Acervo, Rio de Janeiro, v. 35, n. 2, maio/ago. 2022

Organização do conhecimento em arquivos | Dossiê temático

O suporte do documento arquivístico digital

Uma proposta de definição conceitual apoiada nos princípios da teoria do conceito e da ontologia formal

The archival medium of digital records: a conceptual definition proposal based in the principles of the concept theory and the formal ontology / El soporte de los documentos digitales: una definición conceptual apoyada en los principios de la teoría del concepto y de la ontología formal

Linair Maria Campos

Doutora em Ciência da Informação pelo convênio entre o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) e a Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora adjunta do Departamento de Ciência da Informação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação

da UFF, Brasil. 

lmcampos@id.uff.br

Rosely Curi Rondinelli

Doutora em Ciência da Informação pelo convênio entre o Ibict e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.

roselyrondinelli@gmail.com

Maria Luiza de Almeida Campos

Doutora em Ciência da Informação pelo convenio Ibict/UFRJ. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UFF e da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Brasil.

marialuizalmeida@gmail.com

RESUMO

O artigo, apoiado nos princípios para a elaboração de definições apresentados na teoria do conceito, de Ingetraut Dahlberg, e nas teorias da ontologia formal, apresenta uma proposta de conceituação de suporte do documento arquivístico digital, considerando-se a relação desse conceito com o contexto tecnológico do documento arquivístico digital, no âmbito da arquivologia e da diplomática.

Palavras-chave: suporte do documento arquivístico digital; definição conceitual; teoria do conceito; ontologia formal.

ABSTRACT

The article, based on the principles for the elaboration of definitions presented in Ingetraut Dahlberg’s concept theory and in the theories of formal ontology, presents a conceptual proposal for archival medium of the digital record, considering the relationship of this concept with the digital record’s technological context, from the approach of archival science and diplomatics.

Keywords: digital records’ archival medium; conceptual definition; concept theory; formal ontology.

RESUMEN

El artículo, con base en los principios para la elaboración de definiciones presentados por la teoría de concepto, de Ingetraut Dahlberg, y por las teorías de la ontología formal, presenta una propuesta de conceptuación de soporte del documento archivístico digital, teniendo en cuenta la relación de ese concepto con el contexto tecnológico del documento archivístico digital, desde un enfoque basado en la archivística y la diplomática.

Palavras clave: soporte del documento de archivo digital; definición conceptual; teoría del concepto; ontología formal.

Introdução

Documentos arquivísticos digitais estão cada vez mais presentes no cotidiano das instituições e das pessoas, tendo contribuído para o seu desenvolvimento social e cultural, em particular pelas facilidades de acesso que propiciam (Fadel et al., 2013). Sua natureza, entretanto, oferece desafios para a sua gestão e preservação, que passam pela compreensão não só de seu papel, como também de suas características básicas, das quais o suporte e o contexto tecnológico são partes essenciais. Para entender o conceito de suporte e de contexto tecnológico no documento arquivístico digital, recorremos à literatura da arquivologia e da diplomática. Ocorre, porém, que, por vezes, os textos de ambas as disciplinas são de entendimento difícil para os profissionais de outras áreas, como, por exemplo, a da ciência da computação, já que a linguagem natural narra, às vezes de forma ambígua, a conceituação consensual pretendida por uma comunidade discursiva. Por meio de definições precisas, podemos reduzir a complexidade da realidade e trazer o foco para os aspectos relevantes, de acordo com um propósito a ser atingido. Entretanto, para que isso seja possível, é necessário que a conceituação seja construída de acordo com princípios teóricos e metodológicos sólidos. Do contrário, a ambiguidade e a imprecisão na representação podem levar a entendimentos equivocados. A definição precisa é a base para a construção de modelos conceituais, os quais são produtos da organização do conhecimento, possuindo um papel fundamental não só como instrumentos que apoiam a organização de objetos informacionais, como também para ajudar no entendimento da natureza desses objetos, em suas múltiplas facetas.

Nesse contexto, o objetivo deste trabalho é apresentar uma proposta de conceituação de suporte do documento arquivístico digital e como ele se relaciona com o contexto tecnológico e com o conceito de documento arquivístico digital a partir da arquivologia e da diplomática. O resultado é uma proposta de definição desse conceito a partir do padrão definitório proposto por Dahlberg (1978) em sua teoria do conceito. Ali a definição necessita ter um conjunto de características que possam evidenciar seu gênero próximo e sua diferença específica, componentes e função, o que Dahlberg denomina definições reais (ou conceituais). Com essa visão espera-se elucidar as características do suporte do documento arquivístico digital bem como os conceitos a ele relacionados de modo fenomênico. Em outras palavras, pretende-se que o entendimento do conceito em questão perpasse as fronteiras do olhar disciplinar, permitindo sua compreensão tanto do ponto de vista de profissionais (e estudantes) da arquivologia, quanto da diplomática, e também dos profissionais de tecnologia da informação, responsáveis pelo desenvolvimento de sistemas computacionais que vão lidar com o documento arquivístico digital e sua descrição por meio de metadados. Embora os aspectos relativos ao suporte do documento arquivístico digital sejam bem entendidos em seu papel de artefato tecnológico pelo profissional de tecnologia da informação, é importante que este esteja consciente sobre o papel do contexto tecnológico para a preservação do documento arquivístico digital no longo prazo. Além disso, faz-se necessário explicitar os aspectos tecnológicos que envolvem o suporte de forma precisa para que, independentemente da formação do profissional, o conceito de suporte do documento arquivístico digital seja entendido sem ambiguidades.

Dessa forma, a explicitação do conceito ajuda no entendimento mais geral do que é o suporte de um documento arquivístico digital, suas características, seu papel e sua ligação com outros conceitos aos quais está proximamente relacionado, tais como o componente digital e o contexto tecnológico. Está fora do escopo deste trabalho um estudo mais detalhado e abrangente do documento arquivístico digital, considerando, por exemplo, aspectos como os elementos da forma documental. Destacamos, porém, que a definição precisa de suporte do documento arquivístico digital pode ser usada como base para modelar esse conceito em um modelo conceitual amplo, que pretendemos abordar em trabalhos futuros, visando a compreensão dos conceitos relacionados ao documento arquivístico digital como um todo.

