Acervo, Rio de Janeiro, v. 36, n. 1, jan./abr. 2023

Espaços urbanos e metropolização no Brasil (1940-1970) | Artigos livres

O Rio de Janeiro pelo Brasil

Imprensa, capitalidade e reformas urbanas no início do século XX

Rio de Janeiro by Brazil: press, capital and urban reforms in the early 20th century / Río de Janeiro por Brasil: prensa, capital y reformas urbanas a principios del siglo XX

Suelem Demuner Teixeira

Mestra em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Servidora da Divisão de Processamento Técnico de Documentos Iconográficos e Cartográficos do Arquivo Nacional, Brasil.

suelem@an.gov.br

Moema Vergara

Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Pesquisadora titular do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), Brasil.

moema@mast.br

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar como as reformas urbanas ocorridas no Rio de Janeiro no início do século XX foram retratadas nos jornais de outros estados brasileiros. Os discursos da imprensa sobre a remodelação da então capital federal reforçaram sua representação enquanto símbolo do país e foram essenciais para a legitimação do recém-instaurado regime republicano e para a construção no imaginário da sociedade de que o país adentrara em uma nova era de prosperidade.

Palavras-chave: reforma urbana, Rio de Janeiro, capitalidade, imprensa.

Abstract

The purpose of this article is to analyze how the urban reforms that took place in Rio de Janeiro at the beginning of the 20th century were portrayed in the newspapers of other Brazilian states. The press speeches about the remodeling of the then federal capital reinforced its representation as a symbol of the country and were essential for the legitimization of the newly established republican regime and for the construction in society’s imaginary that the country had entered a new era of prosperity.

Keywords: urban reform, Rio de Janeiro, capitality, press.

Resumen

El objetivo de este artículo es analizar cómo las reformas urbanas que tuvieron lugar en Río de Janeiro a principios del siglo XX fueron retratadas en los periódicos de otros estados brasileños. Los discursos de prensa sobre la remodelación de la entonces capital federal reforzaron su representación como símbolo del país y fueron fundamentales para la legitimación del recién instaurado régimen republicano y para la construcción en el imaginario de la sociedad que el país había entrado en una nueva era de prosperidad.

Palabras clave: reforma urbana, Rio de Janeiro, capitalidad, prensa.

Considerações iniciais

Este artigo representa o encontro de duas historiadoras que buscaram avançar na compreensão da centralidade da cidade do Rio de Janeiro e problematizar o discurso do início da República, de melhoramento e civilização. Paralelamente, temos a consciência de que essas falas ocultam um processo de dominação e exclusão, principalmente das populações mais vulneráveis da própria cidade. E nada mais representativo desse processo do que as reformas urbanas ocorridas no Rio de Janeiro no início do século XX. Para colocar a dimensão nacional nessa discussão, analisamos os jornais de outros estados brasileiros, para ver como estavam relatando as reformas da capital do país.

O Rio de Janeiro possuía uma característica comum a cidades tomadas como vitrine de uma nação: a capitalidade. O conceito de capitalidade foi desenvolvido por Giulio Carlo Argan em L’Europe des capitales, onde analisou a importância da cidade-capital no processo de estabelecimento das monarquias nacionais europeias no século XVII.1 Argan observou que determinadas cidades são tomadas como sinônimos de um país, sendo ou não a sua capital política-administrativa, como Nova Iorque, Roma e Paris. Para o autor, cidades dotadas de capitalidade concentram a grande intelectualidade, as instituições culturais e a elite letrada de um país. E são esses elementos, somados à sua importância política e econômica, que legitimam a sua posição enquanto referência nacional. No caso brasileiro, o Rio de Janeiro ocupa, com certeza, essa posição.

A capitalidade do Rio de Janeiro fez com que a cidade se tornasse uma referência para as demais regiões do país, justificando os investimentos financeiros e simbólicos sobre ela. As publicações nos jornais da capital e de outros estados eram parte desse investimento (Silva; Versiani, 2015, p. 76). No contexto da comemoração do bicentenário da Independência brasileira, é importante analisar aspectos dessa capitalidade. E ter em mente que outro lado desse fenômeno, ou seja, tomar a história do Rio de Janeiro como a história nacional, é uma forma de hegemonia e apagamento das histórias regionais, e da história do Rio de Janeiro como cidade, e não capital.

A abolição da escravatura, em 1888, trouxe um novo cenário para a cidade, produzindo uma euforia cultural e econômica (Rodrigues; Mello, 2015, p. 24) que legitimaria um caminho para mudanças. Em 1889, o Brasil se despedia do Império, seguindo rumo a um novo cenário, em um novo regime e livre da escravidão. Mas os primeiros anos da República foram conturbados, com conflitos políticos internos e a necessidade de se criar símbolos que pudessem legitimar o regime.2 Na primeira constituinte republicana, em 1891, já estava expresso o desejo de mudança da capital federal, como uma forma de romper com o passado colonial e imperial. Em 1893 foi formada a Comissão Exploradora do Planalto Central, com o intuito de estabelecer a nova capital no centro do país. Isso foi feito com o quadrilátero Cruls, demarcação para o estabelecimento do novo distrito federal. Mas Brasília só viria a se concretizar muitos anos depois (Vergara, 2006, p. 911).

No contexto após a abolição da escravatura havia o problema social de incorporação dos ex-escravizados não somente no mercado de trabalho, mas à identidade nacional (Carvalho, 1990, p. 23-24). Não houve investimentos em educação de base que tivessem proporcionado a inclusão das classes populares ao ensino primário e público de qualidade e pouco se fez pelo ensino elementar nas primeiras décadas republicanas (Paiva, 1987, p. 83-85 apud Castro; Lopes, 2002, p. 3). Além disso, houve um intenso crescimento populacional, assim como um aumento do número de pessoas vivendo em condições precárias de moradia, sobretudo na região central da cidade, que sofreu com o adensamento das habitações coletivas somado à incapacidade dos serviços de abastecimento de água e de saneamento. Na complexa e agitada região central coexistiam a modernização e a miséria. Não obstante os inúmeros empecilhos, a capital da República precisava se regenerar e, em meio a todas as contradições, foi começando a tomar novas formas, que se intensificariam no início do século XX com as reformas urbanas.

