Acervo, Rio de Janeiro, v. 35, n. 3, set./dez. 2022

Independências: 200 anos de história e historiografia | Dossiê temático

Articular o tempo do Rio Grande do Norte ao tempo da nação Augusto Tavares de Lyra e a narrativa da Independência do Brasil na província

Articulate the Rio Grande do Norte’s time with the nation’s time: Augusto Tavares de Lyra and the narrative of the Independence of Brazil in the province / Articular el tiempo de Rio Grande do Norte con el tiempo de la nación: Augusto Tavares de Lyra y la narrativa de la Independencia de Brasil en la provincia

Bruno Balbino Aires da Costa

Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de História do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), campus Canguaretama, Brasil.

bruno.aires@ifrn.edu.br

Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar de que maneira Tavares de Lyra instituiu em seu texto “Algumas notas sobre a história política do Rio Grande do Norte”, publicado em 1907, uma dada ordem do tempo para o Rio Grande do Norte, examinando de que forma as narrativas criadas por ele foram fundamentais para a elaboração de uma memória histórica.

Palavras-chave: tempo; memória histórica; Rio Grande do Norte.

Abstract

This article aims to analyze how Tavares de Lyra instituted in his text “Some notes on the political history of Rio Grande do Norte”, published in 1907, a given order of time for Rio Grande do Norte, examining how the narratives created by him were important for the elaboration of a historical memory.

Keywords: time; historical memory; Rio Grande do Norte.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar cómo Tavares de Lyra instituyó en su texto “Algunas notas sobre la historia política de Rio Grande do Norte”, publicado en 1907, un orden temporal dado para Rio Grande do Norte, examinando cómo las narrativas creadas por él fueron fundamentales para la elaboración de una memoria histórica.

Palabras clave: tiempo; memoria histórica; Rio Grande do Norte.

Introdução

Nascido no dia 25 de dezembro de 1872, na cidade de Macaíba (RN), Augusto Tavares de Lyra é considerado, pelos seus biógrafos e por vários intelectuais do Rio Grande do Norte e do Brasil, um dos principais personagens da política e da intelectualidade do estado (Lyra, 1973). Formado em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito de Recife (FDR), em 1892, logo depois de se tornar bacharel, voltou ao Rio Grande do Norte e abriu seu escritório de advocacia em Natal, onde também passou a dar aulas de história no Atheneu Norte-rio-grandense. Foi redator do jornal A República, de Natal, de propriedade do seu sogro, Pedro Velho, o primeiro governador do estado. Foi deputado, governador do Rio Grande do Norte, senador da República, ministro da Justiça, ministro da Viação, ministro do Tribunal de Contas e ministro interino da Fazenda. Como intelectual, contribuiu com a publicação de vários artigos no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. Em 1907, entrou para o quadro de sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), onde atuou assiduamente, e foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), criado em Natal, no dia 29 de março de 1902.

Em relação à atuação no IHGRN, Augusto Tavares de Lyra foi um dos sócios que colaborou significativamente com o projeto da agremiação de elaborar uma memória histórica para o Rio Grande do Norte. O IHGRN, aliás, surgiu com um duplo objetivo, qual seja, organizar uma memória arquivada, isto é, reunir e coligir toda a documentação referente ao passado do Rio Grande do Norte, bem como construir uma memória histórica norte-rio-grandense (Costa, 2017). Para isso, os sócios do instituto norte-rio-grandense, dentre eles Tavares de Lyra, escreveram textos historiográficos que abordavam determinados eventos da história do estado, organizando uma dada ordem do tempo para o Rio Grande do Norte, isto é, fixando sua origem no tempo, e o seu lugar, nos principais acontecimentos históricos do Brasil, articulando-o ao tempo da nação. O primeiro texto de Augusto Tavares de Lyra publicado pela revista do IHGRN é um exemplo dessa engenharia historiográfica.

Publicado em 1907, o artigo “Algumas notas sobre a história política do Rio Grande do Norte” foi o primeiro texto de Tavares de Lyra dedicado exclusivamente à história norte-rio-grandense. O objetivo do intelectual potiguar era o de produzir uma narrativa que evidenciasse as ações dos governadores da capitania/província que atuaram no interstício de 1817 a 1824. Em outras palavras, seu intento era destacar a repercussão e a consolidação da Independência do Brasil no Rio Grande do Norte, “ou antes, quais acontecimentos que, então, se desdobraram entre nós, tal o objeto das notas que se seguem” (1907, p. 15).

Nesse sentido, parto da hipótese de que a proposta de Tavares de Lyra em seu referido texto era a de estabelecer uma relação temporal entre o Rio Grande do Norte e o Brasil, isto é, organizar uma ordem do tempo para o estado, articulando-a ao tempo da nação. Assim, este artigo tem como objetivo analisar de que maneira Augusto Tavares de Lyra instituiu uma dada ordem do tempo para o Rio Grande do Norte, examinando de que forma as narrativas criadas pelo referido intelectual foram fundamentais para a instituição de uma dada memória histórica.

Por uma história política do Rio Grande do Norte

Como sugere o próprio título do artigo, o relato histórico tecido por Tavares de Lyra diz respeito, fundamentalmente, à história política. É imperioso ressaltar que uma parte significativa da produção historiográfica do século XIX, sobretudo na França e na Alemanha, estava voltada para os temas caros aos enredos políticos, especialmente no que tange à guerra e à diplomacia (Ranke, 2010, p. 208). Isso não quer dizer que a história política oitocentista se reduzisse apenas aos temas vinculados à guerra e à paz. A história das relações entre os Estados nacionais e a história dos políticos, ou de personagens atrelados ao Estado nacional, eram temas igualmente recorrentes entre os historiadores oitocentistas (Fontana, 2004, p. 227). A emergência do nacionalismo no século XIX, sobretudo o alemão, possibilitou uma reorientação na produção historiográfica, doravante orientada em conformidade com as demandas dos Estados nacionais, com o escopo de legitimá-los historicamente.1 Os próprios historiadores eram, muitas vezes, homens do Estado, e seus escritos, de maneira geral, estavam em consonância com os assuntos de natureza política (Bentivoglio, 2010). À guisa de exemplo, podem-se citar os artigos de Augusto Tavares de Lyra publicados no jornal A República, para o qual passou a escrever em 1893, mais especificamente na coluna “Em vários tons”, em que demonstrava o seu compromisso em defender as convicções e concepções políticas, prontamente comprometidas com a causa republicana advogada por Pedro Velho – líder da primeira oligarquia a comandar os principais postos da política do Rio Grande do Norte. O mesmo teor aparece em seus textos publicados na Revista do Rio Grande do Norte, em que saiu em defesa dos valores do regime republicano e do governo liderado por Pedro Velho (Costa, 2017). Desde o começo da sua carreira como jornalista, Augusto Tavares de Lyra tomava o político como objeto da sua análise intelectual. Não é por acaso que a grande maioria dos seus textos historiográficos tenha como tema geral a história política.

