Acervo, Rio de Janeiro, v. 35, n. 2, maio/ago. 2022

Organização do conhecimento em arquivos | Dossiê temático

Organização do conhecimento em arquivos sob a égide simbólica e multidimensional dos conjuntos documentais

Organization of knowledge in archives under the symbolic and multidimensional aegis of record groups / Organización del conocimiento en archivos bajo la égida simbólica y multidimensional de los conjuntos documentales

Ismaelly Batista dos Santos Silva

Mestra em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora no Curso de Bacharelado em Arquivologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Brasil.

is.lb@hotmail.com

Hildenise Ferreira Novo

Doutora em Difusão do Conhecimento pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora do Instituto de Ciência da Informação da UFBA, Brasil.

hnovo@ufba.br

RESUMO

No artigo é feita uma análise de perspectiva simbólica e em múltiplas dimensões sobre o processo de organização do conhecimento em arquivos. Metodologicamente, realizou-se um estudo teórico sob a lógica filosófica das formas simbólicas de filologia cassireriana. Os resultados denotam um panorama restritivo nos arquivos à luz da organização do conhecimento.

Palavras-chave: organização do conhecimento; ciência da informação; arquivologia; tratamento documental.

ABSTRACT

In this paper, we analyze from a symbolic and multidimensional perspective the knowledge organization process in archives. Methodologically, a theoretical study was carried out using the philosophical logic of symbolic forms from Cassirer’s philology. The results denote a restrictive panorama in archives in the context of knowledge organization.

Keywords: knowledge organization; information science; archival science; archival processing.

RESUMEN

En el estudio nosotros realizamos un análisis de perspectiva simbólica y en múltiples dimensiones del proceso de organización del conocimiento en archivos. Metodológicamente, un estudio teórico se llevó a cabo bajo la lógica filosófica de formas simbólicas de la filología de Cassirer. Los resultados denotan un contexto limitante para los archivos en el contexto de la organización del conocimiento.

Palabras clave: organización del conocimiento; ciencia de la información; archivología; tratamiento de documentos.

Diálogos introdutórios

Os conjuntos de documentos, como artefatos oriundos dos processos de trocas simbólicas em meio ao fenômeno social, inscrevem-se no cotidiano através dos indivíduos em seu ambiente de cultura. Tal dinâmica, porém, pode se dar de modo particular entre pessoas ou coletivamente nos grupos minoritários, comunidades, populações, sociedades e nações, resultando no possível entendimento de que tais conjuntos documentais ora podem ser considerados uma extensão desses sujeitos, ora são sua própria representação em determinado tempo e espaço como parte de uma narrativa patrimonialista, memorialística e histórica.

No contexto científico e legal, os conjuntos de documentos produzidos e recebidos por uma pessoa física ou jurídica, no cerne de suas trocas simbólicas ou atos de produção e recebimento de documentos, podem ser entendidos como um arquivo (Brasil, 1991). Este passa por um processo de significação lógica no contexto do órgão, entidade ou instituição. E esta pode ser, inclusive, um indivíduo dotado de seus preceitos civis e que se revela como objeto de estudo para a arquivologia na qualidade de ciência que estuda os arquivos em seus espectros epistemológico, técnico, tecnológico, político, legal, social e cultural (Jardim, 2008).

Os arquivos, mediante uma perspectiva teórica, podem ser tipificados como públicos ou privados, e dotados de especificidades, como, por exemplo, o caráter de insumo à tomada de decisão quando ligados ao contexto de gestão, nas dimensões administrativas referentes às atividades-fim e às atividades-meio. De forma similar, eles podem, de modo complementar ou dissociado das funções que os criaram, expressar estrategicamente para um povo, por meio dos seus conjuntos documentais, seu valor secundário como bens patrimoniais nas perspectivas histórica, social e cultural (Schellenberg, 2006).

Com base no tratamento documental, arquivisticamente desprendido ou não dos conjuntos de documentos compostos por múltiplos suportes e formas em âmbito institucional, tem-se por preceito a recuperação da informação. Na arquivologia, uma série de princípios norteadores regem a organização e tratamento do acervo, tais como sua unicidade, proveniência, organicidade, indivisibilidade e respeito pela ordem original. Do mesmo modo, o próprio documento de arquivo como item edificante do acervo possui suas prerrogativas particulares que o fazem único, autêntico, imparcial, em virtude de sua fixidez, naturalidade e relação orgânica com os demais documentos congêneres (Jardim, 2008; Rondinelli, 2013).

Aliando pressupostos teóricos e ações empíricas à arquivologia e aos profissionais que a compõem, durante décadas no cenário brasileiro, têm-se desprendido esforços e produzido não apenas capital intelectual voltado à organização de conjuntos documentais, mas narrativas acerca da relevância dos acervos institucionais de arquivos como método orientado ao desenvolvimento das organizações, com ênfase também nos aspectos científico, tecnológico e cultural para as sociedades. Destacam-se dois pontos principais, contemporaneamente, que podem ser considerados: o aspecto de recuperação das informações presentes nos conjuntos documentais e a sua manutenção ante o acesso em curto, médio e longo prazos (Paes, 2004; Bellotto, 2006).

Ao longo de décadas de tratamento documental, iniciado ainda com a observância empírica de manuais de organização de documentos que passaram a ser incrementados por um respaldo científico e contemporaneamente legal e normativo – por meio de instituições como a International Organization for Standardization (ISO) e, no Brasil, como órgão regulamentador das políticas de arquivo, o Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) –, a busca por padrões ideais e plurais de tratamento e acesso à informação tem possibilitado novas abordagens e metodologias aplicadas aos conjuntos documentais. Em geral, essas inovações são pautadas na assimilação de contextos já estabelecidos como um legado subsidiado por processos multidisciplinares, por exemplo, a organização da informação e do conhecimento.

