobre quem escrevo, são tão bons quanto o meu avô”. Sobre Augusto Malta, ele diz:

Depois do Ferrez, no Rio de Janeiro, é Malta. Trabalhou como um danado, mas não tinha a qualidade, a arte do Marc Ferrez. Foi um fotógrafo que fotografou tudo. Sabiam que o coitado fotografava o que mandassem. Então, ele tem um material colossal, mas você vai ver, é sujo, não é bem-feito. (Ferrez, 1982)

O julgamento da produção fotográfica de Malta revela um maneira de considerar o trabalho do fotógrafo comissionado: “Fotografava o que mandassem”. Por um lado, desvalorizava o trabalho assalariado em prol de uma autonomia na gestão dos negócios. Por outro, reconhecia o valor documental do arquivo fotográfico produzido por Malta: “um material colossal”.

Gilberto Ferrez buscou guardar algo daquelas cidades antes que elas se verticalizassem. Em sua coleção, valoriza-se o gosto pelo colonial, pela cidade luso-brasileira, referendando a escolha por tombamentos no patrimônio edificado. Contudo, não foi apenas a imagem que lutou para preservar, mas o objeto fotografia – sobretudo as chapas de seu avô – que era muito precioso para o historiador. Em relação a isso, ele diz ao entrevistador quando indagado sobre como fazer as cópias: “Eu já copiei tudo. E hoje eu não quero copiar porque é sempre um risco. O estado está perfeito. É engraçado, a chapa fica toda enferrujada, mas é impecável. E veja bem, é coisa que não acaba mais” (Ferrez, 1982).

Deve-se registrar, ainda, que dos fotógrafos que atuaram no Brasil no século XIX, a maioria era estrangeira. Marc Ferrez, apesar de ter passado grande parte da juventude na França, nascera no Brasil, era brasileiro. Os primeiros artigos de Gilberto sobre Marc Ferrez saíram em periódicos institucionais, ambos ligados ao Ministério de Educação e Saúde (MES), como a Revista do Patrimônio e o Anuário do Museu Imperial. Este dado reforça o interesse de Gilberto em identificar seu avô ao patrimônio cultural da nação brasileira promovendo a consagração de um artista-fotógrafo nascido no Brasil – brasileiro.

Em 1985, o vereador Maurício Azêdo elabora os projetos de lei – números 1.069 e 1.070 – que deram o nome de Marc Ferrez a um logradouro público e a uma escola no Rio de Janeiro. Esses projetos se efetivaram respectivamente em 1988 e 1989, quando uma rua em Campo Grande e uma escola no Alto da Boa Vista foram nomeadas de Marc Ferrez. Tais esforços revelam os resultados do intensivo investimento feito por Gilberto Ferrez na consagração da figura do seu avô como o maior fotógrafo no Brasil do século XIX.

Os modos de ver as imagens não são intrínsecos a elas, pois apreendemos a ver de determinadas formas em tempos e espaços por estratégias e orientação diversas. Em seu estudo sobre história da arte, Michael Baxandall destaca a importância de Picasso para a forma com que se aprecia Cézanne a partir de 1910. Segundo Baxandall, Picasso “viu e extraiu de Cézanne elementos determinados, aos quais deu um tratamento peculiar, compatível com sua intenção pessoal e com seu universo próprio de representação. E, com isso mudou para sempre o modo de ver Cézanne” (Baxandall, 2006, p. 105).

Um paralelo possível seria considerar que Gilberto Ferrez, do mesmo modo que Picasso em relação a Cézanne, ao publicar álbuns com as fotografias de Marc Ferrez, bem como ao escolher e expor os originais do avô, nos orientou sobre as formas como seriam vistas e apreciadas, contando com o ordenamento que forneceu àquelas imagens. O trabalho de Gilberto Ferrez, de certa forma, contribuiu para definir o modo como o grande público recebe e valoriza as fotografias de Marc Ferrez.

Como nos lembra Nathalie Heinich, “montar uma exposição de artista pouco conhecido, de quem se falará em seguida, é ao mesmo tempo firmar sua própria reputação e lançar o artista em questão” (Heinich, 2004, p. 90). Assim, as fotografias de Marc Ferrez foram essenciais para Gilberto Ferrez em sua vida de pesquisador da iconografia e colecionador. A produção intelectual de Gilberto Ferrez, além de promover Marc Ferrez, promoveu também sua coleção. Não podemos esquecer que foi um grande colecionador e que grande parte dessa coleção era de fotografias oitocentistas. À medida que ele divulgava e promovia os fotógrafos, sobretudo Marc Ferrez, Gilberto estava também valorizando sua coleção.