Dentro do quadro geral da história política do Rio Grande do Norte, Augusto Tavares de Lyra optou por um recorte temporal que compreendia o momento em que a capitania passou a se tornar uma província, no contexto do processo de construção e de consolidação da emancipação do Brasil. É interesse ressaltar que essa escolha não foi por acaso. Por um lado, estava diretamente relacionada ao momento em que o Rio Grande do Norte se tornava independente judicialmente da Paraíba, e econômica e administrativamente de Pernambuco, logo após a Revolução de 1817. Por outro, a temporalidade correspondia ao processo de emancipação política do Brasil e ao início da organização do Estado nacional.

A tensão como condição de explicação da história

A tensão entre colonizadores (portugueses) e colonizados (brasileiros) é o mote de explicação da Independência. Segundo Tavares de Lyra, a rivalidade entre a vítima e o explorador, proporcionada pelo próprio sistema colonizador, explica as constantes revoltas e as lutas sangrentas ocorridas no Brasil desde o período colonial, desembocando no processo de emancipação: “Os abusos das autoridades e depredações dos colonizadores cavaram fundo os dissentimentos; e, chegado o dia das reivindicações, a Independência – sonho e anhelo dos patriotas – viria, factualmente, num movimento triunfante” (1907, p. 6). Fica claro que, para Tavares de Lyra, a emancipação política do Brasil é pensada de maneira fatalista. Muitos letrados republicanos do final do século XIX e início do XX faziam também essa leitura. Para eles, a Independência era considerada como algo inevitável, presente na própria natureza da nação (Sousa, 2012, p. 27). Não é sem razão que Moreira de Azevedo2 tenha afirmado em seu artigo “A Independência do Brasil”, publicado em 1897, pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, que a emancipação política da nação foi obra mais da natureza do que dos seus filhos (1897, p. 98). Para muitos homens de letras do Brasil oitocentista, o passado se tornava unívoco e o processo em direção à Independência “tem o sentido de marcar a irresistibilidade da história” (Sousa, 2012, p. 27). Desse modo, a inevitabilidade da emancipação política da nação explicaria o próprio processo de oposição entre os interesses dos portugueses e dos brasileiros.

O binômio exploradores e vítimas, correspondendo, respectivamente, a portugueses e brasileiros, é exemplificado no diálogo de Augusto Tavares de Lyra com o texto de Muniz Tavares3 sobre a Revolução Pernambucana de 1817. Ambos partiam do pressuposto de que as rivalidades entre os brasileiros e os portugueses despertaram o interesse dos grupos políticos locais pela independência em relação à metrópole. Desse modo, o antagonismo entre portugueses e brasileiros construía, paulatinamente, os rumos em direção à causa autonomista, consumada com o aguçamento das tensões entre eles devido à instalação da corte no Brasil. Logo, o episódio da transferência da sede do governo português para o Rio de Janeiro seria o ponto de partida para a emancipação política nacional, uma vez que as concessões conferidas pela metrópole em solo brasileiro, como a Abertura dos Portos e a elevação da colônia à condição de reino, teriam estimulado o patriotismo dos brasileiros, já evidente desde as lutas do período colonial: “A semente, lançada em terreno fértil, havia de brotar, regada com amor e carinho pelos brasileiros. Logicamente, não podíamos deixar de chegar à constituição definitiva de uma nacionalidade livre” (Lyra, 1915, p. 7).

A conjuntura do outro lado do Atlântico, marcada pela vitória da Revolução do Porto e da orientação política das cortes portuguesas, também teria contribuído para o despertamento “do querer e do sentir nacionais”, segundo Tavares de Lyra (1915, p. 9). Para ele, o retorno de d. João VI para Portugal em 1821, em decorrência da pressão política exercida pelos lusitanos, e, consequentemente, a permanência de d. Pedro I no Brasil, foram decisivos para a consumação da Independência (1915, p. 9). No entanto, a volta de d. João VI foi considerada apenas como uma causa ocasional da emancipação, e não a sua causa primordial.

Reduzir o papel de d. Pedro I na Independência do Brasil

Como já foi dito, Tavares de Lyra compreendia que o sentimento autonomista dos brasileiros era uma tendência presente na própria natureza da nação, e não um mero casuísmo histórico. Por um lado, afirmar essa inclinação dos brasileiros para a nacionalidade livre era uma forma de conferir ao povo o protagonismo da Independência nacional. Por outro, era maneira de reduzir o papel de d. Pedro I no processo emancipacionista do país: “Os desejos de d. Pedro não eram, por certo, fazer a Independência do Brasil. A ela chegou arrastado pelas contingências do momento [...]. Foram, pois, os acontecimentos que fizerem dele o libertador do povo que tinha de governar um dia” (Lyra, 1915, p. 10). Como se pode perceber nesse excerto, o historiador norte-rio-grandense não nega a contribuição de d. Pedro I na Independência, no entanto não o coloca como protagonista do movimento. O príncipe regente é apenas um dos agentes de uma vontade nacional em curso. Nesse sentido, d. Pedro I não é o protagonista que determina os acontecimentos históricos, convergindo-os em direção à emancipação, pelo contrário, o imperador é determinado pelos próprios eventos. Essa forma de compreender o papel reduzido de d. Pedro I no processo emancipacionista da nação evidencia a contraposição de Augusto Tavares de Lyra ao conjunto geral de intepretações correntes, embora não hegemônicas, no país sobre os protagonistas da Independência, em especial a versão de Varnhagen.

