Acervo, Rio de Janeiro, v. 35, n. 2, maio/ago. 2022

Organização do conhecimento em arquivos | Dossiê temático

A classificação funcional de documentos de arquivo é uma abstração intelectual ou um instrumento prático?

Is the functional classification of archival records an intellectual abstraction or a practical tool? / ¿Es la clasificación funcional de los documentos de archivo una abstracción intelectual o una herramienta práctica?

Renato Tarciso Barbosa de Sousa

Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do curso de Arquivologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília (UnB), Brasil.

renato.sousa1965@gmail.com

Resumo

A abordagem funcional para instrumentos de classificação é uma ideia que tem mais de oitenta anos. O objetivo deste artigo é analisar os principais problemas no uso da abordagem funcional da classificação de documentos de arquivo. A pesquisa é de natureza aplicada e qualitativa no que tange à abordagem do problema, e envolve a metodologia para o uso da abordagem funcional, as experiências realmente funcionais, as questões conceituais e as dificuldades dos usuários.

Palavras-chave: classificação de documentos; plano de classificação de documentos; classificação funcional; análise funcional.

Abstract

The functional approach to classification tools is an idea that is more than eighty years old. The aim of this article is to analyze the main problems in using the functional approach to classification of archival documents. The research is applied and qualitative in nature with regard to the approach to the problem, and involves the methodology for using the functional approach, the actual functional experiences, the conceptual issues, and the difficulties of users.

Keywords: records classification; records classification scheme; functional classification; functional analysis.

Resumen

El enfoque funcional de las herramientas de clasificación es una idea que tiene más de ochenta años. El objetivo de este artículo es analizar los principales problemas intrínsecos a la utilización del enfoque funcional en la clasificación de los documentos de archivo. La investigación es de carácter aplicado y cualitativo en cuanto al planteamiento del problema, y tienen que ver con la metodología para utilizar el enfoque funcional, las experiencias funcionales reales, las cuestiones conceptuales y las dificultades de los usuarios.

Palabras clave: clasificación de documentos; cuadro de clasificación de documentos; clasificación funcional; análisis funcional.

Introdução

A arquivologia, como qualquer área do conhecimento humano, vê sua teoria e sua prática impactadas pela dinâmica dos fenômenos sociais. O que acontece no ambiente privilegiado de existência (as organizações) do seu objeto de trabalho (os arquivos) e na sociedade como um todo tem repercussões importantes em seu pensamento e em seu que-fazer. Afinal, os arquivos refletem e documentam a vida e as atividades do mundo real (Cunningham, 2013).

A expansão das atividades do Estado, a maior complexidade das organizações, o aumento do volume documental, entre outros acontecimentos, formataram conceitos como gestão de documentos, ciclo de vida, teoria das três idades documentais, teoria de valores para avaliação (com Schellenberg, em 1956) e classificação funcional (com Campbell, em 1941, e Schellenberg, em 1956).

Nos dias atuais, qualquer discussão sobre a teoria e a prática arquivísticas precisa ser contextualizada a partir de outros fenômenos, que começaram a ganhar forma na década de 1980, mas apareceram com maior força a partir dos anos 1990. Falamos do ambiente digital e todas as suas implicações na criação, uso, preservação e acesso, e da legalização do acesso à informação, deslocando o trabalho do arquivista para a organização (memória institucional) e o acesso (memória social). Não podemos esquecer os novos comportamentos informacionais, que exigem instrumentos mais sofisticados para atender uma gama, cada vez maior, de possibilidades de busca, das alterações na razão de ser do arquivo, motivadas por sentimentos de pertencimento, inclusão e representação, e da construção de novos paradigmas para a área, que visa dar conta dessa realidade multifacetada. Esses eventos repercutem de maneira importante no desenvolvimento das funções arquivísticas, especificamente a classificação.

A classificação de documentos de arquivo é um tema antigo na literatura e na prática arquivísticas, mas não faz parte da agenda atual das discussões na área. A importância teórica e prática aludida por vários teóricos da arquivologia não corresponde a uma verticalização sobre o tema. Mokhtar e Yusof (2017) afirmam que, embora a classificação seja um elemento-chave da gestão de documentos, ela é pouco explorada no que tange a manuais, normas e funções de avaliação e preservação.

A atividade básica e fundamental de organização de documentos foi deixada de lado pressionada por novos temas. Isso, em parte, explica a razão da existência de uma escassa literatura sobre classificação de documentos. A falta de pesquisa sobre o tema na perspectiva arquivística tem um impacto importante na literatura, no desenvolvimento de sistemas automatizados de classificação, ou mesmo manuais, e na implementação de instrumentos de classificação (Mokhtar; Yusof, 2015).

Este trabalho situa-se no âmbito da representação e organização arquivísticas. E o tema é especificamente a classificação de documentos de arquivo. Essa questão pode ser encontrada no âmbito das funções arquivísticas, um dos campos de pesquisa na arquivologia, conforme defendem Couture, Martineau e Ducharme (1999).

Yakel (2003) definiu e discutiu a representação arquivística e seu papel na prática da área, afirmando que ela pode ser encontrada nos processos de arranjo e descrição. Portanto, a classificação também é um ato representacional. A representação arquivística esteve, por muito tempo, em segundo plano, ou aparecia de forma periférica na área de representação e organização da informação. Todavia, desde meados da década de 1980, muitos trabalhos têm sido elaborados sobre essa temática (Barros; Sousa, 2019).