Gilberto Ferrez operou assim com uma dupla mediação. Isso porque, ao definir uma história canônica da fotografia no Brasil, com a valorização da produção de Marc Ferrez, seu avô, e a de outros diversos artistas e fotógrafos, assegura um lugar para si no campo do colecionismo, da crítica de arte e da história da arte. Seus trabalhos celebram também sua própria obra.

Fontes

FERREZ, Gilberto. Velhas fotografias pernambucanas, 1851-1890. Rio de Janeiro: Campo Visual, 1988.

FERREZ, Gilberto. Bahia, velhas fotografias, 1858-1900. Rio de Janeiro: Kosmos; Salvador: Banco da Bahia de Investimentos S.A, 1988.

FERREZ, Gilberto. O Rio Antigo de Marc Ferrez. Rio de Janeiro: Ex-Libris, 1985.

FERREZ, Gilberto. Entrevista concedida a Solange Zuñiga, Paulo Estelita, Márcio Doctors e João Leite em 1982. Arquivo Família Ferrez, Arquivo Nacional. AN-FF-GF.2.0.4 n. cat: 20.

FERREZ, Gilberto. Velhas fotografias pernambucanas, 1841-1900. Recife: Departamento de Documentação e Cultura, 1956.

FERREZ, Gilberto. Um passeio a Petrópolis em companhia do fotógrafo Marc Ferrez. Anuário do Museu Imperial, Petrópolis, Ministério de Educação e Saúde, 1948.

FERREZ, Gilberto. A fotografia no Brasil e um dos seus mais dedicados servidores: Marc Ferrez (1845-1923). Revista do Patrimônio, n. 10, 1946.

FERREZ, Gilberto; NAEF, Weston J. Pioneer photographers of Brazil, 1840-1920. Nova York: The Center for Inter-American Relations, 1976.

Referências

BATCHEN, Geoffrey. Arder en deseos: la concepción de la fotografia. Barcelona: Fotografía, 2004.

BAXANDALL, Michael. Padrões de intenção, a explicação histórica dos quadros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador: a sociedade de corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

HEINICH, Nathalie. A sociologia da arte. São Paulo: Edusc, 2004.

KOSSOY, Boris. Fotografia e memória: reconstituição por meio da fotografia. In: SAMAIN, Etienne (org.). O fotográfico. 2. ed. São Paulo: Senac; Hucitec, 2005.

KOSSOY, Boris. Dicionário histórico-fotográfico brasileiro. São Paulo: IMS, 2002.

LENZI, Maria Isabel R. “Para se conhecer história sem nos fatigar”, a tradição do antiquariado e a historiografia de Gilberto Ferrez. Tese de doutoramento, UFF, Niteroi, 2013, 244 p.

MAUAD, Ana Maria. Um daguerreótipo na terra da rainha Vitória: notas sobre a experiência fotográfica no Reino Unido. Acervo, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 32, n. 2, p. 17-37, maio/ago. 2019.

ROUILLÉ, A. A fotografia, entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Senac, 2009.

VASQUEZ, Pedro. Mestres da fotografia no Brasil, Coleção Gilberto Ferrez. Rio de Janeiro: CCBB, 1995.

Recebido em 18/10/2022

Aprovado em 2/3/2023


Notas

1     A Revista do Patrimônio n. 10, apesar de vir com a data de 1946, foi realmente publicada em 1953.

2     Esses álbuns foram consultados, respectivamente, no Museu da República, no Museu Imperial e no Museu Histórico Nacional.

3     As primeiras edições desses álbuns são, respectivamente, de 1948, 1956, 1985 e 1988.

4     Foi publicado, em 2007, pela editora Magma, o álbum Marc Ferrez – Santos panorâmico, organizado por Gino Caldato Barbosa e Marjorie de Carvalho F. de Medeiros.

5     As fotografias relativas a esse texto não estão em páginas numeradas, e sim, num caderno de fotos dentro do artigo.

6     Apesar de o artigo “A fotografia no Brasil e um dos seus mais dedicados servidores: Marc Ferrez” ter saído na Revista do Patrimônio n. 10, de 1946, essa publicação só foi impressa em 1953, portanto o artigo que seria o primeiro a tratar de Marc Ferrez, na realidade, viria a público depois.

7     As páginas de Velhas fotografias pernambucanas não são numeradas.

8     Para se fazer um livro de qualidade imprimia-se fora do Brasil, como foi o caso do Muito leal, impresso em 1964 em Paris.



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