Como procedimentos metodológicos específicos para a elaboração das conceituações propostas utilizaram-se princípios para a definição de conceitos, a partir de estudos oriundos das áreas da ciência da informação e da ontologia aplicada. O levantamento dos conceitos de suporte do documento arquivístico digital e de seu contexto tecnológico foi feito mediante revisão de literatura nas áreas da arquivologia, diplomática e ciência da computação, com busca nos portais Capes, Brapci e Google Acadêmico, sendo coletadas as definições e analisadas considerando-se as perspectivas dessas áreas. Em um momento seguinte, essas definições foram tratadas à luz da teoria do conceito, para identificação das suas características essenciais, e da ontologia formal, para identificar de forma precisa as relações de partição envolvidas.

Para os procedimentos metodológicos de seleção de material e tratamento de resultados e sua interpretação, utilizou-se como apoio a análise de conteúdo de Bardin (1995). Essa abordagem nos permitiu identificar os aspectos-chave a serem observados na análise das definições, de modo a torná-las precisas, a saber: 1) a natureza do conceito, que remete a uma categoria que estabelece o seu gênero; 2) características essenciais que lhe conferem identidade; 3) relações partitivas precisas baseadas nas teorias da mereologia explicadas no âmbito da ontologia formal, quando elas forem pertinentes para a definição, de modo a eliminar a ambiguidade da terminologia em relação ao uso de “parte de”.

Este trabalho está estruturado da seguinte forma: na segunda seção, apresentamos os princípios teóricos para a definição de conceitos; na terceira, discutem-se o suporte e os conceitos relacionados conforme revisão de literatura, porém com o olhar a partir dos pressupostos necessários para obter uma definição que esteja alinhada com a elaboração de um modelo ontológico; na quarta seção, uma proposta de definição para os conceitos-alvo; por fim, são apresentadas as conclusões.

Princípios para a definição de conceitos

Existem várias definições para a noção de conceito. No presente trabalho, adotamos a de Dahlberg, que considera conceito como sendo uma unidade de conhecimento, ou seja, tem um caráter objetivo e verificável, em contraste com definições que consideram o conceito como uma unidade de pensamento, de caráter subjetivo (Dahlberg, 2009). Para Dahlberg (1981, p. 16), o conceito é uma “tríade que consiste de (a) um referente (e.g. qualquer objeto material ou imaterial, atividade, propriedade, dimensão, tópico, fato etc.), (b) as afirmativas necessárias (predicações) sobre um referente as quais definem as características de um referente e (c) a forma externa, comunicável do referente e suas características, o termo”.

Em relação às características do referente, Dahlberg (1981) aponta que estas se dividem em essenciais e acidentais, sendo as essenciais presentes em todas as ocorrências (instâncias) do referente, e as acidentais apenas em algumas das instâncias. Por exemplo, possuir barba é uma característica acidental do ser humano, enquanto possuir cérebro é essencial.

Observa-se que, para Dahlberg, a definição de um conceito se dá a partir de afirmações que são feitas sobre um item de referência que existe no mundo real, cuja existência independe da mente do indivíduo ou de “um objeto de pensamento que possa ser verificável” (Dahlberg, 1978, p. 12). Esclarecemos ainda, de acordo com Gomes e Campos (2019, p. 45), que “a fim de acumular conhecimento sobre o referente, deve-se coletar enunciados sobre este referente”, para identificar suas características, sendo que uma delas estabelece a categoria à qual o referente pertence. Além disso, as informações sobre ele, “suas características, ajudam a identificar o gênero próximo e seus demais relacionamentos como outros conceitos em um dado domínio”. A definição revela, ainda, a ordenação dos conceitos a partir de um compromisso ontológico (acordo firmado) estabelecido em um dado domínio, sendo essa mesma definição consequência dessa ordenação (classificação) (Campos, 2010).

Este método de apropriação do conteúdo conceitual de um dado referente é denominado de abordagem onomasiológica. Esta parte de uma análise que extrapola o linguístico, a palavra, e que se pauta no extralínguístico, ou seja, nas características do referente em um dado mundo possível. As definições elaboradas a partir da abordagem onomasiológica são o resultado de uma prática de autoria, do especialista e do classificacionista, e são construídas para atender o propósito de uma dada forma de classificar um objeto em um certo contexto. Seu modus operandi parte, dessa forma, da identificação das propriedades do referente (Campos, 2017).

De acordo com Thalheim (2010, p. 3.116), a atividade de conceituação tem como objetivo “coletar objetos, conceitos e outras entidades que supostamente existem em alguma área de interesse e os relacionamentos que existem entre eles. É, portanto, uma visão abstrata e simplificada do mundo que desejamos representar”. Considerando essa visão simplificada, Olivé (2007) destaca a questão do compromisso ontológico, que assume um modo específico de ver um domínio, e que há vários modelos conceituais possíveis para um mesmo domínio, ou seja, diversos compromissos ontológicos possíveis. Existem outros pontos de vista sobre essa discussão (Smith et al., 2005), mas, independentemente da perspectiva, há vários autores (Seppälä et al., 2017; Dahlberg, 1981; Guizzardi et al., 2004) que defendem a importância da definição para que se tenha um entendimento claro do objeto de referência. Considerando a importância das definições, buscamos compreender como podem ser formuladas de forma precisa.

Dahlberg propõe uma série de regras para a definição de conceitos, que se dividem em recomendações para a forma e para o conteúdo de definições. Por exemplo, em relação à forma, recomenda que contenham apenas as características necessárias do referente, mas não as acidentais. Em relação ao conteúdo, que se deve evitar definir um termo de uma maneira que não expresse o que ele realmente significa. A pesquisadora também aconselha que as definições estejam em conformidade com a natureza do referente (Dahlberg, 1981, p. 21). No caso específico do referente ser um objeto material, a autora observa que a definição deve contemplar as características de forma e estrutura da matéria e, além disso, se é um produto feito pelo ser humano, o seu propósito. Baseando-se nesses princípios, Campos (2001) propõe, apoiada em Dahlberg (2008), que o conceito no âmbito de um contexto pode ser definido pelo que ele é, ou seja, por sua característica essencial naquele contexto, que é expressa pelo gênero próximo. Após isso, devem-se evidenciar as partes ou etapas (dependendo da natureza do conceito) que o constituem e, por último, apresenta-se a sua finalidade/função. Dahlberg destaca ainda a importância de se identificar a categoria a que o conceito pertence de modo a ajudar a identificar o seu gênero. Isso possibilitará não cometermos erros na identificação das características de um conceito. Propostas de categorias de conceitos podem ser obtidas nos trabalhos de Dahlberg (2008) e em ontologias de fundamentação (Smith et al., 2005; Guizzardi, 2005).