No segundo tomo da História geral do Brasil (1857), Varnhagen confere a d. Pedro I não só a centralidade da emancipação da nação, mas também a sua importância para a manutenção da sua unidade territorial: “Deus protegeu o Brasil, inspirando a d. Pedro o meio de o salvar!” (Varnhagen, 1857, p. 438). O príncipe regente é colocado como um “salvador da pátria”, o qual a livra do “separatismo” e da “anarquia” das vizinhas repúblicas latino-americanas. É interessante notar que a ação de d. Pedro I aparece associada a um ente transcendental: Deus ou a Providência. A intervenção da Providência se apresenta no texto de Varnhagen como um recurso explicativo do acontecimento, o qual coloca d. Pedro I no centro da ação como um protagonista inspirado a consumar o desígnio divino (Cezar, 2002, p. 564). Nesse sentido, a presença da Providência age por trás da ação de d. Pedro I, que concretiza o seu intento teleológico. Esse tipo de leitura providencialista é regular na obra de Varnhagen, chegando “às vezes, quase às raias da intervenção milagrosa, sobretudo quando estão em jogo valores e princípios caros ao autor, como a defesa do que considera os interesses nacionais” (Wheling, 1999, p. 80). É importante ressaltar que Varnhagen era um homem de saber fortemente vinculado à historiografia produzida pelo IHGB oitocentista e, por conseguinte, atrelado aos interesses do Império brasileiro. Varnhagen era monarquista conservador, defensor de um Estado forte, unitário, centralizador e imperial, o que demonstra como sua narrativa constrói uma semântica que interessa aos homens de Estado e homens de letras ligados à corte, daí o destaque conferido a d. Pedro I na Independência do Brasil.

Diferentemente de Varnhagen, Tavares de Lyra em seu texto “Algumas notas sobre a história política do Rio Grande do Norte” considera que a ação de d. Pedro I é fruto de uma vontade geral, isto é, de uma tendência imanente do povo brasileiro em realizar o desígnio de sua própria natureza, e não um ato guiado pela Providência divina. Em outras palavras, a Independência do país era um dado, um devir, que se concretizaria sem ou com o auxílio d. Pedro I.

Além de Varnhagen, a interpretação de Tavares de Lyra se contrapunha aos textos de alguns dos seus consócios do IHGB. No artigo do sócio Tristão de Alencar de Araripe, intitulado “Patriarcas da Independência nacional”, publicado em 1894, pela Revista do IHGB, há uma clara intenção de evidenciar o protagonismo de d. Pedro I no processo de emancipação da nação, a despeito da espontaneidade e do ânimo de todos os brasileiros e da importância de outros patriarcas, como José Clemente Pereira e José Bonifácio de Andrada, para a sua consumação: “sem a sua explícita vontade eles se não praticariam; bastava a sua recusa para serem impedidos; o mérito do príncipe na realização da nossa Independência é portanto da mais patente e incontestável verdade” (Araripe, 1894, p. 177). Em posição oposta ao seu patrício, Augusto Tavares de Lyra considerava que o brado de Ipiranga, realizado por d. Pedro I, era apenas uma constatação de um fato que já havia sido feito “no espírito e no coração dos brasileiros” (1915, p. 15). Essa forma de conceber o papel de d. Pedro I na Independência é parte da própria concepção política de Augusto Tavares de Lyra. A formação em direito no Recife, instituição de certa vanguarda na difusão da tradição republicana do país, e a aproximação política com o fundador do Partido Republicano do Rio Grande do Norte (PRRN) e líder do republicanismo oficial do estado, Pedro Velho, foram fundamentais para a construção do pensamento republicano de Tavares de Lyra.

Republicano convicto, Augusto Tavares de Lyra publicou no início dos anos noventa do século XIX vários artigos no jornal A República, mais precisamente em sua coluna “Em vários tons”, defendendo o neófito regime republicano e, consequentemente, criticando de forma severa alguns aspectos do regime monárquico do país, por exemplo, a instrução pública (1893a). Tavares de Lyra fez da sua coluna no jornal uma trincheira para combater os adversários de Pedro Velho e da República. Além disso, se posicionou como um militante do Batalhão Patriótico Silva Jardim, criado por Pedro Velho, no início dos anos 1890, com o objetivo de combater possíveis avanços dos considerados movimentos monarquistas: as revoltas da Armada e Federalista (Flores, 2010, p. 70).

No Rio Grande do Norte, a irrupção da Revolução Federalista e da Revolta da Armada permitiu que muitos partidários do republicanismo, mesmo os que não eram simpáticos à ala do jacobinismo florianista, defendessem as ações de Floriano no combate a sedições por considerarem-no o único capaz de salvar a República do perigo e da iminência da volta à monarquia (Bueno, 2002, p. 244). Para Tavares de Lyra, essa ameaça se concretizou no instante em que o almirante Saldanha Gama assumiu a liderança desses movimentos e, por conseguinte, demonstrou o intuito de apelar para a nação por meio de um plebiscito sobre a legitimidade da República, o que demostrava, para ele, “uma tentativa clara de restauração” (1898a, p. 39). Pedro Velho seguiu a orientação nacional de radicalização republicana, criando, em 1893, o Batalhão Silva Jardim. Em todo o país emergiram os chamados batalhões patrióticos; no Ceará, por exemplo, foi criado o Batalhão dos Servidores da Pátria, com o objetivo de defender as instituições republicanas em luta contra os “revoltosos monarquistas, que acabam de manifestar o intuito de restauração” (O Caixeiro, 1893). Assim como o congênere cearense, o Batalhão Silva Jardim tinha como escopo “reparar a denúncia minaz da ideia de restauração”, defendendo “a todo transe a República” (O Caixeiro, 1894).