A capital ostentava a péssima imagem de cidade insalubre e ainda vivia um momento de abalo de sua capitalidade, devido ao novo regime federalista implantado pela República. Sua remodelação estava incluída nos planos de uma grande reforma urbana, composta por duas reformas, uma de responsabilidade do governo federal e outra da administração municipal. O governo federal, presidido por Rodrigues Alves (1902-1906), se encarregara das obras do porto do Rio de Janeiro e das obras complementares à circulação e relacionadas ao porto, como a Avenida Central, a Avenida do Cais (atual Rodrigues Alves) e o Canal do Mangue. À administração municipal, cujo maior representante fora o então prefeito Pereira Passos (1902-1906), coube a abertura e o alargamento de outras ruas (a fim de melhorar a circulação) e medidas direcionadas ao saneamento e ao embelezamento da capital. Foi uma ação em conjunto, duas reformas com objetivos complementares.

Tais projetos foram um investimento material e simbólico na cidade, com intenções que se voltavam tanto para o exterior quanto para o interior do país. Além de melhorarem a imagem da capital no exterior, no sentido da presença estrangeira no país, tanto pela atração de mão de obra quanto por investimentos, visavam também à legitimação do regime republicano nacional e internacionalmente.

O novo regime político, que já havia atendido a interesses das elites oligárquicas, daria um novo passo, o de se tornar um projeto que alcançasse o conjunto da população. Com o apoio da imprensa, as transformações da capital ganhariam uma dimensão nacional, com o intuito de projetar no imaginário da população brasileira um consenso, um sentimento de orgulho nacional e de expectativas de que as modernizações ultrapassassem as fronteiras da capital e se espalhassem pelo país. Segundo Margarida de Souza Neves, as mudanças na capital antecipariam para o restante do país um modelo utópico de um futuro de progresso e civilização de âmbito nacional (Neves, 1992, p. 5). Ao publicar notícias sobre a capital, os jornais dos outros estados não tinham apenas a pretensão de deixar seus leitores a par dos acontecimentos, mas também de provocar neles a aceitação do novo regime.

O Rio de Janeiro na imprensa

Na segunda metade do século XIX, a imprensa ampliou sua presença na sociedade. Os prelos (máquinas tipográficas) já haviam se estabelecido na corte e em algumas províncias, e foram avançando pelo país. A modernização nas máquinas permitiu maior rapidez e, consequentemente, maior tiragem. Surgiram também profissionais dedicados exclusivamente à imprensa, como jornalistas, editores e tipógrafos (Knauss, 2011, p. 20). O desenvolvimento urbano e o crescimento das camadas médias permitiram a ampliação das atividades culturais ligadas à imprensa e à publicação de livros (Sodré, 1996, p. 237). Como a distribuição de jornais era dificultada pela escassa rede de comunicações da primeira metade do século XIX, o desenvolvimento dos correios, dos telégrafos e dos meios de transporte (como as ferrovias), favoreceu a comunicação e a expansão da imprensa no país, intensificando a circulação de notícias e o estreitamento das comunicações entre as regiões brasileiras.

A década de 1880 assistia a mudanças no jornalismo, que se colocava como um importante elemento na construção de uma representação ideal da sociedade, intensificando o seu papel ordenador, pois a imprensa também realiza as mediações, inclusive políticas (Barbosa, 2010, p. 121). O jornalismo assumiu um caráter empresarial e passou a buscar mais leitores, aumentando assim o seu poder de influência. As novas técnicas permitiram impressões mais rápidas e eficientes, maior tiragem e reprodução de fotos e ilustrações. A venda avulsa cresceu, impulsionada por vendedores ambulantes, gazeteiros, bancas e charutarias (Romancini; Lago, 2007, p. 79). Assim como o país, a imprensa também se modificava, atuando em um novo cenário. O Brasil se inseria no processo da moderna comunicação em massa (Velloso, 2006, p. 31).3 “A sociedade, ávida de informações, e o uso político da imprensa, visando manter a direção das mudanças, ampliaram a importância dos jornais e fizeram surgir um número cada vez maior de revistas” (Rodrigues, 2000, p. 21). Houve um crescimento das tiragens e mais rapidez na distribuição, encurtando o tempo e a distância nas comunicações.

No início do século XX, a imprensa foi uma grande incentivadora das mudanças que ocorriam na capital, e uma das maiores disseminadoras dos ideais de modernização no país. Agente do processo de renovação do espaço urbano desde os tempos do Império, associou às inovações técnicas implementadas no final do século XIX um caráter empresarial voltado para interesses capitalistas de ampliação de vendas, consagrando-se como grande empresa. Eram novos tempos, em que os avanços nos meios de comunicação e de transporte aproximavam cada vez mais pessoas e lugares.

Luz elétrica, telefone, cinematógrafo, bondes elétricos, automóvel, máquina de escrever, zepelins, além de estruturas de ferro pré-fabricadas que resultavam em edificações de impacto na paisagem e maquinário gráfico agilizado otimizaram uma imprensa que se pretendia missionária na pregação do “Brasil civiliza-se!”. (Martins; Luca, 2011, p. 11)

O desenvolvimento dos transportes e da mídia estão diretamente relacionados, pois os fios telegráficos costumavam seguir os trilhos ferroviários (Briggs; Burke, 2006, p. 137). A malha ferroviária estava avançando, possibilitando que os periódicos chegassem aos leitores fora dos centros urbanos e reduzindo o tempo de comunicação entre as províncias. Jornais da capital partiam rumo a outras cidades através das agências dos Correios que, por sua vez, utilizavam os trens e bondes para distribuí-los pelas regiões mais distantes (Barbosa, 2010, p. 117).