A abordagem funcional é, atualmente, um pilar da metodologia arquivística. A mudança de paradigma reorientou o corpo de conhecimento dos arquivos para uma ênfase no contexto dos documentos e fora da materialidade deles. Encontramos, dessa forma, métodos baseados na função para identificar quais documentos devem ser capturados nos sistemas de negócio, para sistemas de classificação funcional e avaliação e seleção de documentos, até ideias de proveniência funcional e acesso funcional aos arquivos (Foscarini, 2012).

A formulação teórica da classificação funcional tem oitenta anos (Campbell, 1941), mas os esforços para sua aplicação são relativamente recentes e começaram a ser vistos consistentemente desde o início da década de 1990. Entretanto, estudos recentes desenvolvidos em vários lugares do mundo têm demonstrado as dificuldades na sua elaboração, uso e compreensão.

A questão que apresentamos é a seguinte: será que a classificação funcional de documentos de arquivo não passa de uma abstração intelectual sem aplicabilidade prática? O objetivo é analisar os principais problemas no uso da abordagem funcional da classificação de documentos de arquivo.

A pesquisa é de natureza aplicada, pois pretende, a partir da literatura sobre o tema, definir quais são os problemas encontrados no uso de instrumentos de classificação funcional. Trata-se de uma pesquisa qualitativa no que tange à abordagem do problema. E, ainda, explicativa em relação ao objetivo. O procedimento metodológico abrange a revisão sistemática da literatura referente à trajetória do conceito de classificação nos arquivos, a abordagem funcional na classificação de documentos de arquivo e os problemas encontrados no uso de instrumentos de classificação funcional.

A estrutura deste trabalho envolve, então, uma seção que verificou como se pensou e se praticou a classificação na arquivologia até o aparecimento da classificação funcional; em outras seções trataremos de definir classificação funcional, as críticas aos instrumentos baseados em função e as considerações finais.

Percurso da classificação de documentos de arquivo até a abordagem funcional

Podemos considerar, grosso modo, dois grandes períodos na história das classificações de documentos arquivísticos. O primeiro, que percorre a Antiguidade até o século XIX, e outro do século XIX até nossos dias. O marco da passagem é, sem dúvida nenhuma, o estabelecimento dos princípios de respeito aos fundos e da ordem original. Não são períodos estanques, isto é, práticas do primeiro período podem e são encontradas no segundo. O reconhecimento da importância dos princípios fundamentais da classificação dos arquivos nem sempre se consolidou em uma prática. A história registra e testemunha esse fato (Sousa, 2005).

Para os objetivos deste artigo, trabalharemos, de forma privilegiada, com o final do primeiro período, quando começam a surgir os esboços do que veio a ser considerado como classificação funcional, e, principalmente, com o segundo período, no qual o conceito é sistematizado e, posteriormente, aplicado.

A Prússia, nos séculos XVII e XVIII, com sua reconhecida eficiência administrativa, desenvolveu um método para organizar os documentos produzidos e recebidos pelo governo. Eles passaram a agrupar todos os documentos relacionados ao mesmo assunto e, secundariamente, à mesma transação, atividade ou procedimento, em unidades lógicas e físicas, que ficaram conhecidas como dossiês ou arquivos (files). Esse sistema era chamado de Registratusysteme. Tratava-se, portanto, do primeiro exemplo de um método sistemático de classificação de documentos a partir de um plano baseado em assunto e função (Foscarini, 2009).

A partir das conquistas de Napoleão, esse sistema alemão foi espalhado pela Europa continental, que, segundo Foscarini (2009), melhorou e combinou o registro do documento com sua classificação. O método, que no início esteve restrito às correspondências que entravam e saíam, foi aplicado, também, aos documentos internos. Com essa evolução, a classificação tornou-se o centro do sistema administrativo napoleônico.

Até as primeiras décadas do século XIX, a classificação era elaborada sem levar em conta a origem administrativa dos documentos. Considerava-se como um conjunto único a grande massa documental reunida no arquivo nacional francês, por exemplo. O documento era considerado por seu valor informativo, independentemente de seu contexto gerador (Sousa, 2005).

A classificação funcional, na verdade, não era uma novidade, pois já tinha sido esboçada no Registratur, como vimos anteriormente, que utilizava um sistema baseado em funções e assuntos. No século XIX, Van Riemsdijk, contemporâneo de Muller, Feith e Fruin, autores do Manual de arranjo e descrição, também pode ser considerado um precursor do moderno paradigma pós-custodial, em que a análise das características individuais dos documentos é substituída pela compreensão das funções de negócio, transações e fluxos de trabalho que permitem a criação dos documentos (Ketelaar, 1996).

Esse pensamento foi seguido por Jenkinson, que advogava que os arquivos deveriam sempre referir-se a uma função administrativa, porque eles nunca teriam existido sem ela. Assim, o procedimento para determinar o arranjo seria baseado no estudo da história da organização (Jenkinson apud Orr, 2005).

A partir das décadas de 1930 e 1940, começa a ficar claro que a base da classificação de documentos de arquivo está nas funções em vez da estrutura organizacional. O entendimento das funções é uma parte necessária da compreensão dos documentos (Orr, 2005).