Seppälä et al. (2017), por sua vez, em consonância com Dahlberg, também recomendam usar definições do tipo gênero-diferença (genus-differentia), onde o gênero está alinhado com uma entidade de um nível de generalidade superior e a diferença especifica os casos que são abrangidos pelo termo superior. A essas considerações acrescentamos a necessidade especial de esclarecer o conceito de parte de uma entidade, pois, na linguagem coloquial, a expressão “parte de” é muitas vezes usada de forma inconsistente, e “parte de” é de uso comum na literatura ao se definir o que é uma entidade.

Guizzardi (2011) aborda teorias da mereologia, que explicam a relação de partição e a questão de dependência entre partes. Para o autor, a noção de partição deve levar em conta o todo em que as partes se inserem. Dessa forma, para Guizzardi, para que um todo exista é necessário que haja uma condição que forneça unidade para as suas partes. Outro aspecto importante ao se delimitarem as partes de um todo é o princípio de suplementação fraca (weak suplementation), em que, se uma entidade tem uma parte x, então é obrigatória a existência de outra parte diferente e disjunta de x (Guizzardi, 2011, p. 142).

Ainda em relação ao aspecto do todo, existe a questão ontológica da dependência. De acordo com Guizzardi (2005), verifica-se que há dois tipos de dependência: a genérica e a existencial. Na dependência genérica, se um todo depende genericamente de uma parte, então a parte é necessária para o todo, mas pode ser substituída por outra. É o caso da pessoa e do seu coração. Em uma dependência existencial, se x é dependente existencialmente de y, então y tem obrigatoriamente de existir sempre que x existir. É o caso da pessoa e do cérebro. Guarino (1997) menciona ainda a dependência de classe, onde a existência de um indivíduo que pertence a uma dada classe implica a existência de um indivíduo diferente pertencente a uma classe diferente. É o caso da mãe e do filho.

Isso posto, podemos analisar conceitualmente o objeto de estudo, o suporte do documento arquivístico digital, sob o olhar das perspectivas teóricas ora apresentadas.

O suporte e conceitos relacionados

Para entender o conceito de suporte do documento arquivístico digital faz-se necessário antes compreender o conceito de documento arquivístico digital (que passa pelo entendimento prévio do que é um documento arquivístico) e de componente digital, pois ambos estão relacionados ao suporte. Esses conceitos são detalhados a seguir.

Documento arquivístico digital

A definição de documento arquivístico digital deve considerar o contexto e o objetivo a que se presta este artigo. O contexto aqui considerado é o das teorias da diplomática e da arquivologia, considerando que essas visões se complementam, pois, conforme apontam Duranti e Thibodeau,

enquanto a teoria diplomática examina documentos arquivísticos como itens, permitindo a identificação das características embutidas nos próprios documentos, a teoria arquivística, ao tratá-los como partes de agregações, examina suas relações com outros documentos, com as pessoas envolvidas em sua criação e com as atividades no âmbito do qual eles são produzidos e usados. (Duranti; Thibodeau, 2006, p. 15)

Do ponto de vista da arquivologia, um documento arquivístico é “um documento produzido ou recebido no decorrer de uma atividade prática como um instrumento ou um subproduto dessa atividade e retido para ação ou referência” (Duranti, 2009, p. 44). Ainda segundo essa disciplina, um documento arquivístico é antes de tudo um documento, ou seja, “uma unidade indivisível de informação constituída por uma mensagem fixada em um suporte (registrada), de maneira sintática estável” (Duranti; Preston, 2008, p. 785). Dessa forma, o documento arquivístico entendido como um documento implica que ele não é simplesmente um conjunto de dados ou informação (Duranti; Thibodeau, 2006).

De acordo com a teoria da arquivologia associada à da diplomática, o documento arquivístico deve ter, necessariamente, ainda conforme Duranti e Thibodeau (2006, p. 16),

relações explícitas com outros documentos arquivísticos dentro ou fora do sistema digital, por meio de um código de classificação ou outro identificador único; [...] um contexto administrativo identificável; [...] um autor, um destinatário e um redator; e [...] uma ação, da qual o documento arquivístico participa ou que apoia, seja em relação aos procedimentos ou como parte do processo de tomada de decisão.

Uma visão consolidada desses aspectos pode ser encontrada na diplomática digital, onde se estabelece que um documento arquivístico digital deve ter ainda um originador e um produtor, uma forma fixa e conteúdo estável (Duranti, 2009).

Observa-se que essa visão da diplomática digital aponta características que um documento arquivístico não digital possui (por conta de ser documento arquivístico) e não menciona explicitamente determinadas características específicas do documento arquivístico digital, do ponto de vista de sua condição ontológica, de ente no mundo, como, por exemplo, a questão de sua codificação em dígitos binários, ou as peculiaridades de seu suporte. Isso porque, do ponto de vista da diplomática, essas características se inserem no contexto tecnológico do documento, conceito este que será explorado mais adiante.

Pode-se perceber que, em sua conceituação, o documento arquivístico digital herda as características do documento arquivístico, porém existem determinadas características que são herdadas do documento digital, como, por exemplo, sua materialização em componentes digitais, lembrando que o documento digital é, conforme The InterPARES 2 project glossary (InterPARES, 2021, p. 17), “um componente digital, ou grupo de componentes digitais, que é salvo, tratado e gerenciado como um documento”, ou ainda, de acordo com o Glossário de documentos arquivísticos digitais (Conarq, 2020, p. 25), “informação registrada, codificada em dígitos binários, acessível e interpretável por meio de sistema computacional”. Dessa forma, existe um ente que é a informação registrada em dígitos binários, e existe outro ente (ou grupo de entes) que é responsável pela sua interpretação (o sistema computacional).