As mudanças que ocorriam na capital no início do século XX, mais precisamente entre 1903 e 1906, envolveram uma série de interesses e tiveram ampla divulgação na imprensa da época, não somente na cidade do Rio de Janeiro, mas também em outras regiões do Brasil. Os jornais dos outros estados possuíam colunas dedicadas aos acontecimentos em uma capital que emergia enquanto símbolo da civilização e do progresso no imaginário do restante do país. Por esses termos estava-se pretendendo a construção de uma cidade aos moldes europeus, que expurgasse tudo o que lembrasse a colônia, heranças africanas, indígenas e até mesmo portuguesas.

Essa postura da imprensa que, além dos jornais, incluía as revistas ilustradas se intensificou com o novo regime republicano, especialmente na época das reformas, no início do século XX. Como porta-voz dos ideais de progresso material da nova capital, a imprensa atuou na produção de um discurso que rejeitava o aspecto colonial da cidade, justificando assim a urgência de sua remodelação. Jornais e revistas alimentavam o imaginário da elite desejosa de mudanças, publicando diversas matérias sobre o cotidiano da capital, contribuindo assim para que essas pessoas acreditassem estar a caminho de viver em uma cidade requintada. Esse requinte significava um alinhamento com a importação dos costumes europeus desejados pela elite, sem consideração pelos setores populares que habitavam a cidade.

Os jornais procuraram construir uma representação elitizada da sociedade no contexto de consolidação do regime republicano. Envolvidos numa atmosfera de modernização e mudanças, em detrimento das mazelas dos tempos da Colônia e do Império, especialmente na capital, promoveram “campanhas contra os velhos hábitos e pela introdução de novos costumes, sempre sob a égide de um discurso pretensamente científico, de forma a implantar uma nova ordem” (Barbosa, 2010, p. 129). Parte da imprensa buscava convencer o leitor de que tudo se justificava em favor do chamado progresso. Dessa forma, assim como as novas construções ganhavam destaques nas páginas dos jornais, as demolições e os arrasamentos também. Toda atuação dos agentes das reformas foi retratada como indispensável ao desenvolvimento da capital, e consequentemente do Brasil (Azevedo, 2016, p. 167), tanto as intervenções relacionadas ao progresso material quanto as ligadas aos costumes da população.

As revistas ilustradas, as caricaturas e a introdução de fotografias nas publicações foram também elementos de uma imprensa mais moderna e com uma linguagem mais simples e atraente. Em O moderno em revistas: representações do Rio de Janeiro de 1890 a 1930, Cláudia de Oliveira estuda a representação do espaço urbano através das revistas ilustradas, e relata a importância do uso de fotografias a fim de promover a identificação do público leitor com os novos aspectos da cidade. As imagens fotográficas tornaram-se celebrações da nova arquitetura, associando “as transformações da capital a um certo ‘heroísmo’ da burguesia republicana” (Oliveira, 2016, p. 133).

A utilização da fotografia nas revistas ilustradas foi importante para a divulgação da modernização da cidade, diante de uma população em sua maioria não alfabetizada, que via o texto jornalístico tradicional como uma leitura mais difícil e mais cansativa do que as imagens. A inserção das imagens nos periódicos e a ampliação da presença das revistas ilustradas na sociedade provocou uma mudança nas relações entre o público leitor e o discurso produzido, com a valorização dos aspectos visuais na produção.

Segundo Ana Maria Mauad, revistas como Fon-Fon, Careta, Kosmos, Revista da Semana, O Malho, Avenida, entre outras, compuseram o perfil de uma época em que as imagens fotográficas tinham nas revistas ilustradas seu principal veículo de divulgação; um veículo que, assumindo a estética burguesa, criava modas e impunha comportamentos (Mauad, 2006, p. 371-372). Os artigos dessas revistas ultrapassaram as fronteiras da capital e foram reproduzidos em jornais de outros estados. Além disso, algumas dessas revistas circulavam pelo país através de assinaturas ou eram disponibilizadas para venda, a exemplo da revista Kosmos, que possuía representantes em diversos estados e podia ser comprada em livrarias de norte a sul do país.4

O Rio de Janeiro aparecia nos jornais de várias formas: por meio de telegramas, por correspondentes que viviam na capital, ou por matérias escritas pelos jornalistas locais, que mesmo vivendo longe se mantinham informados pela facilidade de comunicação. Os avanços nos meios de transporte e de comunicação estreitaram as distâncias do vasto território brasileiro e as notícias se espalharam pelo país. Através dos jornais locais, os estados brasileiros foram contagiados e se sentiram representados pelas reformas, descritas pelos discursos oficiais e da imprensa como o progresso do Brasil. A circulação na imprensa era intensa. Jornais de outros estados reproduziam notícias dos jornais cariocas, como também produziam seus próprios discursos sobre os “melhoramentos”, vistos como um benefício geral e que deveriam servir de inspiração às gestões das demais regiões brasileiras.

As notícias da capital ocupavam quase sempre as primeiras páginas. Nas sessões chamadas de telegramas, onde os jornais recebiam ou reproduziam mensagens telegrafadas de outras localidades, o Rio de Janeiro tinha grande destaque. Alguns jornais possuíam colunas exclusivas sobre a cidade, chamadas “Cartas do Rio”, como O Estado de São Paulo; A Notícia, do Paraná; Gutenberg, de Alagoas. Além das publicações sobre as reformas nos jornais locais, os leitores de outros estados podiam acompanhar os noticiários através dos principais jornais da capital, pois eles disponibilizavam assinaturas para todo o país. Havia também reproduções das notícias, como, por exemplo, em O Commercio de São Paulo (com a coluna “Imprensa do Rio”) e O Estado de São Paulo (com a coluna “Jornais do Rio”). Nessas colunas, era selecionada pelo menos uma notícia de cada um dos principais periódicos cariocas, tanto os mais elitistas, como A Gazeta de Notícias, o Jornal do Comércio e O Paiz; quanto os mais populares, como o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil.