Campbell fazia, na década de 1940, nos trabalhos junto ao arquivo nacional americano, a defesa da ideia de que os documentos eram o resultado de uma função (Silva, 2016). O arquivista americano afirmou que

toda unidade governamental tem certas funções a desempenhar, caso contrário não seria criada. Frequentemente, a mesma função é executada durante um período de tempo por muitas agências diferentes, mas os documentos de cada agência predecessora são usados por seus sucessores. Se esses documentos forem classificados de acordo com os vários aspectos dessa função que eles representam, todas as vantagens da abordagem organizacional podem ser mantidas e, ao mesmo tempo, o classificador pode evitar a compulsão de tentar dividir os documentos em segmentos cronológicos paralelos à vida de cada unidade administrativa envolvida. (Campbell, 1941, p. 434, tradução nossa)

A fundamentação da classificação de documentos de arquivo nas funções desenvolvidas pelas organizações ganhou um defensor de peso. Os trabalhos de Schellenberg, a partir da década de 1950, aprofundaram o entendimento sobre essa discussão. Isso ficou claro nas observações sobre classificação de documentos públicos e nos pontos estabelecidos para elaboração de um sistema de classificação (Schellenberg, 2005).

Entretanto, apesar de pacificada na literatura arquivística, principalmente por causa da extensão da influência de Schellenberg na área, a classificação funcional, na prática, não foi aplicada até o início da década de 1990, nem houve o desenvolvimento de metodologias capazes de fornecer os elementos necessários para elaboração de instrumentos adequados. Viu-se, na verdade, a construção de instrumentos híbridos misturando função, estrutura, assunto, tipos e espécies documentais.

Como parte de um movimento em busca da consolidação de uma classificação funcional, Orr (2005) citou as atividades desenvolvidas no Institute of Archives, do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Essas atividades deram origem ao que ficou conhecido como metodologia de estratégias de documentação, que tinha como finalidade estudar e analisar o que a área de negócios ou de atividade faz e quais documentos devem ser produzidos. Essas estratégias buscavam avaliar documentos de arquivo a partir de uma análise funcional. A abordagem perdeu fôlego com a formulação da macroavaliação, que partia de uma análise funcional (Sabourin, 2001).

A classificação funcional na literatura arquivística das três últimas décadas

Os trabalhos de Schellenberg aprofundaram a questão da classificação, como apresentado na seção anterior. E os que defendem a classificação funcional são, de alguma forma, credores do arquivista americano, pois foi com o seu Arquivos modernos: princípios e técnicas, lançado em 1956, que esse modelo foi disseminado pelo mundo.

Encontramos a definição de classificação funcional em algumas publicações da área. O Glossary of archival and records terminology, de Richard Pearce-Moses, editado pela Sociedade de Arquivistas Americanos em 2005, entende o termo como um sistema para organizar materiais de acordo com a atividade ou função. O Glossary of terms, de 2009, do International Records Management Trust, definiu como um sistema para organizar materiais com base na função, atividade ou tarefa executada por uma organização para cumprir seu mandato, em vez de se basear no departamento, nome ou assunto.

Cruz Mundet (2011) não apenas definiu classificação, mas apresentou os procedimentos de como desenvolvê-la. Vejamos:

Aquela em que os elementos tomados em consideração para classificar os documentos são as funções do órgão ou instituição que gera o fundo. Seguindo esse critério, em primeiro lugar se identificam os processos ou procedimentos que dão origem aos documentos. Agrupados os documentos em série, estas são reunidas sob as classes mais amplas que recolhem todas as atividades que são frutos da mesma função. Por fim, as funções se agrupam, por sua vez, em classes mais amplas, derivadas das linhas de ação do órgão ou instituição. No desenvolvimento de uma classificação desse tipo, é necessário identificar as funções e os processos, agrupá-los e relacioná-los de acordo com piramidal ou hierarquizado. Poderiam estabelecer as classes ou classificações principais ou mais amplas sobre a base das ações, as secundárias sobre a das funções e as classes elementares ou séries documentais deveriam compreender os expedientes1 e outros agrupamentos de documentos resultados de cada processo. (Cruz Mundet, 2011, p. 113, tradução e grifo nossos)

O Dicionário brasileiro de terminologia arquivística, de 2005, não tem nenhuma definição para classificação funcional, mas deixa clara, quando afirma no verbete plano de classificação, que este é “elaborado a partir do estudo das estruturas e funções de uma instituição [...]”, a opção pela abordagem funcional.

Vários autores fizeram a defesa desse modelo de classificação de documentos de arquivo, dentre eles: Duranti et al. (2002), National Archives of Australia (2003), Shepherd e Yeo (2003), Roberge (2011; 2016), Caravaca (2017). Entretanto, o vetor de propagação da abordagem funcional e da análise funcional foi a primeira versão, de 2001, da norma ISO 15.489-1, que recomendava, visivelmente, que o desenvolvimento do plano de classificação de documentos de arquivo fosse baseado em uma análise de funções, atividades e processos de trabalho. Em seguida, a ISO 26.122:2008, intitulada Análise dos processos de trabalho para a gestão de documentos, trouxe orientações sobre como proceder a uma análise funcional das organizações.

Quem fez uma defesa mais severa foi Duranti. Para ela, sem classificação funcional, isto é, sem vínculo arquivístico, um documento de arquivo não pode existir. “Os documentos que não são expressão de uma transação não são documentos de arquivo (records) até que eles sejam colocados dentro de uma relação com outros documentos (records)” (Duranti, 1997, p. 216).

Barbadillo Alonso (2007) entendeu a determinação do fundo de arquivo como domínio da classificação, as séries documentais como objetos da classificação, e os critérios funcionais como o princípio da divisão de fundos e agrupamentos de séries.