Suporte de documento

De acordo com o glossário do InterPARES 2 (InterPARES, 2021), suporte é definido como “material físico ou substância sobre a qual a informação pode ser ou está registrada ou armazenada”, enquanto suporte digital é definido como “material físico, como um CD, DVD, DAT ou disco rígido, usado para armazenamento de dados digitais”. Já o glossário do Conarq (2020) define apenas suporte, como sendo a “base física sobre a qual a informação é registrada”. Percebe-se que a definição de suporte digital do InterPARES não apresenta as características essenciais do material do suporte digital, limitando-se a exemplificar os materiais que seriam adequados. Entretanto, essas características existem e podem ser identificadas como um artefato físico no qual a informação em unidades de bit (dígito binário que pode representar 0 ou 1) pode ser gravada por meio de tecnologia magnética, ótica ou eletrônica, armazenada e recuperada (Anzel et al., 2021). Cabe lembrar que essas características se aplicam no contexto das tecnologias atuais, podendo ser ampliadas no futuro1 e, ainda, que para ser um suporte não basta apenas ser uma substância ou material com essas características físicas. Dessa forma, um pedaço de um CD2 ou a substância de que é feito, por exemplo, é um material, mas não é um suporte digital, pois o CD é um artefato.

Entendido como “o portador físico da mensagem” (Duranti; Thibodeau 2006, p. 56), o suporte se constitui em componente fundamental porque “um documento não existe até que seja afixado numa base” (MacNeil, 1998, p. 111). Ocorre que com documentos tradicionais, como os que se apresentam em pergaminho ou papel, mensagem e suporte não se separam, ao contrário, estão inextrincavelmente ligados um ao outro. Já com documentos eletrônicos, incluídos os digitais, se dá exatamente o contrário, ou seja, “o suporte (disco, fita magnética) existe como uma parte física separada do documento” (MacNeil, 1998, p. 111). Em outras palavras, quando se trata de documentos digitais, o portador físico da mensagem não está inextrincavelmente ligado ao documento e não o armazena tal como ele é compreendido ao ser visualizado pelo ser humano, mas sim como uma cadeia de bits usada para reproduzi-lo. Nesse caso, a escolha desse suporte pelo produtor tanto pode ser arbitrária como baseada em razões relativas mais à preservação que à função do documento.

O que ocorre aqui são dois tipos distintos de formação de um todo (considerado como o documento). No primeiro caso, do documento convencional, o suporte é uma parte essencial mandatória e inseparável do todo (não podendo ser substituída). No segundo caso, do documento digital, o suporte também é uma parte essencial mandatória do todo, porém não é inseparável (ou seja, pode ser substituída por outra semelhante). Em ambos os casos, a parte (no caso, o suporte) pode ter existência em separado, mesmo sem estar ligada ao todo. Essas noções dizem respeito aos conceitos de agregação, de parte essencial e mandatória, que são estudados na literatura da ontologia formal. Nesse contexto, podemos pensar nos bits afixados no suporte como sendo um agregado mandatório, que reflete uma dependência genérica, pois “um agregado mandatório se refere a se uma parte pode existir sem ser parte de um agregado de certa classe. É o caso, por exemplo, de um coração humano que tem de estar ligado a um corpo humano, mas não necessariamente o mesmo corpo para sempre” (Guizzardi et al., 2002, p. 13, grifo dos autores). Ou seja, de maneira análoga, a cadeia de bits do documento digital precisa estar sempre afixada em um suporte, sendo esta mandatória para o todo, mas não necessariamente o mesmo suporte para sempre, sendo este separável. Outra diferenciação é se o suporte é essencial ou não para a existência do documento, refletindo uma dependência existencial, ou seja, “o conceito de parte essencial se refere a se um objeto pode existir sem ter um objeto particular como parte. […] O cérebro humano em relação a uma pessoa é um exemplo de parte essencial (na verdade é um exemplo tanto de parte essencial quanto de parte inseparável)” (Guizzardi et al., 2002, p. 14, grifo dos autores). Dessa forma, o suporte é parte essencial de qualquer documento, e, no caso do documento convencional, além de ser essencial é inseparável.

O apêndice 1 do template for analysis do projeto InterPARES (2000, p. 6) também informa que “o suporte é considerado um componente essencial do documento arquivístico, visto que um documento não existe até que seja afixado a um portador físico”, corroborando o que foi argumentado previamente. Entretanto, Duranti e Thibodeau, no contexto da diplomática, afirmam que “com documentos arquivísticos eletrônicos, o suporte não deve ser considerado uma parte constituinte do documento, mas uma parte do contexto tecnológico” (Duranti; Thibodeau, 2006, p. 18). Essa afirmativa deve ser interpretada com muito cuidado, pois pode dar margem a um entendimento ambíguo, uma vez que parece paradoxal ao dizer que o suporte não faz parte do documento, quando vimos, de forma inequívoca, e pela própria definição do glossário da área, que ele, de fato, é parte essencial de qualquer documento. A fim de entender o que os autores querem expressar, uma vez que já estabelecemos o que é o suporte, precisamos definir de forma precisa duas coisas: o que as diferentes relações de partição implicam, e assim entender o uso de “parte de” em um enunciado; e o que é “contexto tecnológico”, para, a partir daí, propor uma reformulação dessa proposição de modo a deixar bem claro o significado pretendido. Assim, quando levamos em conta certas características dos conceitos, determinados conflitos conceituais ficam evidentes e acabam acarretando entendimentos equivocados. Vamos ver mais adiante como a metodologia de análise definitória, apresentada em estudos de Dahlberg e apoiada em elementos da análise ontológica, nos possibilita evidenciar esses conflitos e tornar mais explícitos alguns aspectos relativos a propriedades e características desse “objeto digital”. Antes, porém, é preciso contextualizar o ponto de vista de Duranti e Thibodeau.