Desde as cidades mais próximas, como as da região Sudeste e Sul do país, até as mais distantes, o “novo” Rio de Janeiro causava impressões que só seriam possíveis por meio das notícias que lá chegavam através dos jornais. A nova capital serviria de inspiração, pois todo o país começava a se sentir imerso no universo de uma modernização que teria sido iniciada no Rio de Janeiro. As notícias sobre as ações do prefeito Pereira Passos percorreram todo o Brasil. Muitas vezes aclamado, algumas vezes criticado, as comparações entre Pereira Passos e os outros prefeitos era inevitável e estava sempre estampando páginas dos jornais, a fim de demonstrar a indignação dos jornalistas com a administração de sua cidade em relação à administração do prefeito da capital. Um exemplo foi a publicação do jornal Correio Paulistano, que elogiou a ampliação do acesso ao Campo de Santana, demonstrando admiração pela integração do mar à cidade na capital, e aproveitou para chamar a atenção sobre a escassez de áreas verdes na cidade de São Paulo:

Os jornais do Rio noticiaram há dias que o dr. Pereira Passos, prefeito municipal, tinha franqueado os portões do formoso parque do Campo de Santana a veículos e cavalheiros. Essa medida, há muito tempo reclamada, foi jubilosamente acolhida pela imprensa e pela população carioca […]. Verdade é que o fluminense, apesar de suas queixas ultimamente atendidas pela prefeitura, ainda tinha o recurso de percorrer aquela linda praia de Botafogo. Lendo essa notícia lembramo-nos de que São Paulo está em idênticas, senão em piores condições: a mesma vida febril e agitada nas ruas estreitas e a mesma ausência de doces e amplos refúgios de sombra.5

A imprensa contribuiu para o reconhecimento nacional daqueles que atuaram direta ou indiretamente nas reformas, retratados como verdadeiros heróis, como mostra a citação seguinte, publicada no jornal catarinense O Dia, de uma matéria publicada na revista carioca O Commentario sobre a boa reputação do Rio de Janeiro por sediar o Terceiro Congresso Pan-Americano, em 1906. O artigo comemora a boa imagem que a capital teria alcançado após sua remodelação:

Francisco Pereira Passos não surpreendeu ninguém. Todos lhe conheciam as qualidades de administrador, e esperavam todos que ele administrasse bem o município. Sem surpreender, porém, foi além da mais avisada expectativa. A sua obra de transformador da cidade, essa obra colossal empreendida em 1903, e operada, dia a dia, incessantemente, inabalavelmente, infatigavelmente […].6

Os jornais e discursos oficiais, dentro de seu poder ordenador aos moldes da elite, procuraram construir uma representação ideal do seu meio, retratando os agentes como responsáveis pela mudança positiva e radical de uma capital que era sinônimo de epidemias, de sujeira, de atraso colonial. Enfatizar os aspectos negativos do passado da cidade, ao mesmo tempo em que se enaltecia os feitos desses agentes, colaborava para o seu reconhecimento. A população se sentiria representada e esperançosa, acreditando que, graças ao bom trabalho desses homens na capital, em breve desfrutariam de um lugar melhor para se viver também em suas cidades. A assimilação das mudanças deveria ser apresentada não de forma arbitrária, mas de maneira sutil, utilizando discursos que trabalhariam com a ideia de patriotismo, de limpeza, de modernidade, de civilização, de progresso. A imprensa buscou estimular em todos o desejo de fazer parte de uma nova nação, e o uso daqueles que atuavam nas reformas como representantes do patriotismo num momento em que se vendia o discurso de necessidades de mudança, de substituição do velho colonial pelo moderno republicano, facilitou o seu trabalho.

O papel da imprensa foi fundamental para a legitimação dos ideais republicanos no conjunto da população brasileira, à medida que produzia discursos que procuravam mostrar que a remodelação da capital teria elevado o país a um novo patamar. Por isso, os investimentos na regeneração do Rio de Janeiro, na renovação de seu espaço urbano, no resgate de sua capitalidade, foram essenciais, pois a cidade foi o ponto de partida de aceitação do regime pelo país e do país pelo mundo.

O Rio de Janeiro como símbolo do Brasil

A capital é espelho das demais partes componentes do estado. O seu desenvolvimento, o seu progresso, se refletem sobre este, de modo que impulsionar o aproveitamento de suas energias, embelezá-la, dotá-la de avantajosas condições materiais e econômicas, é promover o engrandecimento do todo.7

As palavras do jornal catarinense O Dia, órgão do Partido Republicano Catarinense, fundado em 1901, são uma demonstração da importância simbólica que o Rio de Janeiro tinha para o país. A propagação de ideias, a formação do senso comum, muitas vezes provoca um efeito mais forte do que a própria mudança material, do que o evento em si, neste caso, as reformas implementadas.

O Rio de Janeiro é uma cidade repleta de símbolos que se inserem no que Pierre Nora chama de lugar de memória. A sua centralidade lhe conferia o poder de disseminar ideias e agregar uma memória coletiva como sendo a memória nacional (Carvalho, 1990, p. 23-24). Segundo Nora, um lugar só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica (1993, p. 21). E o Rio de Janeiro era o lugar onde mais se investia nessa aura simbólica. Os investimentos simbólicos na construção da nação durante o século XIX foram muito intensos, e visaram à criação de uma forte unidade nacional, centralizada na figura dos imperadores, baseada em rituais, instituições, tudo o que pudesse construir uma memória que fortalecesse aquele projeto político. Cabe ressaltar que essa centralidade era crucial em um país em que os escravizados eram a principal força de trabalho. A centralização política também desempenhava uma força coercitiva.