Constatamos que houve uma reorientação do conhecimento arquivístico, no bojo de uma mudança paradigmática. Encontramos na literatura uma ênfase cada vez maior, desde a década de 1990, no contexto dos documentos e na materialidade desses registros.

Os documentos de arquivo são representações de ocorrências, que são fenômenos temporais, tais como: atividades, funções, processos, transações ou eventos. E os documentos servem para representar isso de maneira persistente. A representação permanece disponível mesmo após a conclusão da ocorrência que o documento representou. Os documentos são criados no nível de uma atividade ou de um passo (transação/tarefa) dessa atividade e podem ser agregados para formar registros de funções, processos ou outras ocorrências (Yeo, 2012).

Em uma abordagem funcional, a fundamentação está no contexto de criação e uso dos documentos e não no conteúdo do próprio documento. Assim, o documento será classificado de acordo com a razão de sua existência. A vinculação dos documentos ao contexto funcional é um requisito essencial para criar e capturar documentos completos e precisos (National Archives of Australia, 2003).

O National Archives of Australia (2003) sustentou que a classificação de documentos e informações fundamentada nas funções e atividades de negócios da instituição afastava-se da classificação tradicional elaborada com base na estrutura organizacional ou em “assuntos”. Ele justificou essa escolha pelo fato de que funções e atividades são mais estáveis do que estruturas organizacionais. As funções de uma instituição, geralmente, permanecem as mesmas por um longo período. Utilizando o exemplo do setor público australiano, defendeu que mudanças administrativas poderiam resultar na perda ou ganho de funções entre os órgãos. Assim, tornando mais fácil a identificação de documentos que precisam seguir as funções.

Os benefícios em adotar o modelo funcional para elaborar os planos de classificação foram encontrados na literatura e sistematizados por Orr (2005). São eles: a estabilidade que a função proporciona em relação, por exemplo, à estrutura organizacional; o foco no nível corporativo, ou seja, o entendimento de que o arquivista pode obter uma compreensão completa do órgão ou instituição; a facilidade de classificação e recuperação (pensa-se que é muito mais fácil classificar com instrumentos que espelhem as atividades que os usuários executam); o fornecimento do contexto dos documentos, pois ele é um elemento essencial de um documento por definição; a fundamentação da avaliação2 e a descrição, importante para a avaliação funcional ou macroavaliação; a gestão proativa de documentos, já que a classificação funcional fornece a base para a gestão eficaz dos documentos.

A classificação funcional permite tornar o vínculo arquivístico explícito, criar relações estáveis entre os documentos, contextualizá-los, guiar sua acumulação, fornecer uma estrutura lógica, identificar os que são parte de um agrupamento, de um fundo, cumprir uma função legal e administrativa, dirigir a criação de dossiês e séries e permitir a recuperação de documentos em seu contexto. Além disso, ela fornece controle após a criação dos documentos, garante a gestão integrada de sistemas de documentos híbridos, identifica responsabilidades para gestão dos processos administrativos, administra privilégios de acesso, facilita a avaliação e a descrição de documentos, melhora a transparência e possibilita a reconstrução da evolução histórica dos fundos (Caravaca, 2017).

Trabalhar com a classificação funcional exige dois esforços importantes. O primeiro é a fragilidade conceitual de termos importantes ou cruciais para sua elaboração, como é o caso do conceito de função e os seus desdobramentos, subfunção, atividade, tarefa/transação/rotina. O segundo é a consolidação de uma metodologia que passa necessariamente pela análise funcional, que encontra suas bases fora da arquivologia.

A literatura deixa claro que não existe um modelo comum de classificação baseado em funções, nem nos modelos de números de elementos, nos de números de níveis ou em respeito às convenções de nomenclatura (Sousa, 2005; Orr, 2005).

Críticas à abordagem funcional da classificação de documentos de arquivo

As críticas podem ser sistematizadas em relação à falta de um consenso sobre o significado do conceito de função, a ausência de metodologias que indiquem os procedimentos para a construção de planos de classificação funcionais e as dificuldades encontradas pelos usuários para compreender e utilizar esses instrumentos.

A primeira questão que se apresenta é a que define o próprio tipo de classificação: o significado do conceito de função e seus desdobramentos.

A ideia de que os documentos têm uma relação especial com as funções da organização e, dessa forma, devem ser processados, armazenados e acessados, surgiu na prática profissional antes de ser descrita na literatura arquivística. Os documentos são, essencialmente, informações sobre atividades e não sobre assuntos, objetos, produtos finais ou temas (Duranti; Franks, 2015).

O australiano Cunningham (2013) deixou bem claro que os arquivos são criados quando pessoas ou organizações executam funções e atividades. Funções não são meros aspectos da vida da organização criadora de documentos. Pelo contrário, os criadores de documentos (um órgão público, por exemplo) podem ser considerados como nada mais do que episódios da vida da função.

Um dos desafios a ser superado para a implementação de planos de classificação funcionais, de acordo com Alberts et al. (2010), é o domínio de conceitos relacionados com a análise organizacional e com a análise de processo, em particular. Destacamos que isso consistiu em uma mudança drástica em relação à classificação tradicional por assunto, objeto ou produto final.