Duranti e Thibodeau (2006, p. 18) reconhecem que o suporte é necessário para que um documento arquivístico digital exista, mas apontam que, como ele “não está inextricavelmente ligado à mensagem, não armazena o documento como tal, mas uma ou mais cadeias de bits que podem ser usadas para reproduzir o documento”. Essa afirmativa ressalta que o suporte digital contém dados que dependem de uma decodificação para que o documento possa ser reproduzido. Mas seja qual for a natureza do suporte em si (digital ou não), ele é sempre um artefato (no sentido de produto feito pelo ser humano para um dado fim) físico, usado para fixar o conteúdo do documento. Entretanto, há que se destacar uma questão importante, qual seja a da autenticidade, em que o suporte convencional desempenha uma função diferente daquela do suporte para documentos digitais. Isso porque, como no documento digital o suporte pode ser substituído, e, portanto, não está inextrincavelmente ligado ao conteúdo do documento, o mesmo não é usado para se avaliar a autenticidade do documento, como o era, por exemplo, tão fortemente na Idade Média. Dessa forma, embora o suporte digital possa se corromper, e sua integridade possa ser verificada, a natureza em si desse tipo de suporte não é elemento decisivo para se determinar a autenticidade do documento digital.

Duranti e Thibodeau (2006, p. 19, grifo dos autores), no âmbito do projeto InterPARES, argumentam ainda que “o grupo de pesquisa identificou as cadeias de bits necessárias para se reproduzir um documento arquivístico eletrônico e que requerem medidas de preservação distintas como seus componentes digitais”. Dessa forma, de acordo com essa proposição, separam o conceito de componente digital (a ser detalhado na subseção seguinte), daquele do suporte. E ainda, ao mencionarem as cadeias de bits necessárias para reproduzir um registro eletrônico sem fazer distinção de que cadeias são essas, poderíamos pensar que englobam, como parte do componente digital, por exemplo, as cadeias de bits que estão presentes no sistema de arquivos (file system) gerido pelo sistema operacional. Essas cadeias de bits indicam onde está localizado fisicamente o arquivo digital no suporte onde ele se encontra armazenado, e são necessárias indiretamente para a sua reprodução, conforme explicaremos mais adiante. Cabe destacar que não estamos afirmando que as considerações dos autores estão equivocadas, apenas que estão expressas de uma forma que dá margem a interpretações incorretas, especialmente por quem não estiver familiarizado com a terminologia da área, ou por quem apontar que existem esses aspectos “menos óbvios” do contexto tecnológico, que podem levar a questionamentos como os que foram levantados acima sobre o sistema de arquivos.

Desse modo, para situar de forma mais precisa a função do suporte, e da cadeia de bits, é importante entendê-lo em um contexto mais amplo, do documento digital como um todo.

O documento arquivístico digital, enquanto objeto digital, pode, de acordo com Ferreira (2009), ser observado sob três níveis: físico, lógico e conceitual. O suporte se encontra no nível físico, enquanto a cadeia de bits se encontra no nível lógico e o conteúdo intelectual do documento no nível conceitual. Destacamos que um documento digital passa a existir de fato quando a informação é registrada em um suporte, isso pela própria definição do que é um documento, e, a partir daí, podemos copiá-lo, enviá-lo para um destinatário ou usá-lo para outro fim. Nesse contexto, mesmo que esse documento digital seja gerado de forma dinâmica por um sistema computacional (como, por exemplo, um histórico escolar), ainda assim será necessário um suporte, que sempre desempenhará sua função, mesmo que o documento esteja sendo apresentado em uma tela. Entretanto, como vimos, Duranti e Thibodeau (2006) afirmam que o suporte faz parte do contexto tecnológico. E essa visão pode dar margem a definições, como a do glossário do Conarq (2020), que define o contexto tecnológico de forma imprecisa como “ambiente tecnológico (hardware, software e padrões) que envolve o documento”, ou seja, o hardware, o software, os padrões, em sua materialidade.

Nesse sentido, é importante definir o que se entende aqui por contexto tecnológico, pois pode haver mais de uma interpretação. O InterPARES (2007) o define como “as características dos componentes tecnológicos de um sistema de computação eletrônico no qual os documentos são produzidos”. Destacamos que essa definição faz menção não aos componentes tecnológicos em si, mas às suas características, que descrevem tecnologicamente o documento arquivístico digital e que são essenciais para sua preservação. Nesse caso, quando afirmamos que o suporte faz parte do contexto tecnológico, não estamos nos referindo ao suporte em si (a mídia de um CD, por exemplo), no qual as sequências de bits estão de fato armazenadas, mas sim às características de tal suporte, enquanto metadados. Até porque, por definição, o contexto está fora do documento (Duranti, 1997) e, portanto, o suporte em si não pode ser contexto do documento, pois ele integra o documento. Essa questão do entendimento correto do conceito de contexto tecnológico é apontada por Duranti et al. (2002, p. 18-19):

Se por contexto tecnológico nos referimos à tecnologia que gera determinados grupos de documentos arquivísticos, é claro que tal tecnologia condiciona e penetra sua forma e, portanto, é um componente do documento e não de seu contexto. Se, em vez disso, nos referimos às características tecnológicas do sistema de manutenção de documentos arquivísticos que contém os documentos, é difícil ver como ele poderia ser visto separadamente do contexto documental do documento arquivístico.

Dessa forma, conforme explicam Duranti et al., se dissermos que o suporte “faz parte” desse contexto tecnológico, estamos na verdade querendo dizer que o suporte deve ser entendido do ponto de vista de uma característica (uma qualidade) do ambiente onde o documento é criado, na verdade, uma descrição das características desse suporte. Assim, ao concordar com essa definição, estamos assumindo que o documento digital é criado em um ambiente tecnológico, cujo contexto é uma documentação que reflete aspectos, qualidades desse ambiente. Nesse sentido, o suporte em si, em sua materialidade (conforme sua definição pelo glossário do InterPARES 2), não faz parte do contexto tecnológico.

O contexto tecnológico é diferente dos componentes físicos e lógicos do sistema computacional e do suporte em si, onde o documento digital é materializado. Para que não haja ambiguidade terminológica, vamos, no contexto deste trabalho, denominar esses componentes tecnológicos físicos e lógicos (em sua concretude) de ambiente tecnológico, deixando claro que o suporte em si não faz parte desse ambiente, pois ele não está externo ao documento digital, mas sim é parte mandatória desse documento. Dessa forma, para que o documento digital (aqui considerado como cadeia de bits afixada em um suporte) seja interpretado, ele necessita desse ambiente tecnológico, composto por elementos de software e de hardware. Dessa forma, concluímos que o suporte é parte mandatória e separável do documento arquivístico digital, possuindo uma dependência do ambiente tecnológico, dependência essa que deve ser registrada no âmbito do seu contexto tecnológico.