Os anos iniciais da República, pautados por interesses elitistas e pela busca por estabilização política e econômica, não tiveram apelo popular suficiente para apagar da memória afetiva da população toda a representação do Império. Mas o regime precisava ser legitimado no país, e o ponto de partida seria a capital federal. Era preciso, naquele momento, investir em uma memória representada por aquilo que a elite entendia por progresso. E isso também significava a inserção do Brasil na lógica capitalista que se mundializava crescentemente.

As reformas eram um passo concreto nesse sentido, a exemplo das obras do porto para o escoamento da produção para o mercado internacional, e construiriam também um novo imaginário, apagando da memória as representações que tivessem afinidades com o período imperial. Esses projetos trariam uma nova significação para a cidade, proporcionando o surgimento de novas imagens em detrimento de representações antigas, que deveriam ser extirpadas. A produção desse novo imaginário atingiria primeiramente a população carioca, para em seguida conquistar a população brasileira. Dessa forma, o regime republicano adentraria na sociedade através do progresso da capital e um novo imaginário seria delineado por meio do contato com esse novo espaço urbano, tanto pelos seus habitantes quanto pelos habitantes dos outros estados, por meio das notícias dos jornais.

Os investimentos simbólicos na arquitetura, na valorização de regiões integradas à natureza, em obras grandiosas como a Avenida Central e nos discursos da imprensa, entre outros, foram essenciais na construção desse imaginário, contribuindo com o poder público na construção de uma memória que exaltava as renovações em detrimento do antigo aspecto colonial. Melhoramentos, civilização e renovação eram algumas das palavras utilizadas por parte de uma imprensa que ignorava os custos sociais e que, pelo poder de seu discurso, buscava construir um imaginário que fizesse com que todo o país acreditasse ter alcançado um novo estágio. Além disso, tal imprensa mostrava somente o que lhe era conveniente, superdimensionando as mudanças, atribuindo a elas um alcance maior do que realmente tiveram.8 Embora alguns jornais reproduzissem as críticas de correspondentes que viam de perto os dois lados das reformas, geralmente o que o leitor recebia eram as novidades de uma capital regenerada, simbolizando um novo Brasil e que serviria de inspiração para o desenvolvimento de outros estados.

Pela forte representatividade, um Rio de Janeiro moderno e sem riscos de epidemias9 significaria a atração de mão de obra e investimentos para outras regiões. As transformações também estariam inseridas num contexto de novas conexões entre o Rio de Janeiro e as oligarquias, principalmente a oligarquia paulista, que tinha maior poder econômico para investir na atração de mão de obra e no desenvolvimento de seu estado. O Rio de Janeiro estava se transformando em vitrine da nação, segundo as palavras de Margarida Neves. Essa característica foi desenvolvida e legitimada ao longo de sua história. Dessa forma, a visibilidade do Brasil estava condicionada à reputação da capital, não somente porque era a capital administrativa, mas porque era a capital cultural. O progresso invocado pelo novo regime não precisava apenas de uma nova jogada política, necessitava também ser visto e materializado na modernização de sua porta de entrada para o exterior: o porto do Rio de Janeiro.

Ao publicar notícias sobre as reformas na capital, os jornais dos outros estados do Brasil contribuíam para a produção de um consenso em favor desse regime político. O Estado passou a usar todos os meios para legitimar um projeto de renovação da capital da República, o “centro convergente da vida social, política e cultural do país” (Azevedo, 2016, p. 167). Matérias pagas em jornais e revistas da época propagavam o embelezamento da cidade (Figueiredo, 1995, p. 68). Uma crônica publicada pela revista Renascença, em maio de 1904, mostra como os discursos da imprensa enfatizavam o papel simbólico do Rio de Janeiro como o conjunto da nação. O artigo incentiva a transformação do Rio de Janeiro, destacando que seu atraso desmoralizava todo o país, pois era a capital que estava inserida no imaginário do estrangeiro quando se pensava no Brasil:

Entretanto o Rio de Janeiro é o Brasil. O estrangeiro que aqui desembarca, de passagem num transatlântico, leva sua rápida visita à nossa desprovida cidade uma triste ideia de todo o nosso país. E esse estrangeiro, como os milhares de outros que por aqui passam, é uma voz a proclamar nos serões de família e nas rodas de amigos o nosso descrédito. Ora, essa é uma questão vital para nós, país que antes de tudo precisa do auxílio do estrangeiro, do sangue, do braço e do capital estrangeiro. Procurar tornar o Rio de Janeiro, pois, uma cidade moderna, é a necessidade indeclinável e inadiável do nosso problema econômico […].

A transformação da cidade do Rio de Janeiro não pode deixar de ser o início de nossa reabilitação econômica. Quando isto aqui for uma bela e saudável cidade, aparelhada para a vida mundana com todos os elementos de comodidade e conforto, a população há de crescer, o comércio se desenvolverá, e a população e o comércio são condições de prosperidade. [...]

E quando o Rio de Janeiro deixar de ser a cidade que ainda hoje é, eu lhes direi o que será o Brasil.10

Detentora de grande representatividade como cidade formadora de opinião, devido a sua importância como capital e polo cultural do país; no imaginário da população, se o Rio de Janeiro progredia, o Brasil progredia. Tal situação justificava a atenção dispensada pelos jornais brasileiros, acompanhando o seu processo de modernização.

É preciso lembrar o papel que o Rio assume como cidade-capital: reformada, iluminada, saneada e modernizada, a capital permitia aos estrangeiros que nela aportavam, aos que circulavam pelas calçadas da grande avenida vestidos pelo último figurino parisiense e aos líderes da República acreditar que o Brasil – nela metonimizado – havia finalmente ingressado na era do progresso e da civilização. Para o país como um todo, os estados – para utilizar a fórmula de Campos Sales – a capital modernizada antecipava um futuro que imaginavam que um dia seria o seu. (Neves, 2003, p. 27)

A imprensa intensificou a posição hegemônica ocupada pelo Rio de Janeiro. Por todo o país, sua “grande avenida” e os feitos de seu prefeito eram notícia. O discurso do progresso estampado nos jornais se tornava mais forte pelas mudanças estarem acontecendo no Rio de Janeiro, detentor de poder simbólico enquanto cidade-capital. Essa função a colocava em primeiro plano no projeto de legitimação do regime republicano (Barbosa, 2010, p. 119). Apesar de sua heterogeneidade, o Rio de Janeiro mantinha papel de destaque no plano das representações: “enquanto capital de fato, como portadora do signo da capitalidade ou como espelho das graças e mazelas do país, o Rio carrega em si o paradigma da nacionalidade” (Costa; O’Donnel; Mendes, 2010, p. 43). As mudanças na cidade encontraram nessa nova imprensa um espaço perfeito, tanto para a difusão de notícias quanto para a formação de um consenso.