Nesse sentido, partimos da premissa de que, no tocante ao tratamento e recuperação de informações de acervos documentais de arquivo, durante décadas, no Brasil, a arquivologia esteve atrelada a mecanismos de análise documentária para elaboração de dois processos-chave: a representação temática que, de forma aplicada, reverbera em planos de classificação para arquivos e a representação descritiva, amparada por instrumentos de descrição em multinível para concatenação de assuntos e elementos ligados à estrutura dos documentos, ambas gerando representações do acervo para promover sua organização e acesso (Barros; Sousa, 2019).

Outrossim, contemplando o aspecto hipotético de investigação, avaliamos que os processos de organização da informação (OI) e organização do conhecimento (OC), ambos com notória esquematização paradigmática e epistêmica na ciência da informação (CI), têm figurado de modo coadjuvante nos cenários de organização de conjuntos de documentos institucionalizados sob a prerrogativa de transformação digital vivenciada em acervos de arquivos e na própria sociedade. O processo de organização do conhecimento por seus contributos aos cenários de inteligência artificial (IA), em particular, requer notória atenção nas pesquisas e fazeres do campo arquivístico.

Ante o exposto, para além das tantas possibilidades de investigações que o cenário descrito propicia, neste estudo indaga-se: como o aspecto simbólico e de múltiplas dimensões que emerge no contexto dos conjuntos documentais pode corroborar a organização do conhecimento em arquivos? Para elucidar tal indagação, analisa-se a perspectiva simbólica e em múltiplas dimensões para o processo de organização do conhecimento orientado aos cenários arquivisticamente dependentes e arquivos.

Nas próximas seções, de modo dedutivo, é apresentada, qualitativamente, uma abordagem baseada em fundamentos da epistemologia social, com influência do regime filosófico das formas simbólicas de filologia cassireriana, e em um arcabouço teórico que parte dos clássicos da literatura brasileira em arquivologia, bem como de perspectivas contemporâneas, sobretudo, na ciência da informação, com inferência acerca da organização do conhecimento que propicia o discurso dialógico sobre esta última em cenários de arquivos.

Organização do conhecimento e arquivos

Com origens e influências do campo filosófico, a organização do conhecimento como área científica, contemporaneamente, segue na empreitada de estruturar sob a noção lógica os saberes como produto da racionalidade humana (Dahlberg, 1993). Áreas como documentação e biblioteconomia, ao longo de séculos, também foram capazes de imprimir sua contribuição sob perspectivas disciplinares orientadas a suportes informacionais oriundos do intelecto e repertório do conhecimento humano (Silva; Ribeiro, 2002; Pombo, 1998).

Contemporaneamente, a organização do conhecimento figura como um capital intelectual de cunho interdisciplinar. Estabelece suas zonas fronteiriças com campos como as ciências da computação e da informação, mediante a assimilação das propriedades lógicas e sua aplicabilidade na elaboração de repertórios na world wide web ou web, principalmente orientadas às tecnologias que emergiram no fim da Segunda Guerra Mundial, a exemplo do computador, que ganha sua primeira versão com o dispositivo de cálculo eletrônico e automático: a máquina de Turing (Marcondes; Campos, 2008).

Nesse ínterim, contribuições da física, matemática e engenharia computacional têm delimitado seu portfólio de incrementos aos sistemas lógicos alinhados ao desenvolvimento de tecnologias da informação e comunicação (TICs). Presentes no discurso epistemológico da ciência da informação, essas mesmas áreas têm figurado de modo copartícipe nos processos de organização e tratamento da informação (OTI), no entanto, a ciência da informação segue marcada por uma concepção conservadora, herança da perspectiva física e documentalista latente nas narrativas de núcleo duro (Silva; Ribeiro, 2002).

A ciência da informação e seus diálogos interdisciplinares, especialmente no Brasil, revelam ter sedimentado suas lentes científicas no discurso tecnológico como prerrogativa para acesso, recuperação e uso da informação (Capurro, 2009). Mediante a noção de produção de conhecimento científico associada, necessariamente, às investigações gestadas nos programas de pós-graduação, os estudos vincularam-se, majoritariamente, às escolas de formação profissional em nível superior, que, por tradição, remontam à documentação, ou seja, arquivologia, biblioteconomia e algumas de museologia (Oliveira, 2005; Araújo, 2014).

Sob esse prisma da organização e tratamento da informação, o discurso de núcleo duro documentalista, aspectos conceituais marcaram os fazeres e saberes na ciência da informação, tais como “as três marias”, “o guarda-chuva da ciência da informação”, ou seja, termos genéricos que aludiam ao sentido de que a arquivologia, biblioteconomia e museologia compunham-na (Araújo, 2014; 2018). Analisa-se que tal noção corroborou a ideia da ciência da informação de que suas “disciplinas” de “núcleo duro” estariam a produzir um repertório científico de caráter aplicado e endossado pela ausência de graduação específica na área e existência apenas de cursos de pós-graduação, e estes constam associados, como já mencionado, à formação superior e alocados em centros de ciências sociais aplicadas (Oliveira, 2005).

Alinhado ao que foi tratado nos últimos parágrafos, de modo paralelo, parece ter se dado o hiato das discussões acerca da organização do conhecimento na ciência da informação, que, em geral, segue orientada pelas contribuições filosófica e documentalista, mas necessariamente dirigidas à organização da informação. Esta subárea, inclusive, concentrou, no quesito organização do conhecimento, as construções empíricas ambientadas às narrativas centradas no repertório de saberes sob a influência de teóricos estruturalistas (Paul Outlet, Melvil Dewey) e as premissas de Shiyali Ranganathan. Essa reflexão se faz pertinente em razão do desenvolvimento paralelo da área de engenharia do conhecimento como ciência autônoma e vinculada a setores como a International Society for Knowledge Organization (ISKO) (Marcondes, 2012).