O componente digital e sua relação com o suporte

De acordo com o glossário do Conarq (2020, p. 18), componente digital é o “objeto digital que é parte de um ou mais documentos digitais, incluindo os metadados necessários para ordenar, estruturar ou manifestar seu conteúdo e forma, que requer determinadas ações de preservação”, sendo que um documento arquivístico digital pode ser composto por um ou mais componentes digitais. O mesmo glossário exemplifica que “uma fotografia digital tem apenas um componente digital, que é o arquivo com a imagem, já um documento multimídia tem diversos componentes digitais, que são os arquivos com o código executável, os textos, as imagens e os registros sonoros” (p. 18).

Por sua vez, de acordo com o mesmo glossário (p. 37), o objeto digital é uma “unidade de informação em formato digital composta de uma ou mais cadeias de bits e de metadados que a identificam e descrevem suas propriedades. Assim, é importante destacar que a definição de objeto digital do ponto de vista lógico é mais ampla do que a de componente digital, uma vez que este é definido como sendo um tipo de objeto digital. Dessa forma, por ser um conceito mais amplo, infere-se que abrange uma variedade de arquivos digitais (as unidades de informação em formato digital), que vão além dos arquivos comuns (e.g. um arquivo bmp) e daqueles que são necessários diretamente para manifestar o documento digital (e.g. dlls com fontes), os quais vamos denominar de arquivos necessários relacionados, por brevidade. Entretanto, a definição de componente digital, quando menciona a participação em um ou mais documentos digitais, dá a entender que o objeto digital se refere especificamente a esses arquivos comuns e àqueles que são necessariamente relacionados. Isso se dá porque não faria sentido que arquivos digitais contendo, por exemplo, dados usados para localizar um arquivo no computador, fizessem parte de um documento digital, pois aí estaríamos considerando que componente digital seria um conceito demasiadamente amplo, do ponto de vista prático. Essa dedução se confirma se voltarmos ao glossário do Conarq, que menciona uma fotografia digital como exemplo de componente digital. Dessa forma, se outros arquivos geridos pelo sistema operacional indiretamente ligados ao arquivo digital estivessem sendo considerados como parte do componente digital, esse exemplo seria incoerente.

No que tange aos metadados que identificam as propriedades dessa unidade de informação, cabe uma explicação sobre a natureza de alguns deles, que são fundamentais para que o documento digital seja acessado, e estão fora da cadeia de bits que está contida no componente digital. Quando um arquivo digital (no âmbito da computação) é criado (por exemplo, um documento em pdf), atualizado, ou até mesmo acessado para leitura por meio de um software, junto com ele são criados metadados que são armazenados e geridos pelo sistema operacional onde ele se insere (no âmbito do que se denomina de file system, ou sistema de arquivos). Esses metadados são externos ao componente digital, como, por exemplo, a data de sua criação, da sua última modificação ou de seu último acesso (Tanenbaum, 2015). Embora nada impeça que essas datas também sejam gravadas dentro do arquivo digital pelo software usado para editá-lo (no momento de sua criação ou alteração), se for feita uma consulta sem alteração de conteúdo, a data de último acesso não é gravada dentro do arquivo. Desses metadados, a data de criação e da última atualização podem ser importantes para ajudar a estabelecer a autenticidade do documento digital. Entretanto, o sistema operacional (pelo menos o Windows e o Linux) pode ser configurado para que a data de último acesso não seja atualizada nem mesmo quando o arquivo é lido. Nesses casos, o arquivo digital e seus metadados criados pelo sistema operacional permanecem inalterados quando o arquivo é aberto apenas para a leitura.

Assim é que o conceito de arquivo digital, no contexto da computação, pode ajudar a entender o objeto digital. Na computação, um arquivo digital é definido como “um mecanismo de abstração. Tal mecanismo fornece um modo de guardar informação no disco e lê-la de volta mais tarde” (Tanenbaum, 2015, p. 265). Considerando os mecanismos dos sistemas operacionais, necessários para gerenciar esses arquivos, ou seja, o sistema de arquivos (fyle system), o arquivo digital é uma “sequência de bytes acessível de forma aleatória” (Venkateshmurthy, 2009). De maneira simplificada, existem diversos tipos de arquivo digital, com diferentes propósitos, como, por exemplo, arquivos comuns (como documentos em pdf, docx, txt etc., incluindo os arquivos criados pelos softwares gerenciadores de bancos de dados); arquivos de sistema, como os diretórios e pastas; arquivos especiais, como os que são usados para controlar dispositivos de entrada e saída; arquivos que são usados para iniciar o sistema operacional; arquivos contendo dados sobre as fontes de caracteres usadas (bibliotecas compiladas, que no Windows são arquivos dll e no Linux correspondem a arquivos so), entre outros, que podem variar conforme o sistema operacional (Tanenbaum, 2015). Desses arquivos, o que nos interessa de forma específica é o arquivo comum (regular file), mas há outros dos quais o arquivo comum pode depender externamente para que seu conteúdo seja exibido de forma correta, como, por exemplo, as fontes (Times New Roman, Arial etc.). Os arquivos comuns são “aqueles que contêm informação de usuário” (Tanenbaum, 2015, p. 268). Essa distinção pode ser útil, pois caracteriza como arquivo comum aqueles que reconhecemos como os que são criados com o conteúdo intelectual, e, em muitos casos, é possível assinar digitalmente tais arquivos. Os outros tipos vamos denominar de forma genérica como “arquivos digitais não comuns”. Os arquivos comuns, dependendo do formato e do conteúdo, podem não possuir nenhuma dependência direta externa de conteúdo, como é o caso do formato pdf-a, que “evita conscientemente qualquer coisa que requeira software externo para exibição ou reprodução” (Oettler, 2013, p. 6).