Como já foi comentado, as reformas urbanas do Rio de Janeiro representavam não somente a mudança na cidade, mas significavam uma nova era para o Brasil, que acabara de abolir a escravidão, de derrubar o Império e de instaurar o novo regime republicano. As conquistas do Rio eram, para outros estados, as suas conquistas; e as derrotas foram muitas vezes ignoradas pela imprensa e nem sempre chegavam a todos os lugares com a intensidade em que se fizeram presentes na capital. Afinal, para que mostrar o ônus se o povo queria ver progresso?

O poder simbólico do Rio de Janeiro fazia com que a cidade muitas vezes fosse confundida com o Brasil, como mostra o Jornal do Recife, em matéria publicada no ano de 1904. O jornal aponta um novo país que não deixava a desejar para a Argentina. O jornalista aponta a rivalidade não entre Brasil e Argentina ou Rio de Janeiro e Buenos Aires, mas entre Rio de Janeiro e Argentina, como se o Rio de Janeiro fosse o Brasil.

O tempo, o eterno tempo, que tudo modifica e que tudo transforma, de já começa a afastar as espessas colunas de fumo que envolveram sufocantes e densas a ideia desse prefeito da capital do país, que num arrojo hercúleo, vencendo ódios e derrubando barreiras, afrontando embaraços e sofrendo injúrias, fez rolar, com as potentes picaretas do operariado, inúmeros casarões sem estética e sem luz, antevendo na sua obra, que a turbamulta apedrejava, um Rio de Janeiro estético e limpo, belo e salubre, rival da Argentina, digno de ser visitado pelos elementos estranhos.11

A mudança de regime político trouxe para o cenário brasileiro a emergência de outras cidades. São Paulo se agigantava, a recém-fundada Belo Horizonte já havia sido planejada dentro dos ideais progressistas republicanos. Tais ideais aos poucos iam contagiando outros municípios, enquanto alguns caminhavam em passos mais curtos. Porém, com o desenvolvimento da comunicação, o Brasil se conectava, as cidades encolhiam. E os outros estados refletiam em seus periódicos as conquistas materiais da capital, que eram também deles, enquanto representados por ela:

Nota-se nos primeiros atos da administração municipal um ardente e sincero desejo, uma nobre e patriótica aspiração de imprimir à nossa capital um desenvolvimento que a coloque à frente dessas manifestações de progresso que se nota nos principais municípios do estado. É digno de louvor esse movimento, para cujo bom êxito devem convergir os esforços dos que realmente amam esta terra e a desejam próspera, gozando de avantajada posição na federação brasileira.

A capital é o espelho das demais partes componentes do estado, o seu desenvolvimento, o seu progresso, se refletem sobre este, de modo que impulsionar o aproveitamento de suas energias, embelezá-la, dotá-la de vantajosas condições materiais e econômicas é promover o engrandecimento do todo.12

Segundo Margarida de Souza Neves, para o conjunto do país, o Rio de Janeiro é capital, na medida em que as províncias o veem como uma projeção do que ainda está por vir: “o sonho de reproduzir, talvez em escala menor, os jardins franceses da capital, os prédios imponentes, os monumentos, o bonde, a iluminação elétrica, o progresso enfim, sonhado apenas como uma espécie de parusia imanente” (Neves, 1992, p. 10). Em um cenário paradoxal, o Rio, que tem a sua autoridade como símbolo nacional reforçada pela tradição, seria também a cidade do futuro, projetada por uma elite que almejava o progresso. E os plenos poderes concedidos a Pereira Passos, e sua atuação junto às obras empreendidas pelo governo federal, confirmam esse papel simbólico que costuma caber às cidades-capitais (Motta, 2004, p. 29-30).

A imprensa situacionista atuou como aliada da elite republicana, ao amplificar as múltiplas falas dos grupos dominantes, construindo uma unidade discursiva em torno desse projeto político que eram as reformas urbanas (Barbosa, 2010, p. 119). Os discursos foram recursos utilizados na produção de um consenso a favor da modernização da cidade. Traduzindo um pensamento elitista, muitas vezes Pereira Passos foi apresentado como um representante do povo, enquanto boa parte da população não só não usufruiu das mudanças como teve prejuízos com elas. Mas essa questão não costumava ser problematizada nas revistas ilustradas, que com o uso de imagens pretendiam atingir um imaginário positivo sobre a cidade. Tampouco nos jornais, salvo os de oposição, e até esses se revezavam entre elogios e críticas. O discurso é investido de uma força simbólica capaz de convencer as pessoas sobre uma causa e, para isso, não era conveniente por parte da imprensa problematizar.

A emergência do federalismo privilegiou interesses das oligarquias agrárias, especialmente durante o governo de Campos Sales (1898-1902), que buscou neutralizar o caráter agitado da população e o campo de atuação política carioca. Mas, por outro lado, os investimentos na capital eram necessários porque essa era a grande representante do país no cenário nacional e internacional. Os investimentos simbólicos reforçaram essa posição, especialmente durante as reformas urbanas, quando foram apresentadas novidades como a Avenida Central e a Avenida Beira-Mar, enaltecidas pelos discursos da imprensa e pelas fotografias presentes em álbuns, revistas ilustradas ou cartões-postais (que são também discursos). Esses discursos reforçaram a imagem da capital remodelada como síntese de um novo país, inserido nos ideais de progresso e civilização.