A literatura arquivística brasileira fornece em pequeno número a definição de função. Na verdade, trabalhamos com apenas três significados, sendo dois deles traduções de normativos internacionais. Um é o que aparece na tradução para o português da Norma internacional de descrição de funções, do Conselho Internacional de Arquivos, elaborada pelo Arquivo Nacional, em 2008. Outro é fornecido pelo Arquivo do Estado de São Paulo, em sua publicação Manual de elaboração de planos de classificação e tabelas de temporalidade de documentos da Administração Pública do Estado de São Paulo: atividades-fim, de 2008, que entende a função como “o conjunto de atividades que o Estado exerce para a consecução de seus objetivos, que pode ser identificada como direta ou essencial (atividade-fim) e indireta ou auxiliar (atividade-meio)”. E, mais recentemente, a definição que aparece na ABNT NBR ISO 15.489-1:2018, como “conjunto de atividades que cumpre as principais responsabilidades para alcançar os objetivos estratégicos de uma entidade de negócio”.

Abaixo, apresentamos o Quadro 1 com as principais definições de função encontradas na literatura internacional.

Quadro 1 – Definições de função na literatura arquivística

Definição

Fonte

Todas as responsabilidades atribuídas a um órgão para cumprir suas finalidades mais amplas para os quais foi criado

Schellenberg, 2005

Funções são as maiores unidades da atividade de negócio em uma organização. Elas representam as grandes responsabilidades que são gerenciadas pela organização para atingir seus objetivos. São agregados de alto nível das atividades da organização

State of New South Wales, 2018

Uma função é: (1) qualquer propósito, responsabilidade, tarefa ou atividade de alto nível que seja atribuída a uma instituição pela legislação, política ou mandato

Sabourin, 2001

Funções são as maiores responsabilidades realizadas por uma organização em cumprimento às suas finalidades. A função de uma organização é uma entidade lógica e é descrita usando-se verbos transitivos. A estrutura fornece a condição operacional com a qual a função é desenvolvida

Shepherd; Yeo, 2003

Qualquer objetivo de alto nível, responsabilidade ou tarefa prescrita como atribuição de uma entidade coletiva pela legislação, política ou mandato. Funções podem ser decompostas em conjuntos de operações coordenadas, tais como subfunções, procedimentos operacionais, atividades, tarefas ou transações

Conselho Internacional de Arquivos (CIA), 2008

Uma unidade de atividade de negócios de uma organização. As funções representam as principais responsabilidades que são geridas pela organização a fim de cumprir os seus objetivos. As funções são agregados de alto nível das atividades da organização. As funções podem ser originadas por meio da legislação, da política ou do desenvolvimento de programas, ou podem representar um conjunto de tarefas ou atividades que resultam em bens ou serviços que se espera que a organização forneça

International Records Management Trust (IRMT), 2009

Responsabilidade ou objetivo principal assumido pela sociedade ou realizado por um agente e integrado por um conjunto de atividades e processos

Heredia Herrera, 2011

Conjunto de atividades do domínio de assuntos e de gestão interna de uma organização

Roberge, 2011

As atividades de uma organização ou indivíduo realizadas para cumprir algum mandato ou missão

Society American of Archivists, 2005

Fonte: elaboração própria.

Observamos que nas definições apresentadas sobressai o fato de a função ser vinculada à responsabilidade de uma organização e de ser formada por um conjunto de atividades.

Estudos, entretanto, têm mostrado as dificuldades no entendimento do conceito de função. Eastwood escreveu, em 1994, que estamos longe de compreender o que entendemos por função na arquivologia e como a função rege a criação dos documentos. Parece que isso continua a predominar. Bak (2012) afirmou que a gestão de documentos promovia a classificação funcional sem definições autorizadas de funções e seus subcomponentes, e sem diretrizes sobre como implementar um sistema de classificação funcional.

Os termos função, assunto e aqueles vinculados à estrutura organizacional são frequentemente confundidos. Isso é evidente quando se analisam os planos de classificação elaborados. Foscarini (2012) defendeu que, ao separar as funções de uma organização das estruturas em que elas são materializadas, e considerando-as abstratas como o único critério para organizar os arquivos, os arquivistas acabaram por criar arranjos baseados no assunto.

Hurley (1993) afirmou que não sabe exatamente o que é uma função, mas sabe o que não é. Por exemplo, ela não é um assunto. É verdade que existe uma semelhança superficial e que essa semelhança é mais marcante nos níveis mais baixos da atividade administrativa (transação). A diferença entre função e assunto é mais clara nos níveis mais altos da organização. Ele cita, por exemplo, que legislar é função evidente de uma legislatura (função: legislatura). Entretanto, são numerosos os assuntos tratados na jurisdição do governo.

Que regras (se existirem) determinam a taxonomia e a nomeação das funções? Quão amplo ou estreito deve ser o âmbito de uma função? O que distingue as variações dentro de uma função das diferenças que caracterizam uma nova função? Esses questionamentos foram feitos por Hurley na década de 1990. Entretanto, não encontramos, na literatura, respostas a eles.

Apesar da crescente influência das abordagens de classificação baseadas em atividades funcionais ou de negócios, há variadas interpretações de como isso deve ser feito. Dessa forma, outros princípios de classificação, como estrutura da organização, tipo ou conteúdo do documento, são igualmente comuns (Guercio, 2002).

Duranti e Franks (2015) entenderam que um dos fatores que contribuem para tornar a análise das funções difícil tem a ver com a relatividade das noções de missão (geralmente associada à função) e processo ou meio (comumente relacionado à atividade). As autoras sugerem que os estudos em sociologia, administração e psicologia social podem ajudar no entendimento do conceito de função.

Observamos na literatura arquívistica, e especificamente naquela sobre classificação funcional de documentos de arquivo, a ausência de uma orientação clara sobre como determinar o escopo de uma função. Na verdade, não fica evidente como construir uma hierarquia consistente e abrangente de funções, subfunções etc. e, principalmente, como representar processos que atravessam a organização (Foscarini, 2012).