Logo, em termos de reflexão epistemológica com base nas discussões acerca da práxis em organização do conhecimento, formação e atuação profissional, estamos a tratar do ponto de vista biblioteconômico em detrimento dos cenários arquivísticos ou mesmo museológicos que seguiram no contexto e tratamento documental por excelência. Ainda considerando a ciência da informação no Brasil, com base em modelos de organização do conhecimento, têm-se construído diálogos profícuos nas últimas décadas, mediante tecnologias disponíveis, por exemplo, na elaboração de taxonomias e tesauros, bem como sua aplicação nos processos de automação de sistemas de informação, no projeto web semântica, desenvolvimento de linguagens híbridas com base nas folksonomias: produção de representação de domínios com ontologias (Campos, 2008), inclusive, sob a abordagem digital da informação visando à sua recuperação de modo eficiente e, mais recentemente, na perspectiva de inteligência artificial (IA) (Dahlberg, 1993; Marcondes; Campos, 2008). O lastro da produção do conhecimento, todavia, no contexto dos repositórios científicos nacionais, ainda é pouco expressivo (Carlan; Medeiros, 2011).

Organização do conhecimento e transformação digital

Múltiplos fenômenos permeiam as transformações suscitadas a partir da conjuntura científica e tecnológica que marcou a dinâmica social, assim como as formas de expressão e comunicação humana. Iniciamos com os registros rupestres, passamos por um período de materialidade impressa, com a expansão do conhecimento ao redor do mundo, posteriormente lidamos com novas tecnologias da informação e comunicação e um acelerado processo de surgimento de suportes eletrônicos, cujo foco esteve no compartilhamento do conhecimento (Burke, 2003; 2012). Contemporaneamente, o teor de materialidade de suportes físicos tem se mostrado coadjuvante em cenários digitais de produção e compartilhamento da informação (Capurro, 2009).

Algo que esteve paralelamente associado aos avanços civilizatório e do conhecimento, no entanto, foram as formas de organização do conhecimento produzidas que, mediante a dimensão da lógica, propiciam a representação de estruturas dos saberes humanos visando à sua padronização para orientar mecanismos de recuperação (Pombo, 1998). A construção de estruturas de significado para ordenação e representação do conhecimento tem se desenvolvido ao longo dos séculos e progredido conforme avançam a tecnologia e as formas de expressão e comunicação humana (Dahlberg, 1993).

Nos cenários digitais que marcam o que se denomina de quarta virada na produção de registros do conhecimento – os digitais e natos digitais –, a organização do conhecimento “enfrenta o desafio de gerir os registros de conhecimento disponibilizados em ambiente digital, para permitir seu reúso e apropriação social” (Marcondes, 2012, p. 30). Na esfera digital, e mais especificamente sob a ótica do rearranjo de estruturas do conhecimento e avanço tecnológico, áreas como a inteligência artificial (subárea da ciência da computação) têm revelado notório interesse em processos de organização do conhecimento, mesmo que ainda de forma preliminar em relação à sua complexidade, uma vez que as partitivas lógicas e modelagem de domínios terminológicos ainda são o foco dos desenvolvedores de sistemas computacionais (Dahlberg, 1993; Veltman, 2004).

Dentre as diversas técnicas disponíveis para organização da informação e do conhecimento, a aplicação de ontologias tem recebido cada vez mais atenção. Ontologia é um assunto que tem sido estudado em diferentes campos de pesquisa – filosofia, ciência da computação e ciência da informação – e no âmbito de vários domínios do conhecimento – medicina, biologia, direito e geografia. Apesar do uso e difusão do termo, não é uma tarefa simples entender o que significa “ontologia” e se estudar o assunto pode ser útil para a pesquisa em ciência da informação. (Almeida, 2014, p. 243)

Os devidos produtos da organização do conhecimento (tesauros, taxonomias, classificações, ontologias, mapas conceituais) e a lógica de alto nível sedimentam o processo de modelagem de domínios, por exemplo, em sistemas de organização do conhecimento (SOC) ou “sistemas conceituais semanticamente estruturados que contemplam termos, definições, relacionamentos e propriedades dos conceitos” (Carlan; Medeiros, 2011, p. 54). Através das ontologias, é possível destacar a inteligibilidade por algoritmos computacionais que orientam o desenvolvimento de estruturas semânticas e relações dos conceitos entre humanos e máquinas (Campos, 2001; Guarino, 1995). Por conseguinte, ressalta-se que, “em ciência da computação, ontologias são aplicadas à modelagem, tanto em sistemas baseados em bancos de dados quanto em sistemas de representação do conhecimento” (Almeida, 2014, p. 243).

Para isso, as ontologias são usadas com linguagens OWL (web ontology language), XML (extensible markup language) e XML Scheme, RDF (resource description framework) e RDF Scheme, que são tecnologias capazes de pesquisar e/ou captar informações e diferentes comunidades. (Carlan; Medeiros, 2011, p. 58)

Desse modo, as ciências da computação têm promovido, com base no desenvolvimento de linguagem algorítmica e aprendizagem de máquina, transformações no cenário social e nas relações que os indivíduos desenvolvem no processo de interação com os sistemas de informação em base de inteligência artificial (Russell et al., 2013).