Um recurso utilizado foi enfatizar o antagonismo entre o velho e o novo, enaltecendo a renovação da cidade. A utilização de dicotomias como velho, feio, sujo e atrasado versus novo, bonito, limpo e moderno foi um artifício para facilitar a aceitação das mudanças por parte do receptor da notícia, o público leitor, e, consequentemente, a população. O discurso da imprensa enaltecendo o moderno em detrimento do antigo, apontando as mazelas da cidade – como as epidemias, as ruas estreitas, as habitações insalubres etc. – e a cada dia publicando as novidades, mostrando que as mudanças eram possíveis, ajudou a produzir essa expectativa no imaginário de parte da população.

Para os jornais que faziam a propaganda das reformas urbanas, era preciso enfatizar um Rio de Janeiro atrasado, insalubre, epidêmico e de cortiços e ruas estreitas para convencer de que mudanças eram necessárias. Era imprescindível acabar com o passado. Não à toa, muitos jornais se referiam às reformas urbanas pela expressão “melhoramentos”. A conotação dessa palavra era a de salvar, recuperar a cidade de algo degradante, velho e atrasado, embora a realidade revelava que tais melhoramentos eram limitados e voltados para os anseios de uma minoria. As reformas foram apresentadas como uma intervenção urbana que beneficiaria toda a sociedade. No entanto, mostraram-se parte de um projeto de cunho elitista e que excluía o restante da população pobre e de origem africana.

O impacto das reformas pelo Brasil

Como disse Carlos Lessa, em O Rio de todos os Brasis, o Rio de Janeiro como cidade maravilhosa foi uma produção da Primeira República (1889-1930). Sua construção como cartão-postal do país, ao longo de sua história, foi cada vez mais legitimada pelos meios de comunicação por todo o território nacional. Essa construção foi implantada no imaginário nacional de maneira tão profunda, que mesmo após a transferência da capital federal para Brasília, em 1960, o Rio não perdeu sua representação como a vitrine do país, ainda que tenha entrado em decadência década após década.

Um acontecimento tão relevante para a sua história como as reformas urbanas não ficaria de fora das páginas de jornais de outros estados, especialmente pela ampliação dos ideais republicanos pelo país. Esses periódicos produziam e reproduziam artigos sobre a cidade, em consonância com os interesses republicanos de progresso. Tais discursos reforçaram a sua capitalidade e, ao mesmo tempo, foram produzidos e reproduzidos por causa dela. O Rio de Janeiro ocupava o imaginário nacional como o representante do país e, portanto, sua renovação. O que observamos sobre os jornais de outras regiões do Brasil era que eles possuíam um perfil republicano ainda no Império, como o Estado de São Paulo. E que essas reformas urbanas correspondiam aos anseios históricos do ideário republicano de refundação da história nacional.

Mas, apesar de terem sido um recurso de unificação do regime republicano no coração da população, as transformações da capital foram absorvidas de acordo com as realidades de cada lugar. A grande repercussão dessas reformas não significava que as outras regiões tivessem que copiar o padrão do Rio de Janeiro, até porque, apesar do encantamento e das expectativas, cada uma delas possuía suas peculiaridades, sua cultura, sua administração e sua história. Características que as tornaram lugares únicos e que não precisavam, e nem poderiam, absorver toda a suposta modernidade da capital, como era descrita nos jornais.

As notícias que circulavam pelo país foram produzidas por olhares que nem sempre coincidiam com os de seu receptor. Provavelmente esses discursos civilizatórios representavam mais os anseios dos jornalistas, dos editores e do poder público do que os da população local, envolta em seu cotidiano. Mas o que se percebe é que, independentemente da relação da população desses estados com as reformas urbanas, as notícias cada vez mais frequentes dessas mudanças na capital, destacando os seus aspectos positivos, pretendiam influenciar a sua imaginação para que ela se sentisse parte do processo, enquanto brasileira. Lançando mão desse investimento simbólico, seria mais fácil convencê-la a abraçar o regime. Apesar da publicação de algumas críticas (especialmente contra a postura autoritária do prefeito Pereira Passos), em geral, as reformas do Rio de Janeiro eram mostradas como um motivo de orgulho nacional e um exemplo a ser seguido. Além disso, essas mudanças foram utilizadas pelos jornais locais como uma forma de compararem o progresso da capital com a situação em que outras cidades se encontravam. Isso, de certa forma, poderia ser utilizado como uma maneira de reivindicar ou demonstrar implicitamente o desejo de melhorias para suas cidades e despertar na população o mesmo sentimento.

Na produção do consenso sobre a importância da construção da nova capital, foram utilizados discursos que muitas vezes inseriram na memória da cidade apenas os aspectos positivos, ignorando os impactos sociais sobre a população. Além disso, a capitalidade do Rio de Janeiro era, por vezes, superdimensionada, e à cidade era atribuída uma grandiosidade acima de sua realidade. Tais aspectos mostram a ausência de neutralidade no discurso, que está sempre condicionado à realidade que cerca o seu autor. Portanto, quem promoveu as mudanças foi menos a ação do que o discurso, tendo em vista que as reformas abrangeram, em sua maioria, a parte privilegiada da cidade, aquela que o poder público desejava mostrar a fim de alcançar os seus objetivos.