Composto por civis liderados por um militar, o major Pedro Lima, os “soldados”, oriundos da “fina flor” da sociedade norte-rio-grandense, eram treinados para uma eventual necessidade, caso ocorresse a generalização das revoltas de cunho monarquista, que colocasse “em perigo a sobrevivência das instituições republicanas” (Bueno, 2002, p. 244-245), como demonstra o anúncio do jornal O Caixeiro do dia 3 de janeiro de 1894:

Ontem realizaram os voluntários do batalhão “Silva Jardim” o seu primeiro exercício de manejo d’armas, achando-se já bastante adiantados na escola de pé. [...] Na ocasião do serviço, o comandante arvora as figuras necessárias à boa ordem e regularidade de manobras. É um belo sistema igualitário e democrático, e algum tanto diferente do que se observa na guarda nacional do Estado, onde todos são, pelo menos, tenentes coronéis. (Sem pedir já se vê?)

O certo é que, raramente, uma instituição terá despertado mais entusiasmo e gosto, do que se vai notando dos simpáticos defensores da República, que constituem o batalhão “Silva Jardim”.

Tavares de Lyra foi um desses jovens voluntários do batalhão, defensores da República contra a considerada ameaça monarquista. Na coluna “Em vários tons” do dia 18 de março de 1893, Tavares de Lyra publicou um artigo criticando os oposicionistas do governo Floriano e apoiadores das revoltas que estavam ocorrendo no Sul do país, construindo um discurso que desqualificava os oposicionistas, adjetivando-os de antipatriotas, indignos, perturbadores da ordem e restauradores:

E nem de outra maneira se explica a eclosão enorme de aplausos com [que] os habitantes de todos os estados da União cobriram o governo federal, ao assumir esta posição franca e definida de combate, em todos os terrenos, aos que lá no Rio G. do Sul, onde outrora com generosidade e patriotismo foi derramado sangue de muitos heróis, na efetiva prática das ideias que levaram ao patíbulo o abnegado sublime, como Silva Jardim chamou ao alferes Xavier, o Tiradentes, pretendem agora a restauração. (Lyra, 1893b)

Como se pode perceber nesse trecho do artigo, Tavares de Lyra é um franco apoiador da intervenção militar do governo Floriano nas sedições que estavam ocorrendo no Sul, defendendo medidas enérgicas do governo em relação aos “revoltosos restauradores” que “promoviam” a desordem do país.

Em outro artigo, publicado na coluna “Em vários tons”, no dia 28 de janeiro de 1893, Tavares de Lyra compreende que a única solução para a estabilidade da paz no Brasil e a garantia das instituições republicanas era o estabelecimento completo da ordem: “É um empenho de honra a realização desse desideratum, que conduzira a República, pelo caminho da ordem à conquista do progresso que é a síntese dos destinos da humanidade, na frase de Condorcet” (1893c). Nessa passagem, fica explícito o flerte de Tavares de Lyra com a concepção republicana defendida pelos positivistas, que acreditavam na instituição de um governo executivo forte para a manutenção da ordem material e política, com vistas a atingir também o progresso da nação. O entendimento de que a manutenção da ordem era o que garantiria o progresso fomentou a mobilização dos soldados-cidadãos a defender o regime republicano das ameaças restauradoras. Nesse contexto, Tavares de Lyra militava a favor da causa republicana em duas frentes: combatia os simpatizantes da monarquia por meio da publicação dos seus artigos da coluna “Em vários tons” e no engajamento miliciano do Batalhão Patriótico Silva Jardim. O comprometimento com a causa republicana e com Pedro Velho o fizeram participar do batalhão, sendo encarregado de inspecionar “a aptidão e a crença republicana de todos aqueles que pretenderem fazer parte do mesmo batalhão” (O Caixeiro, 1894). Militante republicano e franco opositor dos movimentos considerados monarquistas, Augusto Tavares de Lyra, nesse momento específico da sua vida intelectual, lia a história política do Brasil a partir da grade do republicanismo. É por essa razão que o historiador norte-rio-grandense não mediu esforços para esmaecer o papel de d. Pedro I no processo emancipacionista da nação, afinal de contas o príncipe era uma figuração da própria presença da monarquia na formação histórica do país.

Antes da Independência, a Revolução

Ao expor o conjunto geral dos acontecimentos que levaram d. Pedro I ao brado do Ipiranga, Augusto Tavares de Lyra parte para a concretização do objetivo primordial do seu artigo: examinar como a Independência do Brasil “repercutiu e se consolidou no Rio Grande do Norte” (1915, p. 15). Em outros termos, constrói uma narrativa que articula o tempo da nação ao tempo do Rio Grande do Norte. Isso fica evidente na própria economia do seu texto, tendo em vista que, primeiramente, o autor narra os acontecimentos gerais que levaram à Independência do Brasil e, posteriormente, trata de evidenciar a sua repercussão no Rio Grande do Norte. A proposta de Augusto Tavares de Lyra é mostrar aos seus leitores como a história-memória da nação implica a história política do estado. A narrativa do todo (Independência do Brasil) explica a parte (a repercussão no Rio Grande do Norte). A estratégia de Tavares de Lyra é reconfigurar a escala. É por essa razão que começa a segunda parte do seu texto mostrando o cenário político do Rio Grande antes do processo de emancipação do Brasil.

Em seu texto “Algumas notas sobre a história política do Rio Grande do Norte”, Augusto Tavares de Lyra fez um exercício semelhante ao que Muniz Tavares empreendeu no primeiro capítulo de sua História da Revolução de Pernambuco de 1817 (1840), qual seja, apresentou o cenário político do Rio Grande do Norte em 1817. O ponto de partida é óbvio: a Revolução de 1817. Esse acontecimento histórico foi alçado pelos adeptos do republicanismo, sobretudo aqueles oriundos dos estados do Norte do Brasil, como um dos eventos precursores da Independência e do 15 de novembro. Para Tavares de Lyra, bem como para outros intelectuais do início do século XX, era bastante sugestivo começar um texto sobre a emancipação do Brasil e sua repercussão na província tratando acerca da Revolução de 1817.