Esse movimento foi iniciado através do projeto de web semântica por meio do fornecimento de estruturas de significado semântico com conteúdo disponível em páginas da web, bem como promovendo um cenário colaborativo entre agentes de software e usuários, por exemplo, na produção, derivação e avaliação de rótulos ou etiquetas digitais para marcação ou extensible markup language (XML) (Marcondes, 2016). Na abordagem contemporânea, a aprendizagem de máquina, campo da inteligência artificial, atua na estruturação desses sistemas de informação com base em algoritmos para estabelecer processos de interação, de forma autônoma, com os indivíduos com os quais interagem, com base no repertório lógico e semântico que lhes é condicionado ou a partir das aplicações presentes na linguagem computacional (Russell, 2013).

Isso posto, as ontologias são percebidas como “um conjunto de declarações expressas em uma linguagem de representação, o qual pode ser processado por mecanismos de inferência automatizados” (Almeida, 2014, p. 250). Representam uma das principais metodologias de organização do conhecimento contemporaneamente, por seu aspecto interdisciplinar em relação às ciências da computação e à ciência da informação e suas ciências fronteiriças, implicando um cenário dialógico pertinente para aperfeiçoamento de ferramentas voltadas ao acesso e recuperação dos saberes compartilhados e suas respectivas aplicações.

Organização do conhecimento na arquivologia

Pensar a organização do conhecimento alia-se à compreensão de dialogicidade multidisciplinar, mas não apenas em relação a áreas com as quais já se tem construído bases de correlação, como fisiologia e ciência da informação, todavia, inclusive, com campos como a engenharia do conhecimento (EC), data science e a própria computação (Marcondes, 2012).

Dimensões como as dos arquivos ou da própria arquivologia passam necessariamente pelo desenvolvimento de discursos teóricos, modelos e possibilidade de aplicação de tais noções de forma empírica aos conjuntos documentais, alinhados às premissas do campo do saber arquivístico, bem como ao aspecto de produção de conhecimento científico, o qual ainda é relativamente recente, sobretudo no Brasil, se comparado a outras áreas nas quais a retórica de organização do conhecimento se faz presente de maneira típica (Silva, 2020).

A organização do conhecimento em arquivos e para a arquivologia tem se revelado promissora tanto do ponto de vista teórico quanto do metodológico, no entanto, requer dos pesquisadores e profissionais da área engajamento e busca por saberes de modo efetivamente multidisciplinar, tendo em vista que algumas abordagens apresentadas estão centradas de modo equivocado em aspectos correlacionados ao tratamento de documentos (núcleo da disciplina arquivística), muitas vezes trabalhando como congêneres ou atuando de forma seletiva ante as prerrogativas presentes no campo de investigação (Barros; Sousa, 2019).

Nesse sentido, os processos de representação e organização do conhecimento no contexto dos arquivos são estudados na arquivologia de forma compartimentada e dissociada de uma visão sistêmica. A visão dos sistemas de organização do conhecimento enquanto parte de um processo de representação da informação contida em documentos de arquivo ainda é pouco utilizada no contexto teórico-metodológico dos arquivos e da arquivologia e seu uso, muitas vezes, ocorre de forma “improvisada”. (Barros; Sousa, 2019, p. 77)

No âmbito da organização e representação da informação e do conhecimento, ainda é comum a bifurcação e a tendência em arquivologia de se buscar processos correlacionados à classificação e à descrição. Desse modo, a primeira, como eixo de representação temática da informação em arquivologia, não possui um arcabouço reflexivo fenomenológico ou filosófico, estando os diálogos centrados de modo seccional, e a abordagem empírica é aplicada pragmaticamente aos seus produtos, ou seja, plano de classificação ou quadro de arranjo (Sousa, 2008; Foscarini, 2010).

Reconhecida a importância da classificação e seu papel primordial na construção do campo dos arquivos enquanto área de conhecimento, é inquietante observar que na arquivologia pouco se dedica a estudá-la. Observa-se ainda que dentre as funções arquivísticas, pouco se pratica a classificação por contexto de produção funcional dos documentos. E esse cenário, indiscutivelmente, afeta características e qualidades importantes dos arquivos. (Schmidt; Smit, 2015, p. 3)

Um setor que, em contrapartida, tem avançado tecnicamente através dos instrumentos normativos é o campo da representação descritiva da informação, que é proporcionalmente dimensionado por diretrizes internacionais e nacionais que orientam a prática “descricional” voltada aos conjuntos documentais.

Diante dessa visão, considera-se que os materiais ou artefatos do conhecimento que compõem os acervos de arquivos são plurais e apresentados em gêneros diversificados (textual, iconográfico, micrográfico, cartográfico, informático, audiovisual, filmográfico e sonoro), organizados com base em suas premissas de área, como sua origem, e, dessa forma, são passíveis de tratamento mediante a perspectiva arquivística (Jardim, 2008; Bellotto, 2006). Os arquivos em seus conjuntos documentais, reunidos com base na proveniência, agrupam objetos únicos, diferentemente de bibliotecas, em que a compartimentalização conceitual pode se dar, por exemplo, de forma basicamente universal (Hjørland, 2016), o que torna a organização do seu conhecimento complexa.

Na arquivologia, em particular “a questão da indexação nos arquivos tem sido muito pouco pensada e discutida e, por isso mesmo, a literatura sobre o assunto é escassa e com limitações evidentes” (Ribeiro, 2011, p. 40). Soma-se a isso o fato de que “os processos de representação arquivística não são objetivos nem transparentes. Como tal, os arquivistas precisam estar mais conscientes das atividades que estruturam a criação das representações, sua construção social, bem como seus usos adequados” (Yakel, 2003, p. 25, tradução nossa). Esse processo agrava os cenários de organização do conhecimento nos arquivos e retém suas investidas teórico-práticas no tratamento documental ainda com base na organização da informação.