A distinção entre função e processo é difícil de se aplicar na prática, pois é muito artificial. Os desenvolvedores de classificação funcional carecem de uma base e de metodologia teórica consistente. Profissionais diferentes podem produzir representações funcionais diferentes. Quando os processos de trabalho são horizontais ou sequenciais, cruzam múltiplas funções. Assim, a informação criada ao longo desses processos não pode ser agrupada, o que dificulta a existência de uma estrutura hierarquizada. Por isso alguns autores (Mas; Marleau, 2009; Alberts et al., 2010) estão buscando a classificação facetada como alternativa à classificação representada em uma estrutura hierárquica.

A norma ISO 26.122:2008 indicou o uso de conjunto de processos ou subfunção, um desdobramento da função antes das atividades. O Arquivo do Estado de São Paulo (2008) também trabalha com a ideia de subdividir a função em subfunções, que definiu como o “agrupamento de atividades afins, correspondendo cada subfunção a uma modalidade da respectiva função”, bem como o modelo Bascs (Business Activity Structure Classification System) canadense.

Apesar da tendência quase naturalizada da classificação funcional, os arquivistas carecem de teoria e metodologia para desenvolver os instrumentos, produzindo, assim, algo muito subjetivo, pouco claro ou completamente artificial (Orr, 2005).

A maioria dos sistemas de classificação é híbrida, mistura princípios de classificação na mesma estrutura hierárquica. Por exemplo, inclui uma classe para contratos (espécie do documento), para um setor em particular (estrutura organizacional), para determinados clientes ou para uma abordagem baseada no assunto (Bak, 2012). Para os finlandeses Packalén e Henttonen (2016), a classificação funcional envolve, frequentemente, confusão metodológica e conceitual, além de questões de usabilidade.

Foscarini (2006) procurou uma justificativa para o fato de a classificação não ser apoiada desde o início por metodologia e teoria sólidas. Para ela, isso pode estar relacionado ao fato de ser de responsabilidade do criador organizar seus próprios documentos, de acordo com as necessidades de suas atividades. Onde não há orientação arquivística, o usuário vai construindo alternativamente suas práticas, muitas delas complicadoras de um futuro tratamento técnico-científico da documentação.

A partir do final da década de 1990, começam a surgir metodologias para construção de planos de classificação baseados na função. A primeira delas foi a metodologia Dirks (Designing and Implementing Recordkeeping Systems), desenvolvida na Austrália, pelo arquivo nacional. Em seguida, apareceu a metodologia Bascs, no Canadá, que substituiu um plano de classificação baseado em assuntos. Em 2003, Shepherd e Yeo ofereceram em seu manual uma metodologia baseada em Schellenberg (função-processo-atividade). Em 2010, Alberts et al., analisando as limitações práticas e teóricas da classificação funcional, propuseram a Semântica Integrada de Serviços de Informação (Isis). Esse modelo está ancorado na introdução de uma orientação de negócio, na estrutura de classificação facetada juntamente a uma metodologia para produzir uma representação da estrutura abstrata. E, mais recentemente, Mokhtar e Yusof (2017) construíram o Modelo de Classificação de Documentos (RCM), que está concentrado na primeira fase dos requisitos funcionais da gestão de documentos, denominada “criação”. Para as autoras, a principal preocupação ao criar documentos é garantir que eles sejam produzidos no contexto, sustentando seus metadados, gerenciamento de agregações e ferramentas de classificação. Os documentos são controlados por meio de processos como registro, classificação, seleção, regras de acesso, autorização de uso, destinação, transferência, destruição e administração de sistemas de documentos. Portanto, a classificação dos documentos ocorre na fase “criação”.

No Brasil, o Arquivo do Estado de São Paulo publicou, em 2008, o Manual para elaboração de planos de classificação e tabelas de temporalidade de documentos da administração pública do Estado de São Paulo: atividades-fim. Nesse trabalho, a metodologia proposta é dividida em dez momentos, que tem início com uma análise funcional a partir dos documentos de direção (decretos de criação, regimentos internos etc.) para estruturar o plano de classificação em funções, subfunções e atividades.

A metodologia Dirks, elaborada pelo arquivo nacional da Austrália, no final da década de 1990, é considerada como a primeira e mais consistente metodologia publicada disponível que fornece uma abordagem holística do estabelecimento de um efetivo e significativo programa de gestão de documentos e de arquivos. Ela é formada por oito passos, e um deles é o Passo E, intitulado Análise da Atividade de Negócio, que visa desenvolver um modelo conceitual do que a organização faz e como faz. Isso serve como base para a construção de um sistema de classificação baseado na função. São analisadas, então, as funções, atividades e transações. As atividades são definidas como as principais tarefas realizadas pela organização para cumprir cada uma das funções. Diversas atividades podem ser associadas com cada função; e transações, como a menor unidade da atividade de negócio. As transações ajudam a definir o escopo das atividades e fornecem a base para identificar os documentos que são necessários para alcançar as necessidades de negócio da organização (Xie, 2007).