Augusto Tavares de Lyra começa a segunda parte do texto citando o cenário econômico da província no limiar do oitocentos: “conquistado desde o fim do século XVI, o Rio Grande do Norte era ainda, no começo do século XIX, uma das capitanias mais pobres e atrasadas do Brasil” (1915, p. 15). Natal, sua capital, era um povoado sem importância e pequeno, “tinha, em 1817, apenas 700 habitantes” (1915, p. 15). Essas informações iniciais não dizem respeito, necessariamente, ao mérito da questão, da qual trataria no decorrer do texto. Elas não funcionam como recurso explicativo, tampouco expressam um conjunto de causas que elucidariam a irrupção do movimento de 1817 no Rio Grande do Norte. As informações supracitadas funcionam apenas como elementos descritivos, não oferecendo nenhum recurso explicativo que esclareça a repercussão da Independência do Brasil no Rio Grande do Norte.

A despeito de citar, laconicamente, a condição econômica em que se encontrava a província e a sua capital no momento da eclosão do movimento de 1817, o intento de Tavares de Lyra é concentrar-se, propriamente, no cenário político. É a partir dele que toda a narrativa se desenvolve:

Governava-o, nessa época, José Inácio Borges, que, nomeado a 4 de março de 1816, assumira o exercício de seu cargo em 16 de novembro do mesmo ano. Espírito culto e dotado de apreciáveis talentos, conheceu bem depressa os fundos desgostos e o geral descontentamento que lavravam na capitania e, com louvável solicitude, procurou captar a estima e o apoio dos que, pela sua influência, estavam no caso de tornar mais fácil a sua ação administrativa. Essa atitude – que não logrou evitar na capitania a repercussão do movimento revolucionário de Pernambuco, vitorioso no Recife a 6 de março de 1817 – foi mais tarde acoimada de vacilante e dúbia, sendo fora de dúvida que, num momento dado, ela tornou-se realmente inexplicável. (1907, p. 15-16)

O relato sobre o cenário político do Rio Grande do Norte, no momento da irrupção da Revolução de 1817, converge para a ação do até então governador José Inácio Borges. Como se pode perceber no excerto acima, Augusto Tavares de Lyra o descreve em um tom elogioso, adjetivando-o de talentoso, culto, solícito. A despeito do seu republicanismo e da sua crítica aos valores monarquistas, Tavares de Lyra construiu uma narrativa elogiosa para sua ação durante o movimento de 1817. A razão disso foi o uso de vários documentos do período, encontrados e coligidos pelo desembargador Vicente de Lemos, sócio fundador do IHGRN e seu amigo. Além de escrever o artigo, Augusto Tavares de Lyra disponibilizou no final do texto, em anexo, ao todo 128 documentos, oriundos, em grande medida, da pesquisa realizada por ele e pelo seu amigo, Vicente de Lemos, nos arquivos pernambucanos no início do século XX. Consoante Tavares de Lyra, os documentos presentes no anexo do artigo funcionavam, ao mesmo tempo, como prova das verdades históricas presentes no texto e como arquivo, o qual os historiadores do futuro poderiam consultar para deles extrair “a lição que encerram” (1907, p. 241). Entre os documentos encontrados e compilados pelo membro fundador do IHGRN, esteve o manuscrito de José Inácio Borges, intitulado “Memória resumida dos acontecimentos políticos que sofreu a capitania do Rio Grande do Norte no presente ano de 1817”, o qual resumiu os acontecimentos políticos concernentes ao momento da irrupção do governo revolucionário de 1817 no Rio Grande do Norte. Esse documento foi remetido ao acervo do IHGRN, logo nos primeiros anos de sua fundação, e publicado integralmente na edição de 1910 da sua revista. Em particular, a descoberta do manuscrito trouxe novas informações acerca do processo de instalação do governo revolucionário de 1817 no Rio Grande [do Norte]4 e, consequentemente, uma espécie de “revisionismo” sobre a figura de José Inácio Borges – bastante criticada pela historiografia norte-rio-grandense do século XIX (Costa, 2017).

Ao tomarem conhecimento do manuscrito, os historiadores do IHGRN depararam-se com um erro na data comemorativa da instalação do governo revolucionário de 1817. Até então, por meio do decreto n. 47, de 27 de agosto de 1890, o governador do estado e a Assembleia Legislativa tinham instituído como data comemorativa o dia 19 de março. Porém, com a descoberta do manuscrito de José Inácio Borges, a data foi corrigida para o dia 23 de março, sendo oficializada pela lei n. 210, de 6 de setembro de 1904.

Augusto Tavares de Lyra apropriou-se do manuscrito de José Inácio Borges e de uma gama significativa de documentos oficiais. Lido como um passaporte direto ao passado, o acervo documental do IHGRN permitiu a ele tecer outras considerações sobre a participação de José Inácio Borges durante o movimento de 1817, até então ignoradas pelos historiadores do Rio Grande do Norte do oitocentos. Tal desconhecimento se deu, em grande medida, em razão da própria escassez de documentos no estado. É importante salientar que não havia arquivos documentais no Rio Grande do Norte até a criação do IHGRN, em março de 1902. Além disso, os documentos referentes à instalação do governo provisório revolucionário no Rio Grande [do Norte] haviam sido destruídos pelo próprio José Inácio Borges, logo após a retomada do poder. Dessa forma, a explicação do “revisionismo” em torno da ação do governador durante a instalação do governo revolucionário de 1817 por parte de Tavares de Lyra deve ser buscada pelo uso dos documentos do período, graças à operação dos letrados norte-rio-grandenses no início do século XX. Isso não quer dizer que Tavares de Lyra tenha aprovado o posicionamento contrarrevolucionário do governador (1907, p. 17).

Augusto Tavares de Lyra considerava o governo revolucionário liderado por André de Albuquerque Maranhão como uma figuração de um movimento a favor da Independência do Brasil e da luta pela República. Para ele, o mérito do governo provisório de 1817 residia na instalação de um governo republicano no Rio Grande [do Norte]. Contudo, apesar do não envolvimento de José Inácio Borges com a revolução e sua postura oposicionista, Augusto Tavares de Lyra o considerava um patriota (1907, p. 18).