Entretanto, pode haver casos de arquivos comuns que possuem essa dependência, em especial de fontes, como é o que ocorre com arquivos no formato pdf. A questão que se coloca, então, é se arquivos dos quais os arquivos comuns dependem diretamente para serem visualizados pelo ser humano devem ser considerados parte do documento digital. O projeto InterPARES 2 (2010, p. 6), em seus achados, sugere que sim ao afirmar que “um dos exemplos mais comuns de componentes digitais é a biblioteca de fontes [...]. No Windows esses dados são armazenados em arquivos ‘.dll’”. Em nosso entender, porém, eles fazem parte do ambiente tecnológico ligado ao software, pois não são arquivos comuns, embora sejam necessários para um determinado software poder apresentar o conteúdo do arquivo digital comum ao ser humano. Isso implica, por exemplo, que devem ser preservados de forma ampla, e não individual, ou seja, o arquivo comum pode precisar de uma dll para ser visualizado, mas nem por isso vamos guardar a dll junto com cada cópia de documento comum que desejamos preservar. Não que o ambiente tecnológico não tenha de ser preservado, mas deve ser preservado como requisito, de forma mais ampla, e não individualmente, para cada arquivo comum. Dessa maneira, existe uma diferença entre o arquivo comum (o componente digital como uma unidade que contém o conteúdo intelectual do documento) e o ambiente tecnológico, externo a ele, do qual depende para ser visualizado da forma pretendida. Nesse sentido, concordamos com Duranti e Thibodeau (2006) quanto à necessidade de preservação desse ambiente, mas destacamos o seu papel enquanto tal, onde, naturalmente, há que se documentar seu vínculo com o componente digital que contém o conteúdo intelectual, em especial por conta de sua preservação digital. Nesse contexto, o ambiente não faria parte de tal componente digital, mas estabeleceria uma dependência para que este possa ser visualizado e preservado, e, por essa razão, é importante que seja documentado em sua ligação com o documento digital e preservado.

Para que o preservador possa reproduzir o documento arquivístico [...] tanto o componente digital que contém o texto quanto o que contém a fonte têm que ter sido preservados, assim como deve ter sido estabelecida a ligação entre eles [...]. (InterPARES 2, 2010, p. 6)

Há que se registrar que, ao compreender a diferença entre os tipos de componentes digitais (o arquivo digital comum, com o conteúdo intelectual, e os outros do qual ele depende para ser visualizado), percebe-se que a forma de preservação é diferente. Embora seja preciso preservar tanto o componente digital que contém o texto de um memorando quanto o que contém a fonte utilizada no texto, não precisamos preservar várias cópias da mesma dll de uma fonte, pois se vários componentes digitais a utilizam, basta preservar uma.

Nesse sentido, dentro do arquivo digital comum existem dados que são utilizados pelos softwares para apresentar seu conteúdo, de forma que possamos visualizá-lo da maneira como foi originalmente criado. Esses dados dependem do tipo de formato de arquivo, uma vez que cada formato especifica de maneira diferente como os bytes devem ser organizados. Outros dados também podem estar contidos no arquivo digital comum, dependendo do formato e do software que foi usado para cria-lo, como, por exemplo, dados de segurança (senha), preferências de visualização do usuário, nome do usuário, entre outros. Além disso, existem dados associados ao arquivo pelo sistema operacional que podemos dizer que fazem parte do ambiente tecnológico (composto por software e hardware) necessário para o acesso, embora não estejam contidos no arquivo em si. Por exemplo,

cada arquivo possui um nome e seus dados. Além disso, todos os sistemas operacionais associam outras informações a cada arquivo, por exemplo, a data e hora em que o arquivo foi modificado pela última vez e o tamanho do arquivo. Chamaremos esses itens extras de atributos do arquivo. Algumas pessoas os chamam de metadados. (Tanenbaum, 2015, p. 271)

Em outras palavras, de acordo com Ferreira (2009), um documento digital possui um nível lógico que diz respeito a uma sequência codificada de zeros e uns. Esta traduz o conteúdo e demais dados pertinentes à apresentação do documento e, ao ser exibida ao usuário do documento em uma tela ou outro meio de saída, temos a sua manifestação no nível conceitual. Para que o nível conceitual se manifeste, entretanto, é necessária a intermediação de softwares (em uso) com o hardware. Acrescentamos que um documento digital pode possuir um ou mais componentes da camada lógica, os quais podem estar contidos em um ou mais suportes, em uma mesma mídia (e.g. em um mesmo pen drive) ou em múltiplas mídias (e.g. distribuídos em discos de servidores diferentes).

Considerando a face da natureza tecnológica do documento digital, percebe-se que a maneira como se apresenta para uma pessoa é distinta daquela do documento convencional. O documento digital pode ser exibido em uma tela quando necessário, mas não é armazenado nessa forma em que é exibido. Ele é armazenado como uma sequência de zeros e uns (dígitos binários), a qual está fixada em um suporte, e que, para ser apresentada de forma significativa para o ser humano, depende de um sistema computacional que, por sua vez, necessita de hardware e de software compatível.

O conceito de componente digital é definido como arquivos comuns e arquivos necessários para que o documento possa ser exibido de uma forma compreensível aos seres humanos. Conforme Duranti (2010, p. 19),

um componente digital é um objeto digital que contém todo ou parte do conteúdo de um documento eletrônico e/ou dados ou metadados necessários para ordenar, estruturar ou manifestar o conteúdo e que requer métodos específicos de armazenamento, manutenção e preservação.

Cabe observar que essa definição pode dar margem à compreensão de que os componentes digitais e seus metadados contêm todos os dados e/ou metadados necessários para a manifestação ordenada e estruturada de seu conteúdo, mas esse entendimento seria equivocado, uma vez que os arquivos em meio digital são organizados em conformidade com uma especificação de formato de arquivo que é um documento voltado para os desenvolvedores de software, de modo que possam construir softwares que sejam capazes de ler e modificar os arquivos digitais com tal formato. Esses documentos em si não se configuram como metadados, embora, dependendo do formato de arquivo, alguns dos dados necessários para a manifestação ordenada e estruturada de seu conteúdo estejam presentes dentro do próprio componente digital. Uma vez que é necessário um software construído em conformidade com a especificação de formato de arquivo, ele é também um elemento necessário para a manifestação ordenada e estruturada de seu conteúdo e podemos dizer que faz parte do ambiente tecnológico necessário para a apresentação do arquivo. Dessa forma, naturalmente, não bastam apenas os metadados para que o conteúdo seja manifestado.