O Bascs é a metodologia canadense para construção de um sistema de classificação funcional. Ele tem uma hierarquia de três elementos destinada a caracterizar os contextos de negócio e organizacional: função, subfunção, atividade. As subfunções são os maiores e únicos passos do processo de negócio com que uma organização realiza a função. Esse modelo desconstrói amplos domínios de responsabilidade governamental em basicamente três níveis: (1) função, que é o nível de atividade mais alto indicado por um título de bloco, (2) subfunção, que é o segundo nível mais alto de atividade representado por um título principal, e (3) a “atividade”, usada como um termo genérico para atividade, ação ou transação (Sabourin, 2001).

À medida que iam surgindo metodologias para a elaboração de planos de classificação baseados em função ou planos de classificação funcional, começaram a aparecer estudos apontando dificuldades no uso e na construção desses instrumentos, principalmente a partir de pesquisas com estudos de caso e discussão teórica (Calabria, 2004; Orr, 2005; Mas; Gagnon-Arguin, 2007-2008; Foscarini, 2009; Foscarini, 2010; Gunnlaugsdottir, 2012; Ifould; Joseph, 2016; Packalén, 2016; Mokhtar; Yusof, 2017).

Um desses estudos foi realizado em uma cidade australiana e desenvolvido por Calabria (2004), que analisou os problemas do plano de classificação funcional. Os principais resultados foram a dificuldade que os usuários tinham para identificar a função de nível superior para classificar o documento e a complicação que sentiam em distinguir as funções. Os termos de pesquisa preferidos pelos usuários foram baseados em assuntos (43%), atividades (20%) e função (8%). Outra questão interessante levantada pela pesquisa foi que, em apenas 52% dos casos, foi identificada com êxito a função correta para um documento de arquivo. Citou, ainda, um caso em que uma permissão de casamento era classificada em Atividades Culturais e Recreativas.

Ao analisar o uso de instrumentos de classificação baseados em funções entre organizações no Reino Unido, Canadá e Austrália, Orr (2005) encontrou entendimentos variados e inconsistentes de classificação, princípios de classificação e construção e uso de tesauros. Embora a teoria da gestão de documentos tenha orientações relativamente sofisticadas sobre os princípios segundo os quais os documentos devem ser classificados, na prática, as unidades político-administrativas divergem consideravelmente e são frequentemente reféns de esquemas culturalmente dados.

Em um estudo sobre a organização e a recuperação de documentos institucionais digitais no contexto da gestão descentralizada dos recursos informacionais, que buscou conhecer as práticas dos funcionários de uma instituição para gerenciar os arquivos que ficam em seus espaços individuais de trabalho (“computadores pessoais”), Mas e Gagnon-Arguin (2007-2008) perceberam que essas pessoas não usavam o plano de classificação institucional. Nos espaços individuais de trabalho, há uma preferência, identificou o estudo, por recorrer a estratégias pessoais de organização de documentos, mais adequadas às suas necessidades e muito distantes da abordagem funcional.

A experiência canadense, relatada por Albets et al. (2010), demonstrou que a implementação da classificação funcional de documentos de arquivo exige uma mudança cultural significativa. É mais fácil para os usuários se relacionarem com a estrutura organizacional, que mostrou ser bem mais compreendida, do que com a baseada em funções, que parece uma abstração intelectual e não instrumento prático. Há, inclusive, uma naturalização da percepção que os funcionários têm de seu trabalho. Primeiro, o trabalho desenvolvido por um empregado é pessoal. Segundo, o trabalho que ele faz é da sua unidade político-administrativa e não de uma função. Isso gera uma sensação, para os funcionários, de que a perda de controle sobre a estrutura da taxonomia dos arquivos dificultará a busca ao documento demandado.

As classificações que refletem as funções organizacionais, para Alberts et al. (2010), falham em espelhar a forma como os usuários finais de tais sistemas realizam o seu trabalho diário. Há uma dificuldade em relacionar as suas atividades com o modelo funcional, e o resultado é uma pobre adoção e baixa qualidade do instrumento. O maior obstáculo é a percepção de que o trabalho dos servidores/empregados é pessoal ou pertence à sua unidade de trabalho e não à função.

Reclamações de usuários incluem percepções de que a classificação funcional não é intuitiva, é desnecessariamente complexa e mais demorada do que por outros meios (Orr, 2005). Processos de negócios geralmente abrangem funções, com os funcionários reunindo e compartilhando as tarefas e as informações necessárias para realizá-las. Impor classificação funcional em tal contexto resulta em ilhas informacionais, o que dificulta a produção de visões horizontais da informação (Bak, 2012). Isso quer dizer que a divisão social do trabalho dentro dos órgãos e instituições não permite que o funcionário perceba o processo como um todo, tornando difícil de compreender a função à qual pertencem os documentos.

Na prática, criadores e usuários de documentos (pessoas que cumprem as funções organizacionais) parecem preferir qualquer forma de classificação de documentos, exceto a classificação funcional. A pobre adoção pelos usuários da classificação institucional leva à gestão de documentos paralela e não oficial (Mas, 2011; Bak, 2012).

Considerações finais

A característica do mundo arquivístico exige que a classificação de documentos de arquivo seja inteligível para funcionários leigos. Entretanto, plano baseado em funções exige de quem o opera um entendimento de que suas atividades fazem parte de um conjunto de relacionamentos que tem início com a missão, finalidade ou objetivo principal da organização. A divisão social do trabalho nas organizações contemporâneas dificulta ou embaça esse entendimento. O servidor/funcionário geralmente está envolvido com um processo, ou mesmo com uma pequena parte dele. A visão do todo não lhe é natural. Perguntamos se, na verdade, deveria ser.