As ações sobre a capital, e sua divulgação nacional e internacionalmente, não teriam acontecido se a cidade não possuísse uma forte representação cultural, construída ao longo do tempo. O Rio de Janeiro carrega o peso de anos de uma capitalidade desenvolvida no decurso da sua história. As instituições criadas no século XIX, num momento em que o Brasil ia sendo configurado enquanto nação, e aquelas desenvolvidas ou planejadas na época das reformas ainda estão lá, em atividade: o Museu Nacional de Belas Artes, o Arquivo Nacional, a Biblioteca Nacional, o Museu Histórico Nacional, o Observatório Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, todos lugares de memória que não apenas simbolizam épocas de uma forte representatividade da então capital, como também carregam em seu acervo documental a história do Brasil. Além disso, há outra característica marcante, que são os símbolos da integração da cidade à natureza, criados anos depois das reformas, mas ainda durante a Primeira República, como o Pão de Açúcar, o Cristo Redentor e as representações das praias de Copacabana e Ipanema. Todos esses lugares são vistos não apenas como símbolos cariocas, mas símbolos nacionais, e ainda exercem um forte poder de atração.

O Rio de Janeiro, em toda a sua história, teve um peso simbólico muito forte, por diversos fatores: sua condição de capital durante muitos anos, ter sido sempre uma cidade portuária e aberta a trocas culturais, a inclinação política de sua população, e até suas belezas naturais. Sua representatividade pode não ser a mesma, mas não se esvaiu por completo nem por ter sofrido um esvaziamento político com a emergência das oligarquias na Primeira República, nem por ter deixado de ser a capital em 1960. E embora esteja passando por um processo de decadência nos dias atuais, ainda se insere no imaginário estrangeiro quando se pensa em Brasil, mesmo que não seja mais a única.

Isso nos faz pensar a representatividade da cidade hoje e ontem, pois o passado e o presente interagem. E o período das reformas urbanas na gestão de Rodrigues Alves e Pereira Passos teve um significado forte para a representação da cidade como referência nacional e como vitrine na esfera nacional e internacional. Os jornais da época não apenas informavam sobre os acontecimentos, mas eram, eles mesmos, agentes da história, produtores de discursos muitas vezes coniventes com o poder público e que teriam peso sobre o consenso da população. E os acontecimentos no Rio de Janeiro, que era representado como o “coração” do Brasil, se espalhavam por todo o país, por regiões que possuíam suas próprias condições e peculiaridades e que não seriam uma cópia da capital. Mas que, de certa forma, se sentiam mais próximas daquelas mudanças por meio das notícias sobre a capital renovada, de acordo com os discursos produzidos sobre ela.

Segundo José Alexandre Tavares Guerreiro, “as reformas urbanas dão bem a medida da mentalidade nova, e o Rio de Janeiro de Pereira Passos se torna amostra exemplar dessa modernização da vida brasileira na grande cidade” (Guerreiro, 2019, p. 44). No entanto, é importante considerar a imensa diversidade regional do país e que nem todas as cidades brasileiras no início do século XX eram como o Rio de Janeiro ou mesmo a próspera São Paulo. Até mesmo as classes que absorviam as notícias da capital em outros estados se desenvolveram de formas diferentes (Pinheiro, 1997, p. 15). Ainda que as capitais dos diversos estados estivessem se modernizando, as condições e os processos de mudança eram diferentes, e o país permanecia, em grande parte, essencialmente agrário e latifundiário. Por outro lado, isso não diminui a importância dessas regiões na formação da história do Brasil, apesar do destaque ocupado pelo Rio de Janeiro, então capital, sede do governo, local de grandes acontecimentos políticos e polo de atração de migrantes e imigrantes. É justamente a diversidade regional que reúne tantas culturas, climas e paisagens diferentes, que fez e faz do Brasil o país que hoje conhecemos.

Fontes

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Recebido em 16/9/2022

Aprovado em 7/2/2023


Notas

1    "Europa das capitais" está presente no livro Imagem e persuasão, editado pela Companhia das Letras.

2    Para um estudo mais aprofundado sobre a utilização de símbolos na legitimação do regime republicano no Brasil, ver Carvalho (1990).

3    John B. Thompson alerta sobre o conceito de “comunicação de massa”, que não deveria ser reduzido a uma questão de quantidade de indivíduos que recebem um produto (a mensagem). Segundo Thompson, o que importa na comunicação de massa não é a quantidade, mas o alcance, a capacidade de disponibilizar o produto a múltiplos destinatários. Ver Thompson (2012, p. 50-54).

4    Informações obtidas na edição da revista Kosmos, que publicava a lista com as livrarias que vendiam os exemplares. Kosmos, ano 1, n. 11, nov. 1904. Hemeroteca Digital, Biblioteca Nacional.

5    Correio Paulistano, Atualidades, 8 ago. 1904. Hemeroteca Digital, Biblioteca Nacional.

6    O Dia, Notas do Dia, 17 ago. 1906. Reprodução pelo jornal O Dia, de Santa Catarina, de matéria publicada na revista carioca O Commentario. Hemeroteca Digital, Biblioteca Nacional.

7    O Dia, 22 nov. 1911. Hemeroteca Digital, Biblioteca Nacional.

8    Segundo Paula de Paoli em Entre relíquias e casas velhas: a arquitetura das reformas urbanas de Pereira Passos no Centro do Rio de Janeiro, as reformas urbanas do início do século XX vieram acompanhadas de um aparato de propaganda maciço que ignorou um século de transformações no período imperial. Tal ação visava convencer os habitantes da cidade de que aqueles espaços seriam transformados, construindo assim um consenso de uma nova vida, em um “Rio civilizado”.

9    Em 1903, o médico Oswaldo Cruz, então diretor-geral de Saúde Pública, criou o Serviço de Profilaxia Específica da Febre Amarela, conseguindo bons resultados contra a doença, que não importunou a população da cidade do Rio de Janeiro durante alguns anos. Além da febre amarela, realizou campanhas contra outras epidemias, como a varíola e a peste bubônica, consagrando-se como o grande nome das campanhas sanitárias da Primeira República.

10    Revista Renascença, João de Barro, Crônicas, edição 3, maio 1904, p. 83-86. Hemeroteca Digital, Biblioteca Nacional.

11    Jornal do Recife, Crônica, 11 set. 1904. Hemeroteca Digital, Biblioteca Nacional.

12    O Dia, 22 nov. 1911. Hemeroteca Digital, Biblioteca Nacional.



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