A estruturação de práticas representacionais por criadores, arquivistas e sistemas possibilita ou inibe os significados das representações à medida que estas cruzam as fronteiras do espaço (do criador aos arquivos), do tempo e do uso. Em termos de criadores, os artefatos representacionais contêm uma quantidade substancial de informações sobre as estruturas institucionais, profissionais e culturais em que foram criados. Quando retirado de seu meio original, no entanto, o contexto é perdido. Transferir ou traduzir o contexto para o domínio arquivístico também é problemático porque os arquivistas incorporam documentos em macroestruturas adicionais (talvez mais precisamente identificadas como arquiteturas de informação) de esquemas de classificação abrangentes, bem como nas microestruturas de catálogos de fichas e auxílios para encontrar. Por sua vez, a manutenção e a criação dessas estruturas formam a base das rotinas, interações, comportamentos e conhecimentos contínuos que compõem a memória e a prática organizacional arquivística. As representações arquivísticas, então, demonstram não apenas a evolução das coleções físicas e a compreensão intelectual das coleções, mas também a mudança de perspectivas sobre o arranjo, descrição e gerenciamento de coleções. (Yakel, 2003, p. 24, tradução nossa)

Chama a atenção o fato de que, mesmo em dimensões complementares ao processo de recuperação da informação, tanto a organização da informação como a do conhecimento estão pautadas em estruturas conceituais (Dahlberg, 1993). Nesse viés, elas se caracterizam como uma representação formal e por vezes hierarquizada, utilizada como meio para a sistematização de seus assuntos e visando à sua recuperação já comum à ciência da informação, ou seja, à área pela qual a arquivologia tem se orientado referencialmente (Oliveira, 2005).

Neste ínterim, a ciência da informação se revela como um campo promissor aos diálogos e modelos de reflexão para ensejar a organização do conhecimento devidamente ajustada aos preceitos arquivísticos. Na ótica dos cenários digitais, nos quais os arquivos estão inseridos, sob a prerrogativa do fenômeno de transformação digital, na modelagem das ontologias de alto nível para desenvolvimento de sistemas inteligentes, constata-se que “o desenvolvimento de ontologias demanda uma convergência de saberes, uma verdadeira interdisciplinaridade, na qual a ciência da informação pode vir a ter uma contribuição importante” (Marcondes; Campos, 2008, p. 120).

Fato igualmente relevante, de modo especial nos arquivos, emerge na padronização ou mesmo hierarquização em sistemas de organização do conhecimento que tendem à limitação e restrição na representação dos domínios, seja através da linguagem, dos conceitos, mas, principalmente, da extensão simbólica.

Na organização e recuperação da informação, os SOC cumprem o objetivo de padronização terminológica para facilitar e orientar a indexação e os usuários. Quanto à estrutura, variam de um esquema simples até o multidimensional, enquanto que suas funções incluem a eliminação da ambiguidade, controle de sinônimos ou equivalentes e estabelecimento de relacionamentos semânticos entre conceitos. (Carlan; Medeiros, 2011, p. 54)

Logo, chama atenção o fato de a modelagem de domínios ainda não atender à pluralidade das formas e expressões fixadas na cultura (Veltman, 2004; Marcondes; Campos, 2008) em se tratando de arquivos, suas configurações, conjuntos documentais únicos e diretamente ligados à tomada de decisão e à cultura. É mister discutir os processos múltiplos e interativos que o arquivo desempenha na sociedade sob a égide simbólica e multidimensional para a organização do conhecimento que neles se inscreve.

Arquivos, memórias e poder na pluralidade de saberes representacionais

Os conjuntos documentais produzidos e recebidos no âmbito dos arquivos pressupõem um repertório de informações que se registram em gêneros, espécies e tipologias que vão do convencional, ligados aos arquivos de primeira idade e de natureza administrativa, aos acervos de gêneros especializados que se acumulam organicamente em acervos contábeis, jurídicos, hospitalares, escolares, dentre outros (Paes, 2004).

Os acervos, por sua vez, ainda podem apresentar características que os identificam como especiais e que contextualizam artefatos tridimensionais, como medalhas, peças de vestuário etc. Eles são comuns a acervos de segunda idade com função social distinta de sua criação ou com apelo à memória, e possuem importante papel na edificação social sob o regime cultural vigente (Camargo, 2009). Podem ser históricos, pessoais, privados ou não. Segundo o dicionário de terminologia arquivística, os documentos especiais são definidos como:

Documento em linguagem não textual, em suporte não convencional, ou, no caso de papel, em formato e dimensões excepcionais, que exige procedimentos específicos para seu processamento técnico, guarda e preservação, e cujo acesso depende, na maioria das vezes, de intermediação tecnológica. (Arquivo Nacional, 2005, p. 75)

Dispositivos simbólicos que remontam às narrativas das instituições e pessoas compõem os acervos de arquivos de segunda idade, implicando legados patrimoniais que cumprem o papel de informar acerca do contexto e da trajetória social. Por natureza, eles passam por um processo de construção intencional das narrativas apresentadas por meio dos conjuntos documentais (Oliveira, 2010), ou seja, os acervos de arquivos expressam um ideal no contexto de narrativa socialmente construída e pautada na intencionalidade dos discursos, que emanam dos conjuntos documentais a partir do poder simbólico que lhes é conferido, inicialmente, pelas figuras de poder, mas que se cristalizam com a institucionalização dos discursos oriundos dos documentos remanescentes.