A existência de poucos estudos metodológicos sobre a elaboração de planos de classificação funcional, a fragilidade conceitual dos principais elementos evocados para essa construção, o caráter abstrato da função e a divisão social do trabalho nas organizações explicam a situação descrita pelos autores sobre os esquemas baseados na função.

É transparente a confusão terminológica existente no gerenciamento da classificação de documentos de arquivo. As definições, quando existem, são herméticas e ambíguas. E isso atrapalha os arquivistas, resultando em instrumentos inconsistentes para um número grande de atividades (Foscarini, 2012).

As metodologias propostas falham em apresentar questões consistentes sobre a estrutura, a lógica e a semântica, elementos fundamentais para a construção de planos de classificação de documentos de arquivo. Apesar de Xie (2007) acreditar que a junção dos pontos positivos das metodologias Dirks e Bascs seja uma opção interessante para a elaboração de planos de classificação baseados na função.

O conhecimento do comportamento do usuário na busca e armazenamento da informação sugere que não é mais “natural” os documentos serem organizados por função, por evento, por estrutura organizacional, por localização, por classificação de segurança ou mesmo por assunto, como sugerem os estudos de caso já mencionados neste artigo. A classificação é um reflexo dos propósitos humanos particulares e não de processos naturais. A partir dessa argumentação, Bak (2012, p. 296) faz o seguinte questionamento: “Por que os arquivistas não tratam os hábitos pessoais de gestão de documentos dos criadores e usuários de documentos como importantes para questões de classificação?”.

Os novos comportamentos informacionais dos servidores/funcionários das organizações demonstram que o usuário quer ser acolhido pelos sistemas de informação, quer que suas demandas e expectativas sejam contempladas na construção de tais sistemas.

A literatura aponta de forma clara que a classificação baseada na função é uma abstração intelectual com dificuldades importantes para ser um instrumento prático, amigável e adequado, conforme se exige de algo que será operado por usuários leigos.

É fundamental equacionar a manutenção do vínculo arquivístico, que é garantido pela classificação, e os interesses dos usuários, com suas buscas transversais. Esse é um caminho seguro para enfrentarmos os desafios impostos pela organização dos documentos de arquivo para preservação e acesso.

A adoção da análise funcional parece ser o caminho adequado, conforme sugere a literatura. Entretanto, é importante considerá-la como o ponto de partida para a elaboração do plano de classificação de documentos de arquivo, mas não como ponto de chegada. Corremos o risco de fazer um mapeamento de processos que arrasta não só os documentos de arquivo, mas, também, os documentos de referência, como conceitua Schellenberg (2005). Não precisamos disso, mas de identificar quais são os processos que geram os documentos e como se dá a relação dessas entidades.

O nível alto de abstração da função dificulta o entendimento tanto para o usuário quanto para os arquivistas. Como defendido pelo National Archives of Australia (2003) e por Smit (2018), é necessário construir um plano de classificação de funções e atividades. Ele tem dois objetivos. O primeiro é representar os níveis mais altos vinculados à função e seus desdobramentos em um plano de classificação de documentos. O segundo é servir como um vocabulário controlado do qual se retirariam os termos adequados para a nomeação das unidades de classificação nos seus níveis mais altos. A partir dessa estrutura abstrata definida pela análise funcional, teríamos que construir os níveis mais baixos, no caso de uma estrutura hierárquica, tendo como fundamento as séries documentais, os tipos documentais, as formas como os usuários utilizam os documentos em seu processo de trabalho etc.

Conceber sistemas e processos de trabalho que facilitem aos produtores de documentos a criação e armazenamento de bons documentos é vital, mas desafiante na prática. Isso requer habilidades de engenharia de sistemas de alto nível junto a uma sólida compreensão dos requisitos de gestão de documentos, processos de trabalho e comportamento humano (Cunningham, 2021).

A questão da classificação de documentos de arquivo tem vários aspectos, cada um com suas complexidades. Não existe uma solução simples, nem estamos perto de um tratamento completo, mas diferentemente do que pensam McLeod (2014), em sua defesa do bom em relação ao perfeito, e Lappin et al. (2021), em sua proposta de modelo no local para a gestão de documentos digitais, precisamos avançar em equipar nossos sistemas (de gestão de documentos ou de negócios) com requisitos que possibilitem o uso, a preservação e o acesso ao longo do tempo. Cria-se, assim, uma articulação consistente entre as preocupações centradas no arquivista e as preocupações centradas no usuário.

As críticas encontradas na literatura à elaboração, à compreensão e ao uso de planos de classificação baseados em funções tornam o instrumento mais próximo de uma abstração intelectual, que satisfaz mais o arquivista do que o usuário e, como observado, ainda, de planos que são construções completamente arbitrárias. E, também, distante de uma ferramenta prática e amigável de intervenção na organização dos documentos.

Poderíamos pensar que uma alternativa seria o usuário operar com a classificação por meio de metadados fornecidos ao sistema, que a partir deles faria os relacionamentos necessários para classificar os documentos. E aí entramos no campo da classificação automática, que já começou a ser tratada pela literatura arquivística e fora dela, cuja importância deverá ser acompanhada por mais estudos e pesquisas.

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Recebido em 19/11/2021

Aprovado em 11/1/2022


Notas

1    Que seriam, no Brasil, os processos ou dossiês.

2    Paul Sabourin (2001) apresenta a dificuldade de aplicar a macroavaliação ou avaliação funcional a partir de plano de classificação baseado em assunto. Fala, ainda, da importância de usar o modelo funcional para os instrumentos de classificação (Sabourin, 2001).



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