Segundo ele, com a retomada do poder pelo governador em junho de 1817, logo após o malogro da revolução em Pernambuco, José Inácio Borges teria agido com leniência com os revolucionários norte-rio-grandenses. A narrativa suaviza os efeitos violentos da retomada do poder, justificando, por um lado, a ação do governador, já que este devia lealdade ao rei, por outro, mostrando que as medidas adotadas em relação aos envolvidos na revolução não obtiveram o mesmo nível de crueldade se comparadas à experiência do tribunal em Pernambuco. De certa maneira, Tavares de Lyra absolve a atitude de José Inácio Borges para com os revoltosos:

A prisão de muitos e o confisco dos bens de todos se fez; mas o que é certo é que nenhum sofreu a pena de morte, em que todos haviam incorrido pelo crime de lesa majestade, e a linguagem em que são redigidas as informações oficiais – de que se induz o esforço e o vivo desejo de inocentar os companheiros de André de Albuquerque, fazendo recair sobre este, que já não existia, a culpa e as responsabilidades do movimento revolucionário – é bem significativa do interesse que o governador tomava pela sorte de muitos, senão de todos os rebeldes; e a absolvição que obtiveram [e] a preponderância que, ainda no seu governo, vieram a ter, ocupando algumas das primeiras posições da província, é um fato que, de futuro, poderá desafiar a atenção dos estudiosos na pesquisa da verdade histórica a respeito desse importante episódio de nossa vida política, no começo do século XIX. (Lyra, 1915, p. 19-20)

Na narrativa do excerto acima, é perceptível o interesse de Tavares de Lyra em afirmar que não houve excesso de violência por parte do governador para com os revolucionários. Tampouco há uma distinção entre André de Albuquerque, líder do governo provisório da revolução no Rio Grande do Norte, e José Inácio Borges. André de Albuquerque aparece na narrativa apenas como aquele personagem sobre o qual recaíram a culpa e a responsabilidade pelo movimento revolucionário. A ênfase está menos na morte de André de Albuquerque do que no caráter leniente do governo de José Inácio Borges no que tange à punição dos revoltosos. Essa assertiva diz respeito à maneira com que Tavares de Lyra leu os documentos oficiais referentes à administração política do Rio Grande do Norte, logo após a revolução de 1817. Para ele, a presença dos ex-revolucionários no corpo administrativo da província, durante o segundo governo de José Inácio Borges, comprovada pelos documentos oficiais citados no final do artigo, era uma evidência da tolerância e do caráter não beligerante do seu trato para com os envolvidos na revolução de 1817: “É fato que havia uma aproximação cordial entre José Inácio Borges e os adesistas da revolução de 17. Mais do que isto: ele dava-lhes preferências e distinções, que os seus inimigos exploravam com uma traição ao juramento de fidelidade ao rei” (Lyra, 1907, p. 29). Os documentos recolhidos e pesquisados por Tavares de Lyra o fizeram construir uma narrativa que reconfigurasse/reabilitasse a imagem de José Inácio Borges como um antagonista da Revolução de 1817 no Rio Grande do Norte. Fica evidente que o documento oficial era considerado, para ele, como uma via de acesso direto ao passado e uma garantia de que o texto do historiador diz a verdade. Para ele, a partir do documento, os estudiosos do futuro poderiam encontrar a verdade histórica a respeito de um determinado acontecimento da província. Nesse sentido, o documento, além de provar o que se diz, descortinaria o que estava encoberto na compreensão de um dado acontecimento histórico. A sua pesquisa foi fundamental para que Tavares de Lyra construísse uma narrativa distinta acerca do período do governo revolucionário de 1817.

A autonomia do Rio Grande do Norte antes da Independência do Brasil

Depois de tratar sobre a problemática geral da experiência revolucionária de 1817, Augusto Tavares de Lyra dedicou-se a salientar as implicações do restabelecimento do domínio português no Rio Grande do Norte. As mais destacadas por ele foram o alvará de 18 de março de 1818 e a criação dos “partidos políticos”. Decretado por José Inácio Borges, logo após a revolução, o alvará de março de 1818 foi a confirmação legal da independência da capitania, já que havia emancipado juridicamente o Rio Grande [do Norte] da Paraíba. Desde o século XVIII, a capitania era dependente econômica e politicamente de Pernambuco, e juridicamente da Paraíba. Os efeitos pós-Revolução de 1817 trouxeram a ruptura com as duas capitanias vizinhas, o que levou o Rio Grande do Norte à condição de província, conquistando sua autonomia. A independência da capitania passa a ser colocada como um marco, uma reconfiguração na ordem do tempo do Rio Grande do Norte. O texto de Augusto Tavares de Lyra construía uma experiência temporal para a província a partir de sua autonomia política, isto é, da sua organização enquanto um estado livre e soberano, embora pertencente ao domínio português, o que não deixa de ser também uma forma de fixar o tempo para o estado. Em outros termos, isso quer dizer que a história do Rio Grande do Norte, enquanto uma província independente e soberana, teve sua origem com o decreto do alvará de 1818, que, segundo ele, “foi o primeiro benefício experimentado pelo Rio Grande do Norte após a transferência da sede do governo português para o Rio de Janeiro” (Lyra, 1907, p. 18). Essa referência à nova condição política em que o Brasil se encontrava, devido à presença da família real, era uma forma de relacionar o tempo da nação ao tempo do Rio Grande do Norte. Como já foi mencionado, existia um interesse de Tavares de Lyra em estabelecer um paralelo temporal entre os acontecimentos concernentes ao processo de Independência do Brasil e os eventos ocorridos na história política do Rio Grande do Norte. Isso fica claro no seguinte excerto:

A revolução iniciada no Porto, triunfante em Portugal e ramificada no Pará, Bahia e outros pontos do Brasil, levou d. João VI a jurar previamente a constituição que as cortes iam fazer, urgido pela marcha assoberbante dos acontecimentos que explodiram em 1821 no Rio de Janeiro. [...]