Nesse olhar, as narrativas produzidas, reformuladas e reafirmadas dos conjuntos documentais se qualificam no “capital simbólico” como um dispositivo de poder que emerge pela capacidade de articulação dos sujeitos mediante a representatividade e moral social (Bourdieu, 1998). Alia-se a isso o fato de o processo de construção simbólica ser uma ação copartícipe dos sujeitos que se configuram como agentes ativos na formulação e compartilhamento de significados ante o contexto social, sendo a memória um processo biopsíquico de abstração do social (Blumer, 1969).

Sob o prisma da memória como uma arte da articulação, as narrativas históricas precedem o poder simbólico, pois a seletividade e o movimento de lembrar e esquecer compõem o aparato normativo do discurso construído pelos sujeitos de memória, posto que não se busca a representação do todo, mas a particularidade na perspectiva e abordagem pretendidas e comunicadas (Ricoeur, 2007). Segundo Leroi-Gourhan (1987), a memória reafirma condições à permanência de atos na sociedade assegurando o comportamento, os mecanicismos e a lógica em prol de novos atos. Simbolicamente, implica dizer que a memória é um produto social (memória étnica), construída e moldada a partir das interações na cena social.

Os arquivos são uma parcela representativa, parcial e fragmentada do discurso simbólico da memória e história pautada no poder vigente, mas que se sustenta por meio do reconhecimento de sua relevância pela sociedade a partir da identificação desta última com seus conjuntos documentais e, mais especificamente, com o teor informativo que eles contêm, ora regido pelo capital simbólico, ora pela capacidade de autossignificação e pertencimento dos sujeitos na elaboração de vínculos com os artefatos que os compõem.

Da mesma maneira, os acervos plurais e de segunda idade tendem, por natureza, a evocar o apelo à memória, mas necessitam de um esforço significativo no contexto de tratamento e planejamento de meios de acesso e difusão, como, por exemplo, a formulação de estruturas de organização do conhecimento que tendem a comunicar parcialmente e, sob a ótica de seus desenvolvedores, revelar o conteúdo dos arquivos que já é culturalmente fragmentado.

Filosofia cassireriana das formas simbólicas: o método

Este estudo contou com uma lógica pautada na filosofia das formas simbólicas (Cassirer, 2001; 2004) sob a filosofia cassireriana,1 que entende o homem como um animal simbólico, bem como elenca em sua tese, de modo geral, que há múltiplas formas de objetivação para a “realidade” ou “formas simbólicas” e pontua que elas têm o mesmo grau de validade.

A perspectiva cassireriana ampliou a epistemologia iniciada com a Revolução Copernicana por Immanuel Kant e que até o século XVIII era pautada no campo das teorias do conhecimento: racionalismo (baseado na ideia inata do saber) e empirismo (focado na experiência para aquisição de conhecimento). Cassirer (2004) institui a noção do símbolo como um referencial do real a partir de seu significado construído socialmente por meio dos sujeitos no âmbito da cultura. Assim, uma representação se torna apenas parte de um mito, religião, arte, linguagem e a própria ciência, que, por sua vez, também são partes do real. Nessa direção, os signos não detêm um significado universal apenas no “universo simbólico” ao qual pertencem.

Destarte, a filosofia cassireriana, como parte das bases epistemológicas para reflexão sobre o simbólico na cultura e sua representação, corroborou a partir do tema central de organização do conhecimento, nas áreas de ciência da informação e arquivologia, o pensar a construção dos significados representacionais que são limitados, intencionalmente, no processo de escolha dos signos e construção do sentido que estes devem operar, sobretudo, para conferir tangibilidade aos processos, por exemplo, em sistemas de organização do conhecimento com foco na recuperação da informação. Ou seja, Cassirer (2001) desloca a abordagem do estruturalismo para o culturalismo na perspectiva das representações sociais.

Tendo em vista esse panorama, realizou-se um estudo teórico que segue o método ensaístico para o qual os textos selecionados representam contribuições à arguição desta contextualização conceitual, assim como imprimem prospecções acerca dos cenários de desenvolvimento multidisciplinar para a organização do conhecimento em arquivos. Naturalmente, há limitações no estudo por figurar como um esforço de contribuição teórica no tocante à reflexão proposta, dada a inexistência de diálogos similares na literatura publicada, especialmente no Brasil.

A abordagem na ponderação da análise dos conteúdos é de natureza qualitativa, por adquirir coesão com as proposituras cassirerianas na busca por aspectos da realidade inquantificáveis, centrando-se na compreensão e explicação da dinâmica das relações sociais, pois a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores, atitudes etc. Ou seja, corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos, que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis estatísticas (Minayo; Sanches, 1993).

Apresentação e discussão dos resultados

A organização do conhecimento visa representar uma parcela da realidade ante o domínio de um universo plural em que a “representação de um conteúdo dentro do outro e através do outro constitui uma premissa essencial para a construção da consciência e a condição de sua própria unidade formal” (Cassirer, 2001, p. 61). Tem sua lógica em sistematizar nos signos/palavras/conceitos, a dimensão de significado modelado, intencionalmente, para que o signo atue em um dado regime de sentido e assim viabilize a compreensão pelos agentes envolvidos (humanos/máquinas/sistemas de informação) na recuperação do contexto pretendido ou previamente determinado sob as lentes do(s) indivíduo(os) que edifica(m) culturalmente a natureza simbólica dos atos representacionais (Dahlberg, 1993; Marcondes, 2012; Carlan; Medeiros, 2011).