Voltamos a lembrar que não questionamos o significado pretendido por nenhuma das definições apresentadas na literatura da arquivologia ou da diplomática, tão somente constatamos que essas definições podem dar margem a entendimentos equivocados. Nesse sentido, a seção seguinte apresenta uma reformulação de algumas dessas definições, embasadas em teorias da ciência da informação e da ontologia formal, a fim de dotá-las de maior precisão, conforme os aspectos explicados ao final da primeira seção.

Uma proposta definitória para o suporte digital e conceitos relacionados

As propostas aqui apresentadas partem do princípio de que o suporte do documento arquivístico digital se relaciona com o componente digital e com o contexto tecnológico do documento arquivístico digital. Embora tenhamos identificado que existem diferentes tipos de componente digital, não vamos introduzir conceitos novos, apenas reformular a definição dos já existentes. Nesse sentido, observando as características essenciais desses conceitos, o princípio de definição por gênero próximo e diferença específica, e o conceito de partição e dependência conforme a ontologia formal, as definições aqui propostas são apresentadas a seguir e estabelecem a natureza de cada conceito, suas características essenciais e, se pertinente, seu uso.

Suporte digital: artefato físico que serve para armazenar informação codificada em unidades de bit e cuja gravação e leitura pode ser feita por um sistema de natureza magnética, ótica ou eletrônica, o qual envolve hardware e software compatíveis.

Nessa definição apontamos a natureza do suporte digital, ou seja, o que ele é (um artefato), suas características essenciais (requisitos para sua gravação e leitura) e indicamos o seu uso. Dessa forma, estabelecemos o que é de fato um suporte digital de modo a diferenciá-lo de outros tipos de artefatos ou suportes.

Componente digital: objeto digital que inclui o conteúdo intelectual de um documento ou outros conteúdos que são diretamente necessários para sua manifestação como documento legível pelo ser humano, da forma como foi concebido.

Nessa definição apontamos a natureza do componente digital como um objeto digital, suas características essenciais (em termos de conteúdo), e seu uso (necessário para manifestar o documento de forma legível para o ser humano).

Contexto tecnológico: características do suporte e dos elementos do sistema computacional do qual o documento digital depende para ser produzido, lido e atualizado, e que descrevem aspectos que são relevantes para a preservação do objeto digital.

Nessa definição apontamos a natureza do contexto tecnológico (características de coisas, e não as coisas em si) e, como características essenciais, situamos que são aspectos relevantes para a sua preservação digital, ou seja, importantes para que se garanta a sua manifestação.

Quanto ao relacionamento entre os conceitos, temos que: 1) o suporte digital é parte mandatória e separável do componente digital; 2) o suporte digital não se relaciona diretamente com o contexto tecnológico, mas indiretamente. Nesse sentido, pode ser descrito por meio de metadados; estes sim devem compor o contexto tecnológico do documento digital. Por exemplo, podem-se descrever a data de fabricação e o tipo de mídia usada para armazenar o documento; 3) o componente digital também não se relaciona diretamente com o contexto tecnológico, mas indiretamente. Nesse cenário pode ser descrito por meio de metadados que dizem respeito à sua dependência de um sistema computacional. Esses metadados devem compor o contexto tecnológico do documento digital. Por exemplo, pode-se descrever o formato de arquivo de um componente digital, que está ligado a um tipo de software (ou softwares) necessário para o seu acesso.

Observamos que essas definições reformuladas com base nos aportes teóricos adotados deixam mais claro que o componente digital possui uma materialidade definida pelo seu suporte, e uma dependência externa de um ambiente tecnológico que não é inerente ao componente em si, ao contrário de seu suporte. Mesmo que este possa ser substituído, não existe componente digital sem suporte (não faz sentido conceber um byte sem que ele esteja materializado de alguma forma, da mesma maneira que não faz sentido conceber um conteúdo qualquer em um documento convencional sem que este esteja afixado em um suporte). E não existe a possibilidade de decodificar esse conteúdo de uma forma que seja compreensível para o ser humano sem o ambiente tecnológico. Naturalmente, do ponto de vista da diplomática, entende-se a necessidade da descrição do ambiente tecnológico (as dependências de hardware e software) e especificamente do suporte, a fim de preservar a autenticidade do documento arquivístico digital. Porém, é importante não confundir o ambiente, aquilo que cerca o documento, com o documento em si, em sua materialidade, que faz com que ele possa ser armazenado e preservado.

Conclusões

Este estudo nos permitiu exercer dois movimentos: um teórico/metodológico, de aplicação da abordagem onomasiológica para a elaboração de definições conceituais, e outro pragmático, onde propomos uma enunciação para o conceito de suporte do documento arquivístico digital e conceitos relacionados. Constatamos que o uso de uma abordagem onomasiológica para a elaboração de definições reais (conceituais) em um determinado domínio é um processo de idas e vindas, de análise e síntese, como se pode observar na construção textual deste artigo, onde o conceito de suporte de documento arquivístico digital foi apresentado. A partir de um processo dialógico, as características dos conceitos foram sendo evidenciadas, assim como suas categorias. Dessa forma, a partir da identificação da categoria a que o referente pertence é possível determinar com mais precisão os elementos que são considerados essenciais e acidentais, representados pelas características dos conceitos-alvo, enunciadas por meio de uma definição que espelha o compromisso ontológico assumido no domínio.

No que tange ao conceito de suporte de documento arquivístico digital e conceitos relacionados, ressaltamos que as definições apresentadas contribuem para um entendimento mais preciso dessas noções, uma vez que se apoiam em uma análise dos respectivos referentes e suas características essenciais enquanto entes no mundo, assim como na eliminação da ambiguidade no uso das relações partitivas. Trabalhos futuros podem usar essas definições como base para uma parte componente de um modelo conceitual amplo do documento arquivístico digital.

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Recebido em 17/11/2021

Aprovado em 17/4/2022


Notas

1    Já existem estudos sobre mídias atômicas e moleculares sendo testadas, de acordo com Anzel (2021).

2    Ao ser quebrado, o CD perde sua característica essencial de servir para registrar dados e, assim, ele deixa de existir como suporte.



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