Em relação ao Rio Grande do Norte, por mais doloroso que seja confessá-lo, a verdade é que a revolução partiu do poder: a província, o povo, em sua maioria, era indiferente ao movimento. (1915, p. 21)

Nesse fragmento da narrativa de Tavares de Lyra, é perceptível como o Rio Grande do Norte se insere no tempo da nação, mesmo que a província tenha ficado alheia ao movimento iniciado no Porto. Essa relação entre o nacional e o local evidencia seu esforço em dar sentido à memória histórica do Rio Grande do Norte, articulando a construção da memória nacional, isto é, como a nação, ainda em processo de emancipação, interfere na configuração política da região. Essa questão atravessa o restante do texto historiográfico de Augusto Tavares de Lyra.

Se o restabelecimento do domínio português possibilitou o benefício da criação do alvará de 18 de março de 1818, logo após o malogro da experiência revolucionária de 1817, permitiu também um efeito negativo: a criação dos “partidos políticos” na província. Vale destacar que o uso do conceito “partido político” pelo norte-rio-grandense, para pensar os grupos políticos do Brasil no início do século XIX, é totalmente inadequado, uma vez que não havia estruturas partidárias nesse contexto histórico.5

Segundo Tavares de Lyra, com a reorganização do governo de José Inácio Borges surgiu na província uma polarização política: de um lado, os adeptos da Independência do Brasil e, de outro, os defensores da política de recolonização. Para ele, o problema não era a existência dos “partidos” em si, mas sim o conteúdo da divergência partidária que não provinha da oposição de ideias e princípios em jogo, “mas das facções que procuram apoderar-se do governo” (1907, p. 21). Tavares de Lyra considerava as divergências partidárias uma perturbação à ordem política estabelecida, uma anarquia que não trazia vantagens à província: “pelo contrário, paralisam o seu natural desenvolvimento, entregando os seus habitantes a estéreis agitações” (1907, p. 21). Essa forma de ler as disputas entre os supostos partidos é concernente à própria experiência política que vivenciou no início da República e no interior do Partido Republicano Federal (PRF), do qual fazia parte.

Augusto Tavares de Lyra fez um paralelo semanticamente anacrônico entre grupos políticos antagônicos no momento da Independência e a disputa dos “partidos políticos” no contexto em que ele estava inserido. Em um artigo intitulado “A política”, publicado em 1898, pela Revista do Rio Grande do Norte (RRN), Augusto Tavares de Lyra teceu severas críticas às disputas políticas ocorridas no Brasil no limiar do novo regime e dentro do PRF (1898, p. 41). Para ele, as divergências partidárias e intrapartidárias estavam levando o país à exaltação, e o “mal-estar a todos os espíritos” (1898, p. 41). Ademais, a instabilidade política e a paralisação do progresso da nação seriam, igualmente, desdobramentos das divergências partidárias. Edgard Carone afirma que o PRF era um aglomerado de tendências político-ideológicas, coexistindo diferentes alas, que traduziam a problemática do momento: os florianistas ou radicais totalmente contrários a Prudente de Morais; os reacionários que eram antiflorianistas; e os moderados, que oscilavam entre os dois extremos (1977, p. 172).

Em seu artigo “Cisão do Partido Republicano Federal em 1897”, publicado na Revista do IHGB em 1944, Tavares de Lyra indicou três causas primordiais que levaram ao rompimento do PRF: a) a heterogeneidade das ideias dentro do partido; b) os constantes desentendimentos entre Prudente de Morais e Francisco Glicério; e c) a questão da sucessão presidencial (1944, p. 203). Em 1897, o PRF dividiu-se em duas alas: a majoritária, pró-Prudente e com a maioria no Congresso, intitulada Concentração; e a minoritária, de gliceristas, chamados de Republicanos, que continuavam dirigindo o partido (Carone, 1977, p. 177). Assim como Tomás Delfino, Quintino Bocaiúva, Pinheiro Machado, Lauro Müller, Gonçalves Ramos, Joaquim Pernambuco, João Cordeiro e Pedro Velho, Tavares de Lyra tomou partido ao lado de Glicério. Mesmo divididos, as tensões políticas entre as duas alas não cessaram.

A partir de 1897, a crítica a Prudente de Morais, dessa vez, estava ligada ao episódio de Canudos, mais precisamente à acusação por parte dos jacobinos de que o governo fechava os olhos ao movimento restaurador. Com o ambiente cada vez mais tenso, a oposição planejava não somente criar um conjunto de condições insuportáveis para a administração prudentista, mas eliminar fisicamente a pessoa do presidente. O que de fato quase se concretizou com o atentado ocorrido no dia 5 de novembro de 1897, no momento em que Prudente de Morais foi atacado por um soldado no cais do Rio de Janeiro, ao receber pessoalmente a expedição vitoriosa que retornava de Canudos. Malogrado o plano do seu assassinato, Prudente de Morais foi levado para o Itamarati e, na saída, foi ovacionado, mas quando chegou ao palácio do governo recebeu a notícia da morte do ministro Ernesto Sena, esfaqueado depois do conflito entre florianistas jacobinistas e o grupo que acompanhava e apoiava o presidente.

Como corolário do atentado a Prudente de Morais e da onda de manifestações ocorridas na rua, debate-se sobre a questão no Senado, e os jacobinos, com alguns membros do PRF, foram acusados de serem os responsáveis pelo ato. O grupo pró-Prudente enviou uma petição ao Congresso Nacional, no dia 8 de dezembro de 1897, exigindo a instalação do estado de sítio, sendo aprovado no dia 12 e sancionado trinta dias depois, sob a justificativa da existência de uma conspiração contra a estabilidade do governo da República. Acusados e partidários do PRF reagiram ao pedido do estado de sítio sob a alegação da perda de todas as liberdades públicas, por exemplo, a questão das imunidades parlamentares (Lyra, 1898b, p. 105). Esse ponto foi fundamental para maximizar, ainda mais, as críticas às medidas políticas de Prudente de Morais, tendo em vista que a irrupção do estado de sítio redundou na prisão de um grande número de suspeitos e no início de um inquérito policial em 1898 (Carone, 1977, p. 183). Marcelino Bispo, Manuel Vitorino Pereira, João Cordeiro, Francisco Glicério, Alexandre Barbosa, Irineu Machado, Torquato Moreira, Pinheiro Machado, entre outros, foram considerados envolvidos na conspiração; alguns acabaram soltos por falta de provas, outros foram desterrados para a ilha de Fernando de Noronha. Assim, enquanto vigorou o estado de sítio, os deputados e senadores envolvidos na conspiração contra Prudente de Morais tiveram suas imunidades parlamentares cassadas, o que explica a prisão de alguns.