As unidades de significado identificadas no estudo organizacional, metodologia de identificação com base na diplomática orientada à arquivística ou na análise documentária, e a própria organização do conhecimento devem buscar equidade simbólica nos eixos de cultura, grupos hegemônicos e minoritários para reverberar de modo plural nos produtos elaborados a partir dos processos que os constituem em meio à disputa constante do campo simbólico no fenômeno social, uma vez que o indivíduo simbólico não se encontra individualmente senão por intermédio do social (Cassirer, 2004). Pontua-se, também, que sem assegurar pluralidade ao potencial identitário, como no caso dos arquivos, o valor simbólico é exponencialmente comprometido.

Expandir as leituras das estruturas de significado (os conceitos) e associá-las a modelos naturais, imagéticos e gráficos de comunicação, para cobrir o maior espectro cultural de relevância simbólica, parece ser um caminho oportuno para explorar as interpretações possíveis de um mesmo contexto ante as vozes simbólicas, por exemplo, que emanam dos conjuntos documentais passíveis de múltiplas significações, ao passo que são únicos, mas múltiplos sob a ótica dos significados possíveis a cada indivíduo imerso através das culturas e das dinâmicas regentes da realidade social na qual se inserem.

Se quisermos compreender o simbolismo artificial, os signos “arbitrários” que a consciência cria na linguagem, na arte, no mito, será necessário remontar ao simbolismo “natural”, àquela representação da consciência como um todo, que necessariamente já está contida ou, pelo menos, existe virtualmente em cada momento e em cada fragmento da consciência. (Cassirer, 2001, p. 62)

O real é assim dissolvido em diferentes estruturas relacionais que são mutuamente interligadas por um sistema total de leis que simultaneamente se condicionam (Cassirer, 2001). Na arquivologia, os conjuntos documentais institucionalizados correlacionam-se aos princípios da proveniência e unicidade dos arquivos, posto que são pontos sensíveis para o desenvolvimento de significado das estruturas de conhecimento no domínio arquivístico (Barros; Sousa, 2019).

Os sistemas representacionais são manifestações de uma cultura, bem como a infraestrutura para suportar essa cultura. Essas representações estruturam processos descritivos posteriores, criando limites aceitáveis de pensamento e discurso em torno da prática da representação arquivística. Ao mesmo tempo, esquemas de representação bem-sucedidos devem suportar um grau de ambiguidade. (Yakel, 2003, p. 6, tradução nossa)

Neste ponto, é inevitável indagar se damos conta do todo na organização do conhecimento na ciência da informação, no contexto dos arquivos e, necessariamente, na arquivologia. Como já expresso na práxis da literatura, torna-se evidente que não, como, por exemplo, nas ontologias de modo particular, pois ainda há dificuldade no emprego de gráficos, ilustrações, sendo a representação feita necessariamente por conceitos (Marcondes; Campos, 2008). Da mesma forma, ao delimitar e restringir a capacidade de significado, como forma de organizar, compromete-se a amplitude da cultura (Veltmam, 2004), ou mesmo a Energie des Geistes2 ou capacidade espontânea diluída na ação mediata (Cassirer, 2001).

Isso se constitui em algo preocupante sob as lentes sociais contemporâneas, pois, inúmeros símbolos culturalmente, hoje, considerados controversos, em todo o mundo, estão sendo contestados, ressignificados ou mesmo “silenciados” (Leal, 2020). Pensar um processo como a organização do conhecimento pormenoriza as culturas para viabilizar o tratamento dos registros do conhecimento e mediar o acesso. À luz de sua práxis e sob a ótica cassireriana, torna-se inquietante excluir estruturas plurais de discurso e interpretação pelo social, condicionando um discurso unilateral, sobretudo se o(s) interlocutor(es) atuar(em) de modo a promover conjunturas machistas, racistas, antiéticas, homofóbicas, dentre outras.

Os conjuntos de documentos, esquemas de representação que condicionam a significação, também constroem memórias artificiais, produzidas como ato simbólico de perpetuação ou ressignificação de discursos sociais a partir dos registros do conhecimento custodiados nos acervos de arquivos. Dando seguimento, cabe (re)avaliar as estruturas simbólicas a partir de diferentes lentes filosóficas e metodologias que podem propiciar significados que concatenem domínios complexos, senão por signos/conceitos, por imagens, gráficos etc.

Representar é, simbolicamente, um ato de poder exercido pelos indivíduos que detêm o capital simbólico e arquitetam o repertório de significado em um quadro estruturado, limitado e de baixa inferência cultural ante sua pluralidade (Bourdieu, 1998; Cassirer, 2001), de modo que o pensar sobre fatos simbólicos pode ser ampliado com a observação de estruturas fora do domínio específico a ser significado cientificamente para corroborar a significação, pois compõem o amplo espectro cultural no qual a própria ciência é apenas uma das facetas simbólicas presentes no fenômeno social, tendo os seres humanos como sujeitos simbólicos (animal symbolicum) (Cassirer, 2001).

As formas simbólicas atuam em consonância com a memória nos atos que reafirmam condições para perpetuação de narrativas sociais, comportamentos, e orientam novas significações no mesmo aspecto discursivo (Leroi-Gourhan, 1987). Nessa trilha de raciocínio, a própria noção da filosofia das formas simbólicas se relaciona com a perspectiva de interacionismo simbólico (Blumer, 1969), ou seja, os indivíduos como agentes ativos na criação de signos e significados, a partir do meio social em que pairam a produção e o compartilhamento de experiências através das interações que remontam à virada copernicana, em que os conteúdos sensíveis perpassam de maneira anterior aos simbólicos – logo a cultura influencia na significação, e não o contrário (Cassirer, 2001).