Para Tavares de Lyra, os desentendimentos gerados pela cisão do PRF em 1897 e, consequentemente, a radicalização da polarização partidária favoreceram a construção de um ambiente hostil politicamente, colocando sob ameaça a estabilidade política do país, comprovado, sobretudo, pela instalação do estado de sítio. Nesse contexto, fazia-se necessário lançar mão de todos os esforços possíveis para a manutenção da paz e da tranquilidade públicas: “asseguradas estas, a ordem e a liberdade nos darão, à sombra da república federativa e das suas leis liberais, a grandeza e a prosperidade a que tem direito aspirar nossa pátria” (1898a, p. 42). A recente experiência político-partidária de Tavares de Lyra em 1897 o fez concluir que as disputas entre os “partidos” na província do Rio Grande do Norte no passado também haviam ameaçado a manutenção da sua ordem política e o seu desenvolvimento econômico. Dessa forma, a malograda experiência “partidária” do passado recente, marcado pela polarização entre prudentistas e gliceristas, poderia ser vista também pelo antagonismo entre os adeptos da Independência e os defensores da recolonização na província do Rio Grande do Norte. Assim como as divisões partidárias de 1897 levaram o país à instabilidade política, as disputas pelo poder na província teriam acarretado um ambiente de anarquia e paralisação do desenvolvimento econômico do Rio Grande do Norte. Para Tavares de Lyra, o presente da nação e o passado da província padeciam do mesmo problema geral das disputas internas pelo poder e da sua consequência nefasta para a manutenção da ordem e do desenvolvimento material (o progresso).

Considerações finais

Augusto Tavares de Lyra, assim como uma parcela significativa dos republicanos brasileiros do final do século XIX e início do XX, positivistas ou não, considerava o par ordem e progresso como uma marcha incontornável da história do país. Para ele, apenas por meio de um governo forte é que a ordem política poderia ser estabelecida e o progresso da nação atingível (1898b). A história do Brasil e a do Rio Grande do Norte tenderiam, necessariamente, a obedecer à marcha inexorável da humanidade rumo à ordem e ao progresso. Essa forma teleológica de pensar a história implicou a própria maneira de narrar os acontecimentos políticos do Rio Grande do Norte entre 1817 e 1824. Não é por acaso que toda a narrativa acerca das administrações dos governadores da província – José Inácio Borges, junta governativa, Manuel Teixeira Barbosa, Tomás de Araújo Pereira e Lourenço José de Morais de Navarro – tenha sido um relato das relações entre as tentativas de estabelecimento da ordem por parte das autoridades locais e a falta de progresso no Rio Grande do Norte.

A manutenção da ordem dependia do processo de estabilização política entre os adesistas e os oposicionistas do movimento pró-Independência dentro e fora da província do Rio Grande do Norte. Para Augusto Tavares de Lyra, as lutas entre as facções, devido ao processo emancipacionista, implicaram diretamente a onda de desordem política e atraso econômico da província. É por esse motivo que a principal preocupação dos governadores do Rio Grande do Norte entre 1821 e 1824 foi a manutenção da ordem local, conforme o sócio do IHGRN. A narrativa sobre a administração dos governadores da província pós-1817 – do governo de José Inácio Borges ao de Lourenço José de Morais Navarro – é pautada pela tentativa de resolver o problema geral da preservação da ordem na província. Todos eles fracassaram em conter satisfatoriamente a “impetuosa corrente da anarquia”, gerada pelas diversas lutas pelo poder, engendrada por indivíduos ou por grupos políticos.

Em última análise, a história política do Rio Grande do Norte de 1817 a 1824 é uma síntese das acirradas disputas políticas na província e sua anarquia. O movimento da Independência do Brasil é colocado como o fio condutor e aglutinador das agitações partidárias no interior da província. Nesse sentido, a configuração política local é descrita como uma extensão do que estava acontecendo no âmbito nacional. A situação política do Brasil e do Rio Grande do Norte no decorrer da Independência é narrada sob o mesmo enredo. O tempo da nação e o tempo da província estavam entrelaçados.

Referências

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Recebido em 9/7/2021

Aprovado em 21/10/2021


Notas

1     Isso não significa dizer que os estudos históricos no oitocentos se resumissem à história política. A história da ciência e das realizações artísticas também era objeto de estudo dos historiadores do século XIX (Burckhardt, 2010).

2     Manuel Duarte Moreira de Azevedo foi um historiador, literato e médico fluminense dedicado aos estudos sobre a história do Brasil Império. Moreira de Azevedo foi um dos sócios do IHGB que mais escreveu memórias históricas sobre as regências, tornando-se no final do século XIX e XX uma das maiores referências sobre essa temática (Sousa, 2015, p. 218).

3     Francisco Muniz Tavares foi um político e padre pernambucano que atuou na Revolução de 1817. O monsenhor Muniz Tavares escreveu História da Revolução de Pernambuco de 1817, publicado, pela primeira vez, em 1840, sendo uma das principais obras sobre o referido acontecimento histórico.

4     Colocamos “do Norte” entre colchetes porque consideramos anacrônico tratar a capitania como Rio Grande do Norte, uma vez que essa menção se deu a posteriori. Doravante, iremos utilizar o termo Rio Grande [do Norte] com colchetes para identificar que estamos nos valendo de uma nomenclatura própria do período referente à capitania.

5     Em relação à discussão sobre grupos políticos e/ou elites regionais no contexto da formação do Estado nacional brasileiro, consultar o texto da historiadora Miriam Dolhnikoff (2003).



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