Complexa à luz da filosofia e sob o escopo da organização do conhecimento, a promoção de estruturas de significado no cenário dos conjuntos documentais de arquivo se revela um paradigma por sua natureza fenomenológica e relações com o campo cível e cultural. Sinaliza-se essa visão, sobretudo, com referenciais, ainda tão incipientes, em que, por tradição, aliam-se as contextualizações de base epistemológica à ciência da informação. Outrossim, olhar para a compreensão da arquivologia e suas reflexões contemporâneas sugere autonomia científica e de pensamento na esfera da organização do conhecimento (Silva, 2020).

Naturalmente, os avanços nos estudos para modelos de organização do conhecimento em arquivologia tendem a ensejar soluções que contemplem as prerrogativas sociais contemporâneas e a contextualização dos arquivos, uma vez que o signo requer uma dimensão sociocultural, devido ao “fato de que ele não somente serve à representação, como, sobretudo, à descoberta de determinadas relações lógicas, e de que ele não apenas oferece uma abreviatura simbólica, do que já é conhecido, como abre novos caminhos rumo ao desconhecido e não dado” (Cassirer, 2001, p. 68).

Nesse entendimento, é preciso pensar os exemplos de esquemas gráficos, como organogramas, mapas conceituais e estruturas sumarizadas já presentes digitalmente em atlas virtuais e imagens previamente selecionadas ante o contexto (como emojis), para aludir a determinados assuntos, como no projeto da web semântica, que podem de forma pré e pós-coordenada corroborar o incremento das estruturas linguística e lógica para propiciar repertórios amplos de signos e sinais em bases de dados para sistemas de informação. Com base nessa reflexão, inclusive, adotam-se linguagens inteligíveis a humanos e máquinas (ontologias) pautadas em repertórios simbólicos culturalmente externos às unidades de significado tradicionais das “ontologias híbridas” para propiciar facetas inteligentes tanto na entrada como na saída de dados em sistemas informacionais, o que parece um caminho oportuno à arquivologia.

A situação acima abordada alia-se ao desenvolvimento de tecnologias como algo que antecipa os ruídos na representação temática, descritiva e de sinais (visuais ou sonoros) para um objeto ou conteúdo por parte do usuário, por exemplo, alinhando-se à perspectiva taxonômica, em “base técnico-operacional, abordagem mais prática no desenvolvimento de tesauros: planejamento, coleta de termo, controle terminológico, estabelecimento de relações entre conceitos e formas de divulgação e publicação” (Carlan; Medeiros, 2011, p. 56). No caso em pauta, isso pode representar um ensaio e possibilidade de agenda de estudos para propositura metodológica específica a ser desenvolvida no âmbito da organização do conhecimento com base na inteligência artificial para as áreas de ciência da informação e arquivologia.

Considerações finais

Conforme apresentado, os conjuntos de documentos apresentam múltiplas possibilidades de contextualização. No âmbito da arquivologia, eles recebem o tratamento e as dimensões epistemológica, legal e social de arquivos institucionais. Estes desempenham um importante papel na edificação das responsabilidades cível e cultural, uma vez que os acervos são susceptíveis a inúmeros processos que visam à sua organização, tratamento, guarda ou eliminação, e recuperação da informação.

A organização do conhecimento, como processo que visa sistematizar estruturas de conceitos ante um domínio para viabilizar a recuperação da informação, recebe influências filosóficas (estruturalistas), de áreas como a ciência da informação (viés documental), que corroboram reflexões teórico-metodológicas clássicas (representação temática e descritiva da informação) e contemporâneas, com diálogos em base tecnológica, como ontologias digitais orientadas à inteligência artificial mediante a lógica que passa a ser inteligível a humanos e máquinas.

Com a transformação digital, paradigmas de organização da informação e do conhecimento se reformulam, pois recebem do fenômeno social sua influência e significado. Nessa conjuntura, pensar os sistemas de organização do conhecimento para culturas contemporâneas tem passado por refletir sobre suas demandas e necessidades simbólicas, pormenorizadas nos sistemas de representação, mas passíveis de ampliação à luz de estratégias científicas como a perspectiva cassireriana.

Observar a filosofia das formas simbólicas se revela uma metodologia social interessante, uma vez que possibilita remodelar estruturas tradicionais e, a partir das tecnologias vigentes, construir repertórios de significado plurais, por exemplo, com a inclusão de elementos simbólicos extrínsecos às instituições ou leituras simbólicas que compõem o amplo prisma social. Nos arquivos, requer pensar tal expansão de pensamento no repertório de representações dos conjuntos documentais aproximando-os simbolicamente e culturalmente da sociedade por meio da memória a que aludem. Assim, depreende-se que eles são parte do real e têm seu sentido edificado no social.

Por fim, as estruturas de poder e narrativas estruturais presentes na determinação de signos e significados na organização do conhecimento em arquivos se lançam como um desafio complexo que só pode ser cumprido a partir de um diálogo socialmente estabelecido, pois os arquivos são uma parcela do real, e as estruturas de organização do conhecimento, um recorte intencional daquele já existente e que ganha sentido apenas através dos sujeitos na cultura vigente. Assim, e a partir da perspectiva cassireriana, pensar estruturas de representação e significado deve ser um processo não apenas científico, mas culturalmente ativo.

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Recebido em 14/9/2021

Aprovado em 7/3/2022


Notas

1    De Ernst Cassirer (1874-1945), judeu, alemão, filósofo e professor universitário.

2    Toda autêntica função do espírito humano partilha com o conhecimento a propriedade fundamental de abrigar uma força primeva formadora, e não apenas reprodutora (nachbildende Kraft). Ela não se limita a expressar passivamente a presença de um fenômeno, pois possui uma energia autônoma do espírito, graças à qual a presença pura e simples do fenômeno adquire um determinado “significado”, um conteúdo ideal peculiar (Cassirer, 2001, p. 19).



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